person_outline



search
  • Terror
  • Postado em

Então era Natal...

Eu queria fugir de tudo e de todos naquele dia. Trocar de vida, me transformar em alguém que nunca fui. Ser corajoso, ter garra. Impor minhas vontades e me colocar em um lugar de destaque na vida das pessoas. Principalmente na vida dela...

Abandonei praticamente todos os sonhos que ainda me restavam depois de mais de trinta anos de fracassos e decepções, apenas para amá-la. Disposto a seguir seus passos onde ela fosse. Mas o mínimo de desejos pessoais, planos e carências eu ainda mantinha. Mas isso nem sempre era levado em consideração. Acho que nunca foi... Ou talvez algo tenha mudado em algum momento de nossa história. Sua vida seguia conforme seus planos, apenas de acordo com os seus planos.

Amor... O tão sonhado amor. Tão procurado, tão exaltado por poetas e escritores. Cantado em lágrimas por músicos e por pessoas comuns, no chuveiro, no trabalho... Na vida. Acho que eu estava me cansando desse tal amor. Talvez, cansando, não seria a palavra mais correta. Acho que desistindo seria o mais certo. Sabe... Na verdade, a palavra eternizando também se encaixaria. Confuso isso não? Tentarei explicar. É que cheguei ao ponto de amar tanto, que todo o sofrimento por qual havia passado se transformou em anestesia. Comecei a aceitar coisas e fatos sem me importar com os efeitos e conseqüências. Voltei a viver a vida de outra pessoa, apenas esperando o dia em que tudo terminaria. Era certo. Mais do que certo que tudo terminaria um dia. Os sonhos dela falavam muito mais alto que o tal amor. Estávamos vivendo partes de uma longa despedida. Mais dia, menos dia, o adeus chegaria. Tentei viver aqueles meses de forma a aproveitar cada segundo ao seu lado. Juras de amor cruzavam nossos olhares. Juras de amor eterno. E sinceros. Cada lado ao seu modo. Eterno seria o sentimento, contrapondo-se a proximidade do término do relacionamento.

Era só uma questão de tempo. Não fosse num próximo concurso ou proposta de trabalho, seria na seguinte, ou na outra... Ou meses depois. Mas estava escrito que ela seguiria o seu caminho passando por cima de todo o seu sentimento por mim. Atropelando a saudade, o desejo e até mesmo o prazer que sentia ao ficar deitada, nua, em silêncio, de olhos fechados apenas recebendo meus carinhos e meus mimos.

Naquele dia de Natal eu entendi porque meus dias anteriores estavam tão tristes e cinzentos. Não eram somente as nuvens de chuva que eu avistava pela janela. E o arrepio nos pelos dos braços não eram causados pelo vento frio que soprava em meu corpo. O que eu estava sentindo por perto era a morte de mais um sonho. O de viver ao lado dela. De fazer parte de sua vida, não como coadjuvante, mas sim como um dos protagonistas. E se era realmente amor o que eu sentia, estava na hora então de desistir de tudo e deixar que ela fosse feliz. Deixar que ela alçasse voo, livre de mim. Livre de preocupações práticas de uma vida a dois. Por isso estava ali, vivendo aquela longa despedida. Dando adeus aos poucos. Trocando sorrisos por lágrimas a cada despedida. Vivendo a felicidade ao seu lado e a tristeza em sua ausência.

Até aqui, o leitor deve estar pensando se tratar um lamento piegas de um romântico frustrado. Mas o que relato a seguir vai mudar o contexto. Aconteceu na noite de Natal, quando decidi que eu também era alguém. Quando resolvi mostrar quem eu realmente era. Até então, em nome daquele amor, daquela paixão insana, eu havia me escondido. Tinha guardado para mim toda essência daquilo que eu sempre fui e não poderia mostrar a ela, nem a ninguém.

Não sei o leitor acredita em vampiros, lobisomens, monstros do pântano ou mitos semelhantes. Se você é fã desse tipo de leitura talvez tenha se empolgado agora, achando que finalmente vai ler algo interessante. Se você é leitor de romances ou de qualquer outro tipo de literatura e não acredita nessas criaturas, deve estar pensando: perdi meu tempo lendo mais uma baboseira.

A bem da verdade você talvez tenha realmente perdido seu tempo lendo uma baboseira, mas não é o caso de acreditar ou não nessas criaturas, pois não sou nenhuma delas. Ou talvez seja um pouco de cada.
Naquela noite de Natal, antes mesmo da meia-noite, peguei o meu carro e parti. A cada maldito quilômetro que nos separava, eu pesava os prós e os contras daquilo que estava planejando fazer. A Lua cheia iluminando a noite me trazia fome. Fome de carne humana. O vento gelado que entrava no carro por uma fresta na janela alimentava minha sede por sangue. O amor eterno que eu jurei a ela, aos poucos se desenhava em minha mente com outra roupagem. Ele poderia se transformar em realidade. Mortos. Nós dois. Mortos. Eternamente lado a lado. Tentei controlar meus instintos, mas a cada lembrança de tudo aquilo que eu já tinha passado por ela, eles se tornavam ainda mais fortes. Já estava ficando irreconhecível. Olhei pelo retrovisor e meu rosto estava quase totalmente tomado por mim mesmo. Por aquilo que sempre fui.

