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Jerry Bocchio e o Rapto de Batz – Capítulo IV: É Agora que Fica Pesado
Tom e eu voltamos para a delegacia atrasados, bem atrasados, como já esperávamos. Nós precisamos ficar muito tempo com o Seu Elias no Parque Campos Rosados para procurar algo. É lógico que nosso atraso chamou a atenção do Capitão Lester Gregade, que já foi direto nas nossas mesas falar conosco:
– Bocchio e Mangalvo. Aconteceu alguma ocorrência para essa demora?
Tom e eu já tínhamos combinado uma história no caminho, mas a postura do Capitão intimidava qualquer um que quisesse mentir. Então eu respondi, um pouco nervoso:
– É... Teve uma briga de vizinhos.
– Uma briga de vizinhos?
– Sim. Era por causa de som alto.
– Uma briga de vizinhos que durou tudo isso e vocês nem sequer relataram aqui na delegacia?
Então Tom respondeu:
– A gente ia relatar, mas acabou que tudo se resolveu.
O Capitão apenas abaixou a cabeça dando uma risada.
– Vocês acham mesmo que isso aí vai me enganar?
Foi quando, de repente, Maria, a então crush do Tom, apareceu na conversa:
– Tom! Jerry! Até que enfim vocês chegaram! Aquela briga deve ter sido um porre, né?
Como Maria sabia da nossa desculpa combinada? Eu apenas fiquei olhando enquanto o Capitão perguntava para ela, que também se intimidava:
– Do que você está falando, Silveira?
– Da briga na Rua dos Escriturários que eles tiveram que apartar. Ai! Desculpa, Capitão! Eu não passei para o senhor depois que o Tom ligou.
– De acordo com a história deles, eles não reportaram.
Então Tom interrompeu:
– Na verdade... Eu tentei reportar, mas a Maria disse que o senhor não estava na hora.
– É, isso mesmo! Eu anotei, mas esqueci de te passar depois.
O Capitão olhou para nós três muito desconfiado:
– Pelo visto, vocês três estão juntos nessa. Mas eu ainda não engoli essa história, estou de olho.
O Capitão Gregade saiu e deixou nós três ali. Eu tentei agradecer a Maria pela ajuda, mas, por algum motivo que só veio à tona um tempo depois, ela só ficava olhando para Tom – e Tom só ficava olhando para ela.
Então eu deixei os dois pombinhos a sós e fui para a sala de descanso da delegacia. Meu objetivo era dar uma olhada na peça de contrafilé com a gordura aparada que eu encontrei no Parque Campos Rosados.
Eu entrei na sala de descanso, apaguei a luz, calcei minhas luvas e pus a carne em cima da mesa. Então, eu puxei minha lanterna forense (aquela que mostra vestígios de sangue) e apontei para a carne. Foi então que eu me toquei: aquilo era uma peça de carne, então, ela ficou toda brilhando. Não dava pra achar digitais nela. Até pensei em passar luminol, mas acho que o resultado seria o mesmo.
Eu me debrucei sobre a mesa com o meu braço direito segurando minha cabeça para pensar em algo. De repente, comecei a sentir um cheiro diferente na carne. Não era só o cheiro de carne estragando, tinha algo mais misturado, como se ela tivesse sido temperada. Talvez fosse essa a razão de Batz ter ficado agitado no vídeo. Eles podem ter passado esse tempero para o cachorro sentir o cheiro de longe.
O cheiro não me era estranho, mas eu não conseguia identificar o que era. Então eu fui chamar o Tom para ver se ele reconhecia. Deu um pouco de trabalho para separar ele da Maria nessa hora, mas ele foi. Ele chegou, ficou perto da carne na mesa e logo respondeu:
– Eca, Jerry! Por que você me fez cheirar uma carne em decomposição? Essa é uma brincadeira sua... Epa... Espera um pouco... É, parece que tem algo mais mesmo.
– Viu só? Parece que eles temperaram essa carne.
