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Funções e preocupações da vida quantificada.
— Dezpreocupado; dezafiador; dezenfreado. Eu e você para sempre deztinados. Gostou do meu poema?
O papel estava decorado com coraçõezinhos nas bordas. Dentro deles os nomes dos apaixonados grafados com delicadeza.
— Eu amei! Você sempre é tão romântico. É o número Um no meu coração.
Sorriram e dividiram olhares definitivos.
Não muito longe, outro casal conversava.
— Dois dias de sol, dois filmes de terror e pra terminar, uma refeição em duas partes. A sobremesa será bolo de laranja!
A animação transbordava na voz dele. Falava sobre o fim de semana perfeito.
— Vamos olhar as estrelas na praia?
— Depois do filme de terror. Essa semana estreou o Dicionário, volume três!
— Eu ainda não quero assistir isso. Só de pensar em um filme inteiro cheio de verbetes, pontuações e significados semânticos intermináveis, me arrepia inteiro.
— Mas combinamos que eu daria a entrevista para o seu blog e você ia comigo ver o filme.
— Tá bom, mas também não quero bolo de laranja na sobremesa. Tem de ser cookies de chocolate meio amargo.
As diferenças os unia e distanciava em um paradoxo amoroso instigante e bonito.
— Nove vezes eu digo, te amo.
Foi a declaração após decidirem comprar mais protetor solar para o fim de semana.
Nem todos os relacionamentos são fáceis. Na verdade raramente são. Outro par mais afastado discutia, se olhava e desviava o olhar.
— Eu sei que você está cheio de indecisões agora, mas eu posso te fazer feliz. Te peço oito mil, oitocentas mil, oitenta milhões de vezes se for preciso, fica comigo.
— Preciso pensar melhor. Eu te adoro, mas quando ele passa e sorri eu esqueço até de quem sou eu na escala numerada.
— Ele não te ama, não te completa e não te entende como eu.
- Me deu três razões para eu não ficar com ele. Foi de propósito? Você não deveria dizer oito razões?
— Essas são suficientes. Eu sei o que sinto. Basta você me dar uma chance.
— Não sei...
— Pense em nós morando em um grande polígono de onze lados. Um jardim triangular para você e uma piscina octogonal para mim. Nas paredes pinturas de pirâmides e nossa biblioteca repleta de livros de equações.
O sonho era doce e legítimo. Ambos pararam um momento para traçar os ângulos daquela vida futura, mas hipotética.
— Vou te dar uma chance. Podemos ir em um encontro.
— Perfeito! Gostaria de ir no cinema? Amanhã vai estrear o último filme da trilogia do dicionário. Ou será que estreou ontem?
— Nos vemos lá. Você tem razão, também mereço ser feliz com alguém que me ame com qualidade e não quantidade.
— Isso mesmo.
- Além disso, ele é só metade do que você é. Não quero tão pouco.
Um relacionamento começava e outro era comemorado. Mais uma dupla improvável de tão divergente brindava com taças de vinho.
— O que estes olhos místicos estão me dizendo? Com certeza o vinho não fez efeito, ou estou errado?
— Você nunca está errado. Eu só estava pensando na sorte de estarmos juntos. Me diga, por que me escolheu dentre todos os números existentes?
— Gosto da sua voz sussurrada e misteriosa, do seu olhar cheio de verdades ocultas, do seu magnetismo incomum e dessa sua forma de ver a vida.
— Tão específico.
— Não posso evitar, sou assim, o contrário de você. Racional, analítico e previsível. Eu vejo em você tudo o que falta em mim, por isso te amo.
— Sua racionalidade transborda de sentimentos.
— Acho que é por tanto tempo de namoro, você me contagiou com sua aura.
— E se os ventos me levarem para longe? A única coisa previsível na minha vida é este relacionamento e o meu trabalho.
— Você sabe quem eu sou, espalho aos quatro ventos o quanto te amo e te encontro em alguma bissetriz escura.
Ambos riram com a cena.
— O destino nos uniu e eu agradeço por isso. Excelente ideia espiar o que ou quem havia do outro lado da vírgula ao lado da minha casa decimal. Você lembra?
— Como esqueceria a primeira vez que te vi? Parece que foi ontem.
— A tarde de setembro mais memorável, saúde meu amor.
— Saúde!
Continuaram comemorando, bebendo, comemorando, bebendo.
O último casal entrou no bar quadriculado, se sentou nos banquinhos de acento oval e se olharam intensamente apoiados na mesa retangular.
— Um, dois, três indiozinhos, quatro, cinco, seis indiozinhos.
— Obrigado, agora essa música vai ficar se repetindo na minha mente durante um mês.
