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Febre

Aquela região seca não encanta ninguém a um olhar de relance. Mas, obrigados, eu e Edgar, a pararmos devidos alguns problemas no veículo, contemplamos a água que ao cair do céu, não molhava o chão. Tocávamos os galhos retorcidos para comprovarmos se estavam molhados, mas não.  A água escorria, mas a areia continuava seca.  Segundos antes, se soubéssemos daquele raro fenômeno, não teríamos passado horas em vão dentro do carro, visto que a chuva, estranhamente, também não nos encharcava.
Fez-se noite. Sinto, repentinamente, minhas costas deitadas em algo macio.  Um homem, cuja brancura da roupa ofusca meus olhos, emerge da escuridão. Aproxima-se de meu amigo e pergunta-lhe o porquê de estarmos aqui. Edgar, calmamente, responde problemas mecânicos. Vejo a lataria do carro deformar-se. Edgar também, contudo, nada demonstra. Outro vulto áureo surge da escuridão, aproxima-se de mim. Não vejo mais Edgar. Ele toca-me. Meus olhos estão sangrando agora. O vidro do carro estilhaça-se. Não sinto mais o meu próprio corpo. Ele pergunta-me algo, entretanto, não compreendo o que diz.
Depois, uma multidão de vultos emerge da escuridão. Um caminha em direção a uma criança, antes ignorada pelos meus olhos. O carro capota, vê-se indício de fogo. O homem, brutalmente, arranca dos braços da menina morta uma boneca. Depositando o cadáver no saco preto, priva-a dos cuidados de sua pequena mãe.
A chuva continua, os vultos estão molhados. Subitamente, vejo inúmeros outros carros parados, outros capotados. O carro de Edgar não mais existe, o fogo já o devorou. Meu coração não mais bate. Acordo, tudo está escuro. Levanto-me à procura de luz. Apesar de uma singela tontura, encontro-a. Ao acendê-la, deparo-me com os corpos de Edgar e da menina. Eu não estava morto. Recordava-me do acidente. Chovia. Abri a janela. Toquei na água que escorria, minha pele permaneceu seca. Escuto alguém bramando lá do fundo do corredor, caminho na sua direção. Mas, à medida que buscava aquela voz, meu corpo desfazia-se, ela, mais intensa, rachava as paredes do local. As paredes precipitam-se. Sou soterrado. Escuridão. Acordo. De relance, contemplo minha mãe, da porta do quarto, gritando a fim de que eu, ainda que argumentando não poder levantar-me em decorrência de relevos de febre, acordasse mais cedo e não perdesse o horário da escola.
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Atualizado em: Seg 27 Ago 2018

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