– É, tem um cheiro... Doce?
– Sim! Lembra muito baunilha, mas quem usa baunilha pra temperar carne?
– Bom... Eu sei de um açougue aqui perto que vende um monte de molhos estranhos pra churrasco. Quem sabe não foi de lá que eles compraram?
– Bom, não custa tentar. Qual é o nome do açougue?
– Açougue Benção da Carne.
Que nome de açougue é esse? Será que ele queria subverter aquele negócio do "pecado da carne"? Mas essa expressão tem a ver com outra coisa.
Nós fomos até lá depois do expediente. Esse negócio de fazer investigações por fora é muito ruim por causa disso. Tem que esperar acabar o trabalho, com isso se perde muito tempo.
Chegamos lá por volta das 19:30. O açougue estava aberto, mas com pouco movimento. Provavelmente no final do expediente. Entramos no açougue e tocava uma música gospel no ambiente. No capacho de entrada tinha versículos bíblicos citados e no caixa tinha uma Bíblia. Comecei a entender o nome do açougue.
Fomos direto ao homem que estava no caixa. Ele parecia ser o dono, pois era o único que estava lá. Com um semblante meio cansado, ele nos atendeu:
– Boa noite! Vão querer o quê?
Eu puxei as fotos dos dois suspeitos, Samurai e Tampinha, e perguntei:
– Saberia me dizer se algum deles veio comprar coisas aqui recentemente?
O semblante dele mudou para agressivo num piscar de olhos e ele começou a gritar:
– O quê? Isso aqui é uma casa de Deus, rapaz! Você acha que eu atendo bandidos?
Aí ficou a dúvida se ele conhecia os dois anteriormente ou se ele disse isso porque ele viu a foto deles com um policial.
– Saiam daqui! A menos que tenham um mandado, vocês não podem me incomodar.
Eita! Que coisa foi essa? Parecia que ele tinha medo de policiais por perto. Mas, mais uma vez, esbarramos no negócio do mandado. Fomos voltando para o carro, quando Tom perguntou:
– É impressão minha, ou esse cara parece esconder alguma coisa?
– Também acho isso, Tom. Acho melhor a gente ficar aqui mais um pouco.
– Ficar de tocaia?
– Sim. O açougue parece estar no final do expediente. Quando ele fechar, a gente entra pra procurar alguma pista.
Tom ficou surpreso com a minha sugestão e se exaltou um pouco:
– Você tá doido, Jerry? Você acabou de sugerir uma invasão! Nós precisamos ser discretos pra não chamar a atenção do Capitão!
– Tom, a gente já tá fazendo coisa errada desde o começo. Tudo isso que a gente fez até agora já é motivo pra uma suspensão.
– Jerry, isso é invasão! Invasão já é crime!
– Eu sei, Tom. Mas, sei lá... Tem alguma coisa muito errada nesse açougue. Algo me diz que a gente precisa ver isso o quanto antes.
Tom ficou pensativo por alguns instantes, mas aceitou ficar, mesmo que contrariado:
– É bom essa sua intuição estar certa mesmo. Eu não estou afim de perder minha carreira à toa.
Nós dois esperamos no carro por quase uma hora quando as luzes do açougue começaram a se apagar. O dono maluco saiu e virou a esquina. Tom ligou o carro e começou a andar devagar para podermos ver o que ele faria na esquina.
Nada demais. O dono do açougue estava empurrando um portão de aço grande, logo atrás do açougue, para abrir o que parecia ser a garagem do açougue. Ele entrou, saiu com um carro, desceu do carro, fechou o portão empurrando, voltou para o carro e foi embora.
Foi então que Tom e eu descemos do nosso carro. Como a fachada do açougue tinha aquela porta de enrolar, se nós tentássemos entrar por ali, chamaria muito a atenção. Nós decidimos ir pela garagem mesmo.