— Amigos são pra isso.
Desviaram o olhar e se ajeitaram desconfortáveis. Depois fixaram os olhares outra vez.
— O que queria me dizer? Essa é a quinta tentativa. Estou ficando muito curioso e preocupado ao mesmo tempo.
— Tem algumas coisas que são difíceis de admitir.
— Eu sou seu melhor amigo, vou te ouvir e tentar entender.
— Nós fazemos uma boa dupla não acha?
O sorriso acanhado aumentou aos pouquinhos.
— Isso é óbvio, temos uma conexão única.
— Eu sei todos os seus medos e segredos e você sabe os meus.
— Nos conhecemos desde que o Homem aprendeu a contar. Enfim, eu sei de tudo isso. O que tem a ver com o que quer me dizer? Não estou entendendo nada.
O coração acelerou, as palavras certas tentaram sair, porém se atropelaram e veio a crise de tosse.
Um gole de água e muitas respiradas profundas depois, a tentativa ficou pairando inacabada.
— Eu queria te convidar para uma equação muito importante que estou participando. Não confim em mais ninguém para me ajudar a descobrir o valor daquele X teimoso.
A decepção para alguém que esperava outro convite se fez notar.
— Eu não sou um número de meias palavras. Você não pretendia me convidar para o projeto. Mas já que a iniciativa deve partir da minha parte eu oficialmente estou te pedindo em namoro. Tem seis segundos para responder. Um...
— Mas, eu...
— Dois...
— Como você percebeu isso?
— Três...
— Sou tão óbvio?
— Quatro...
— Para de contar e conversa comigo!
— Cinco.
— Eu não posso tomar essa decisão em apenas seis segundos!
— Seis.
— Eu digo que sim! Quero namorar você desde que ficamos sozinhos entre aqueles parênteses! Você cuidou de mim naquela escuridão.
— Eu segurei a sua mão e te guiei para os colchetes e depois pegamos as chaves para a saída. Lembra como o Igual quis nos separar?
— Ele conseguiu por um tempo, mas eu sempre pensei em você do outro lado daquele Igual intrometido.
Com um amor vindo desde os primórdios e seguindo para a eternidade, os casais estavam feitos.
Um e Dez; Dois e Nove; Três e Oito; Quatro e Sete; Cinco e Seis.
Em um canto do bar em uma mesa com vários lados o X cobriu-se para não perceberem sua presença. Ao lado dele, o zero bebia e paquerava um número imaginário sentado ao lado. De frente para ambos, ou mais ou menos, pois a mesa tinham muitos ângulos, estavam os gêmeos Mais e Menos, depois vinha a Divisão com seu olhar cruel e maldoso, por fim, a Multiplicação mais tranquila, observava os casais.
— Todos os números estão felizes.
— O zero tem que ser o mais óbvio sempre. Isso é de propósito?
— Só citei um fato, Divisão. Me deixe em paz. Não gosto de ver meu gêmeo tão feliz. — declarou o Zero olhando para a outra extremidade do bar.
— O casal mais estranho é o do seu irmão. Dez e um? Como o Um pode namorar o Dez sendo que o Dez já tem o Um em si mesmo?
— Cale-se incógnita. Você está criando discórdia.
— Multiplicação, ninguém aqui tem seu bom coração. Então, cale-se você.
— Relaxem pessoal. Tudo vai dar certo no final. O Menos e eu trouxemos uns amigos para desestabilizar essa harmonia romântica. – anunciou o gêmeo que só sabia somar.
— Conta Mais, conta Mais!
— Calma Divisão, eu vou mostrar. Olhem lá fora pelas janelas espelhadas.
Lá estavam eles, uma horda de números diferentes e iguais.
— Vocês criaram os números negativos mesmo! Achei que fosse uma lenda!
— Não zero, lenda vai ser este dia feliz para os números sentados naquelas mesas. Mais e eu trouxemos esses números de um plano cartesiano diferente do nosso.
— Isso foi perigoso e imprudente!
— Multiplicação fica na sua e não atrapalha!
— Você não manda em mim Divisão!
— Silêncio! Deixem o Mais contar o plano! Eu quero participar e me juntar aos números negativos para acabar com a alegria desses números naturais!
— Sim querido X, agora você pode se disfarçar de qualquer um deles e todos nós prometemos dar muito trabalho para os Naturais metidos. Vamos acabar com eles, ou eu não me chamo Menos!
Multiplicação não queria participar de nada, porém o dever para com a família de operações matemáticas exigia que acatasse as decisões.
E o grupo brindou pela nova era de bagunça enumerada.
Atualizado em: Qua 24 Ago 2022