- Reciclando Palavras
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Reciclagem de Palavras: Minaz, bricolagem, comensal. Texto: Fleches minazes
Minaz,
Esta palavra me saltou das profundezas inconscientes sem pedir licença e ficou
me cutucando pelo seu significado. Algo a trouxe ao baile da vida, pois de tudo
que produzimos temos seus pedaços internalizados, e tudo que está internalizado
retorna ao nível consciente mediante um estímulo. A mente é uma fábrica de
sínteses, fazemos bricolagens. Bricolagem.
É uma palavra que está na moda, como há algum tempo era moda falar
"paradigma". A indústria do faça
você mesmo a usa querendo que signifique realizar pequenos consertos ou trabalhos manuais. Tente um faça-você-mesmo
sem ter os fundamentos tecnológicos envolvidos e verá no que dá. Exemplo,
consertar um aparelho elétrico sem nada entender de eletricidade. Você se
debruça sobre ele, vê aquela porção de peças, cada uma delas internalizada em
sua mente com as suas idiossincrasias, tendo o significado que a elas você deu
nos contatos anteriores. Quando pensa que agora vai funcionar, liga na parede e
produz um baita curto-circuito. Não se decepcione. Como consertador, não está
com nada, mas é um grande "bricoleur" (não tem correspondente em
português? Explica-se o porquê foi aceita bricolagem
sem os portuguesólogos de plantão reclamar). Você pegou fragmentos ao meio
ambiente e os reuniu em uma nova síntese, produzindo um aparelho que serve para
pôr fogo na casa. Inventou e vai descartar, pois só dá prejuízo, não vai
interessar ao mercado. Já que se precisou do termo para significar consertar e fazer trabalhos manuais, aí
está um sentido a mais. O termo está mais relacionado à criatividade, à
poiesis, pegar fragmentos de qualquer coisa e fazer uma síntese criativa. No
campo das idéias, posso dar um exemplo da minha horta. Na reciclagem da palavra
abada meus dedos retiraram dos
refolhos mentais a palavra lustosa,
que analisei até achar ter vindo do inglês lust.
Isto é bricolagem. Tomar pedaços de madeira, trabalhar com ferramentas e fazer
um objeto é façavocemesmagem; tentar
consertar algo, sem seguir um manual de instruções, é fazer gambiarra, nunca
fica igual ao serviço feito por um profissional. Se você pegar um
liquidificador e nele adaptar uma pedra de esmeril, aí fez bricolagem.
Minaz, a palavra comia minha paciência querendo solução para seu significado. Fui ao Raphael Bluteau. Minaz vem do latim e significa ameaçador, tendo parentesco com "minar". Saí à cata de ocorrências na literatura. Achei-a em Gonçalves Dias, "O Soldado Espanhol": Num relance fugiu, minaz no vulto: Como o raio que luz um breve instante, Sobre a terra baixou, deixando a morte. No verso assim solto, o sentido de minaz parece depender de fugiu. Quem já lhe conhece o sentido, ameaçador, irá relacioná-lo mais prontamente à morte. O sentido será montado na mente do receptor pelo contexto onde se insere, o que significa ler todo o poema. A história do soldado que partiu e ao voltar, estando a esposa de outro enamorada, aparece como um vulto diante do comensal e o mata. Como a mente ditou pornografia, tomei o cuidado de usar comensal, mas se der o significado a sujeira aparece clara. Um uso fez Camille Adorno, em A Arte da Capoeira: embora na hora da luta traga ele entre a dentuça podre o ferro da hora extrema, é da cabeça, braço, mão e perna ou pé que se vale para abater o êmulo minaz, em que o sentido pode aparecer para quem de quem tem o significado de êmulo. Quem não o tem vai ao dicionário para internalizá-lo: competidor. A frase peca por não remeter adequadamente ao um campo situacional. Está claro que é uma luta, mas não é suficiente para a vidinha pasteurizada que levamos. Hoje se pensa que capoeira é uma dança africana, mas é uma luta, e luta mortal. Daqueles movimentos coreografados, uma pé-sada daquelas na fuça leva desta proutra. O defeito é do emissor, que, sem a pretensão de ser hermético, escreve sobre capoeira para quem não entende de capoeira, sendo que duas palavras de êmulo minaz não fazem parte dos gingados dos capoeiras, não lhes está no vocabulário, principalmente daqueles que lutam para sobreviver e não pela sobrevivência, quando apenas dançam a capoeira para ganhar uns trocadinhos na encenação. Ah! Mas engomadinhos também lutam capoeira! Não, não lutam, dançam. Não aprendem da missa o suficiente para usá-la como arma.