Para a nossa sorte, o portão da garagem era preso apenas com uma corrente e um cadeado. Por que sorte? Porque eu já assisti a vários tutoriais no YouTube de como abrir cadeados com um clips de papel. Tá certo que, nessa época, eu ainda não tinha colocado em prática, então demorou um pouco pra eu conseguir.
Empurramos o portão a ponto de conseguirmos entrar, apenas. A garagem estava vazia, mas dava pra perceber que poderia caber um caminhão inteiro nela, o suficiente para o abastecimento da mercadoria, talvez. No lado esquerdo de quem entrava pelo portão, estava a entrada de trás do açougue. Por algum motivo, ela estava com a porta aberta.
Tom e eu nos olhamos e começamos a andar devagar em direção à porta aberta. Empunhamos nossas armas e Tom foi indo na minha frente. Quando estávamos chegando perto, começamos a ouvir um barulho que parecia ser um choro de um cachorro.
Eu achei aquilo estranho e parei de andar. Logo segurei o ombro de Tom para ele parar também. Tom, um pouco irritado, perguntou, cochichando:
– O que foi agora, Jerry? Tá querendo me assustar?
Eu respondi, também cochichando:
– Esse choro de cachorro parece ser daqui.
– Deve ser um cão de guarda.
– Não! Se fosse, ele estaria solto na garagem. Esse choro parece vir... Dali!
Eu apontei para o lado oposto, quando vimos um banheiro químico. O banheiro químico estava lacrado com uma corrente enorme enrolando ele todo com umas duas ou três voltas. Muito estranho ter um banheiro químico num lugar onde já tem banheiros, ou pelo menos deveria ter. Mas o choro vinha de lá de dentro mesmo.
Aquilo chamou muito a nossa atenção. Então, fomos para lá. Mais uma vez, um cadeado, mais uma vez, eu precisei usar minha habilidade que ainda não estava treinada. Quando consegui, desenrolamos a corrente, com muito cuidado pra não fazer estardalhaço, e abrimos a porta.
Quando abrimos a porta, o choro parou. O lado de dentro tinha apenas uma gaiola de animais. O vaso e todas as outras coisas de banheiro haviam sido arrancados para caber a gaiola. Eu me ajoelhei para olhar dentro da gaiola, e lá estava um cachorro, vira-lata, mestiço de São Bernardo, com um pingente escrito "Batz" (com o "s" no lugar do "z") na coleira. Sim, nós achamos Batz!
Batz parecia saber que nós estávamos ali para resgatá-lo. Por isso, começou a se animar e a latir, balançando o rabo. Tom tentou puxar a gaiola para fora, mas ela estava soldada no chão do banheiro químico. Pra que isso?
A animação de Batz era tamanha que logo ouvimos uma voz de um homem, com sotaque francês, vindo da entrada de trás do açougue:
– Tampinha, vá ver o que está excitando tanto o cachorro!
A resposta veio de um outro homem, com sotaque russo:
– De novo? Eu não ser babá de cachorro! Vá você dessa vez!
Isso confirmava nossa suspeita de ser o Tampinha e o Samurai os sequestradores de Batz. Mas, nesse momento, só queríamos tirar Batz de lá. Então, enquanto os dois cabeças-ocas discutiam pra ver quem iria ver o cachorro, eu lutava contra mais um cadeado.
O problema é que agora eu estava nervoso, Batz não parava de latir e Tom ficava falando "anda logo, Jerry". Minhas mãos tremiam com o clips de papel e o cadeado da gaiola. Nada ajudava, até que, fechei os olhos, respirei fundo e tentei de novo. Ouvi o "click". Abri a portinha, peguei Batz no colo e, quando nos viramos em direção ao portão, Tampinha estava no caminho, nos apontando uma arma:
– Coloquem o cachorro de volta!
Batz começou a rosnar e se debater em meu colo. Samurai apareceu do outro lado. Estávamos numa sinuca de bico. Enquanto eu tentava controlar Batz, Tampinha falou de novo:
– Anda! Coloca o cachorro de volta! E sem gracinhas!