Na entrada de uma cidadezinha na beira da estrada, uma puta levantou a saia. Parei o carro. Ela era simplesmente horrível. Mas quando estamos com muita fome qualquer carne tem o mesmo gosto e nem sempre o prato precisa ter uma apresentação agradável aos olhos. Cerca de dez quilômetros depois da cidade, eu parei o carro e joguei o seu corpo no mato. Para uma mulher tão feia, ela até que tinha seios muito bonitos... E bem gostosos, literalmente falando. Quando passei em frente ao posto policial tive medo de ser parado. Não teria como explicar o sangue no banco do passageiro e também em minhas roupas. E muito menos aquele mamilo que acabará de ver sobre o painel do carro – não consegui mastigar. Parecia chiclete.
Não fui parado e segui meu caminho, disposto a por um fim em tudo, para iniciar novamente juntos, sem nada mais que pudesse atrapalhar os meus sonhos. Sim, os meus. Não queria mais viver os sonhos de outra pessoa. Era a minha hora e eu passaria por cima de tudo e de todos para realizar a minha vontade. Parei num posto de gasolina para ir ao banheiro e tentar esfriar a cabeça com um pouco de água fria na nuca, pois eu já não estava tendo controle sobre meus reflexos ao dirigir. Mas o que aconteceu ali naquele lugar foi algo que chocou até a mim mesmo.

Não consegui me conter ao ver aquele cachorrinho peludo, tão simpático e desprotegido. As pessoas ao redor gritavam revoltadas. Mulheres enojadas saíram de perto. Outras vomitaram sobre seus lanches e refrigerantes. Eu ria. Eu gargalhava ao despedaçar aquele bichinho tão inocente com as minhas próprias mãos. Ah, como foi excitante fazer aquilo. Talvez nem tanto quanto foi devorar os seios daquela puta, mas ali eu tinha platéia. Eu era o centro das atenções. Era o ator principal e não somente um coadjuvante. Quando dois homens vieram em minha direção com uma barra de ferro nas mãos, mostrei minhas garras. Afiadas e sujas de sangue. Um deles desistiu da investida. O outro, um tolo... Idiota do caralho, me fez matar novamente. Se eu não estivesse ainda com o estômago cheio da refeição na estrada, eu teria comido um pedacinho das tripas que lhe arranquei. Mas minha mãe havia me ensinado que comer por gula era pecado.

Resolvi voltar para o carro e partir, como se nada tivesse acontecido. Caminhei tranquilamente, pedi licença a uma senhora que estava perto da porta e entrei. Ouvi gritos por todos os lados, mas eu atingi um nível tão grande de êxtase que não me permitia distinguir as palavras. Soavam como “blá blá blá” e eu girei a chave na ignição. Quando engatei a ré e olhei pelo retrovisor, a imagem daquele carro da polícia estacionado ali atrás me fez sorrir. Eu pensei no quanto eu fui estúpido e distraído. Não tinha visto a viatura antes. E muito menos os policiais armados na frente do meu carro.

Um deles ainda estava com a boca cheia, mastigando o seu pão com mortadela, enquanto mirava a minha cabeça. Sim, eu vi um pedacinho da mortadela no canto da boca. É... Eu sei. Difícil acreditar que no meio dessa confusão toda eu me ateria a esses pequenos detalhes, mas eu sou assim.
Segurando o volante e olhando minhas mãos, pensei nela. Pensei novamente que eu a amava demais. E que eu não tinha o direito de privá-la de seus sonhos. Era hora de desistir. Lembrei de seus beijos, do seu corpo nu sobre o meu. Olhei ao redor. Estava cercado de pessoas revoltadas e quatro policiais armados. Eu poderia me entregar. Ser preso e viver pensando nela o resto da vida. Mas era Natal... Então eu me dei um presente especial. Levantei o dedo do meio na direção do policial com a escopeta, troquei de marcha e acelerei o carro na sua direção. Não sei ao certo se eu o esmaguei primeiro contra a parede, ou se ele atirou antes. Ele quebrou as pernas. Nada demais.

Eu? Bem... Eu estou livre. Caminhando pela estrada, sem pressa, sem rumo. Brincando com um pedacinho de osso do meu crânio, que peguei no chão no posto de gasolina. Caiu quando os caras colocaram meu corpo no rabecão, junto com a sacolinha com os pedaços do meu cérebro e rosto.

Ela agora vai seguir o seu caminho e ser feliz. E eu vou vivendo essa nova vida, cheia de novidades e mistérios. A cada quilômetro eu vivo o meu castigo. A cada cem passos eu me transporto daquilo que vocês chamam de inferno até as lembranças que me fizeram feliz ao lado dela. Depois retorno ao inferno com um sorriso no rosto, certo de que vou cumprir minha promessa, de amá-la eternamente.

Piegas, não?

Pin It
Atualizado em: Sáb 7 Fev 2009

Comentários  

#6 tania_martins 24-04-2010 11:30
Parabéns pelo texto!
#5 tania_martins 24-04-2010 11:30
Parabéns pelo texto!
#4 SINHOCASTRO 24-02-2010 16:00
Cara foi bem escrito e bem engraçado. muito bem!
#3 SINHOCASTRO 24-02-2010 16:00
Cara foi bem escrito e bem engraçado. muito bem!
#2 Niki_ 25-11-2009 07:20
Não sei se é piegas, mas me diverti com todo o texto, digo diversão por que gosto de humor sarcástico. Parabéns, raramente leio um texto tão grande, gosto de poemas.
#1 Niki_ 25-11-2009 07:20
Não sei se é piegas, mas me diverti com todo o texto, digo diversão por que gosto de humor sarcástico. Parabéns, raramente leio um texto tão grande, gosto de poemas.

Deixe seu comentário
É preciso estar "logado".

Curtir no Facebook

Autores.com.br
Curitiba - PR

webmaster@number1.com.br