Em Luzia Homem, Domingos Olímpio Fonte brinca melhor com o leitor, pois traz imprecação minaz do soldado e, muitas linhas após, espectro minaz de Crapiúna, gritos terríveis. A repetição favorece a renascimento do sentido da palavra na mente do leitor. É claro que não se pode escrever consultando, como aqui se faz, o dicionário para o leitor. É preciso saber colocar a palavra, lembrando um absurdo dos absurdos: o verbal transmite um não verbal. É isto a que se pode reduzir Artaud pedindo para que as palavras remetam a imagens. Pede ele o uso das palavras como o pintor usa traços de tintas. A preocupação com o inserir uma palavra na descrição de um campo situacional se torna necessária neste momento em que se reclama que "brasileiro não lê". É preciso vender significados com a prosa para poder se fazer entendido, pois poesias, cada vez mais curtas, não dão espaço para ajudar o leitor a criar vocabulário.
Minaz, a palavra comia minha paciência querendo solução para seu significado. Fui ao Raphael Bluteau. Minaz vem do latim e significa ameaçador, tendo parentesco com "minar". Saí à cata de ocorrências na literatura. Achei-a em Gonçalves Dias, "O Soldado Espanhol": Num relance fugiu, minaz no vulto: Como o raio que luz um breve instante, Sobre a terra baixou, deixando a morte. No verso assim solto, o sentido de minaz parece depender de fugiu. Quem já lhe conhece o sentido, ameaçador, irá relacioná-lo mais prontamente à morte. O sentido será montado na mente do receptor pelo contexto onde se insere, o que significa ler todo o poema. A história do soldado que partiu e ao voltar, estando a esposa de outro enamorada, aparece como um vulto diante do comensal e o mata. Como a mente ditou pornografia, tomei o cuidado de usar comensal, mas se der o significado a sujeira aparece clara. Um uso fez Camille Adorno, em A Arte da Capoeira: embora na hora da luta traga ele entre a dentuça podre o ferro da hora extrema, é da cabeça, braço, mão e perna ou pé que se vale para abater o êmulo minaz, em que o sentido pode aparecer para quem de quem tem o significado de êmulo. Quem não o tem vai ao dicionário para internalizá-lo: competidor. A frase peca por não remeter adequadamente ao um campo situacional. Está claro que é uma luta, mas não é suficiente para a vidinha pasteurizada que levamos. Hoje se pensa que capoeira é uma dança africana, mas é uma luta, e luta mortal. Daqueles movimentos coreografados, uma pé-sada daquelas na fuça leva desta proutra. O defeito é do emissor, que, sem a pretensão de ser hermético, escreve sobre capoeira para quem não entende de capoeira, sendo que duas palavras de êmulo minaz não fazem parte dos gingados dos capoeiras, não lhes está no vocabulário, principalmente daqueles que lutam para sobreviver e não pela sobrevivência, quando apenas dançam a capoeira para ganhar uns trocadinhos na encenação. Ah! Mas engomadinhos também lutam capoeira! Não, não lutam, dançam. Não aprendem da missa o suficiente para usá-la como arma.
Em Luzia Homem, Domingos Olímpio Fonte brinca melhor com o leitor, pois traz imprecação minaz do soldado e, muitas linhas após, espectro minaz de Crapiúna, gritos terríveis. A repetição favorece a renascimento do sentido da palavra na mente do leitor. É claro que não se pode escrever consultando, como aqui se faz, o dicionário para o leitor. É preciso saber colocar a palavra, lembrando um absurdo dos absurdos: o verbal transmite um não verbal. É isto a que se pode reduzir Artaud pedindo para que as palavras remetam a imagens. Pede ele o uso das palavras como o pintor usa traços de tintas. A preocupação com o inserir uma palavra na descrição de um campo situacional se torna necessária neste momento em que se reclama que "brasileiro não lê". É preciso vender significados com a prosa para poder se fazer entendido, pois poesias, cada vez mais curtas, não dão espaço para ajudar o leitor a criar vocabulário.
Fleches minazes
Em olhares fugazes
me lanças relâmpagos,
raios e... Fleches,
fleches meu ser absorto
que explodo meu corpo
no teu.
Teus olhos minazes
açoitam meu ser,
acendem desejos
em sonhos de beijos,
e clamam meu Eros
que Tânatos 'stou.
Teus olhos capazes
serão de me ter?
Camille Adorno, em A Arte da Capoeira, 1ª edição: 1987Gráfica e Editora Kelps - Goiânia/GO, 6ª edição, revista e atualizada: maio/1999
Luzia Homem, Domingos Olímpio Fonte, biblio.com.br, http://www.biblio.com.br/conteudo/domingosolimpio/luziahomem.htm
Primeiros Cantos, de Gonçalves Dias Fonte: Gonçalves Dias. Poesia. Coleção "Nossos Clássicos". São Paulo, Agir, 1969, Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br
Atualizado em: Qui 18 Set 2008