O problema é que Batz se debatia e rosnava cada vez mais. Até que eu não consegui segurar mais ele. Ele caiu no chão, correu em direção ao Tampinha e minha única reação foi:
– Batz, não!
Então, amigos, lembra que eu falei lá no primeiro capítulo que a história era meio "pesada"? Assim como o cachorro do Doutor Estranho atacou Loki para defendê-lo, Batz atacou Tampinha, mordendo-o na perna. A reação de Tampinha foi no reflexo. O disparo foi dado enquanto Tampinha caía no chão. Batz caiu no chão.
Samurai começou a gritar atrás de nós:
– Tampinha, seu idiota! Por que você fez isso.
Tampinha parecia apavorado com a situação:
– Eu... Foi reflexo!
– Vamos dar o fora antes que The Gamer apareça!
Os dois fugiram saindo pela fresta que deixamos aberta no portão de aço. Eles estavam tão apavorados que nem se lembravam de Tom e eu.
Minha reação foi tirar o casaco, enrolar Batz e correr para o carro. Enquanto corríamos, eu falava para Tom:
– Tom, vamos para um hospital veterinário, ele ainda está respirando!
– Onde tem um?
– Não sei, cassete! Procura no GPS, Google Maps, qualquer porcaria aí!
Eu sentei no banco de trás do carro enquanto Tom acelerava. Eu tentava estancar o sangramento de Batz. Mesmo sem saber como proceder naquela hora.
Chegamos depois de uns instantes em um hospital veterinário chamado "Hospital Luz do Pet". Tom e eu entramos correndo pra chamar a emergência, mas a atendente, em vez de chamar logo a emergência, ficava fazendo perguntas de cadastro. Como eu odeio essa burocracia! Formulários, protocolos, cadastros... Eu comecei a gritar:
– Moça! Eu sou um policial que tentou resgatar esse cachorro, mas ele levou um tiro!
Tom começou a me chamar:
– Jerry!
– Dá para a senhora chamar uma emergência?
– Jerry!
– O que foi, Tom! Tá com medo de chamar a atenção?
– É tarde demais!
Eu não gosto de me lembrar dessas cenas, me desculpe se eu não detalhar demais o que aconteceu. Nós deixamos o contato de Elisângela Caezário com o hospital veterinário para levar o corpo de Batz. Voltamos para o carro completamente desolados.
Nós nunca nos envolvemos pessoalmente desse jeito em um caso. Tanto que eu não consegui dormir direito. Talvez seja por isso que os tais protocolos existam nas investigações, para que os casos sejam mais sobre números do que sobre pessoas.
Quando cheguei na delegacia no dia seguinte, minha intenção era contar tudo para o Capitão Gregade de um modo que isentasse Tom o máximo possível. Só que por algum motivo, o Capitão Lester Gregade não estava lá na hora.
Quem estava lá era Maria. Ela me deu um papel com um endereço anotado e disse:
– O Capitão Lester Gregade precisa de você e do Tom nesse endereço o mais rápido possível.
Ah, pronto! Um caso novo, pelo visto. Eu levei o papel para Tom e nós fomos lá.
O endereço era em um ferro velho perto da Avenida dos Neozelandeses, uma avenida que aparece muito nos noticiários por causa dos congestionamentos.
Quando chegamos lá, a polícia já havia isolado o local e o Capitão Gregade já estava lá, nos esperando. Ele pediu para o acompanharmos até dois corpos que estavam cobertos por uma lona. Ele segurou a lona e nos disse:
– Vejam se vocês reconhecem esses dois.
Quando ele puxou a lona, uma surpresa desagradável! Eram o Samurai e o Tampinha.
Eu fiquei embasbacado com a situação. Sem palavras. Minha reação foi só olhar para o Capitão Gregade, que apenas disse:
– Vocês precisam de ajuda?
Continua...
Atualizado em: Seg 8 Jul 2024