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Reciclagem de palavras: garrular

A palavra nos leva ao Romantismo, José de Alencar, que vem nos mostrar que...
não há originalidade na proposta desta coluna. Como anota Marcelo Pereira Gomes da Silva em monografia para graduação em Letras, [1] José de Alencar, em Diva, procura colocar em circulação palavras que não existiam ou eram pouco utilizadas na Língua Portuguesa, muito menos em sua variante brasileira. José de Alencar, em nota a Diva faz massagem cardíaca e respiração boca a boca em 16 vocábulos: núbil; escumilhar; pubescência; exale; palejar; rofado; gárceo; garrular; olímpio; elance; rútilo; roçagar; frondes; aflar; rubescência; fervilhar. Lembremos que uma das características do Romantismo era o nacionalismo, que, fora do âmbito político, procurava a brasilidade, a língua brasileira. Não é, portanto, característica do modernismo procurar a Fala brasileira para instituir a Língua brasileira. Hoje não saberemos em que garrular tem a ver com Língua brasileira, mas naquele tempo a língua brasileira era a Portuguesa. O que José de Alencar queria dizer era enchamos nossos embornais com os vocábulos que correspondam ao que queremos fazer.

Pelos dicionários consultados, o significado da palavra é: palrar, garrir, tagarelar, murmurar, sendo seus derivados gárrulo: loquaz, tagarela, palrador, chilreador, gorjeador, cantor. Garrulice: tagarelice.

Significa também o barulho que fazem as águas. Euclides da Cunha, em À Margem da História: à medida que se sobe o rio a renascença se acentua. Guardamos-lhes os nomes e os apelidos bizarros - do opulento Caboclo-Real, da Cachoeira, ao gárrulo Cai N'água das cercanias do Chandless. Também em Adolfo Caminhas, Tentação, o colorido gárrulo dos vestuários matizavam a frescura sombria dos caramanchões. Em Abel Botelho, O livro de Alda, de 1927, quem garrula não é uma pessoa, mas um seu atributo: as pensionistas da D. Eleuteria, como no fato achavam convidativa base ao garrular da sua esperta malicia essencial, dele iam procurando extrair. Pode ser interpretado como uma figura de linguagem, mas o autor introduz uma alteração no sentido, pois o personagem fala, mas quem garrula é sua malícia.

Voltando a José de Alencar, em Senhora nos dá: uma onda trépida garrulava na bacia de mármore coberta de nenúfares, que alçavam os grandes e níveos cálices, aljofrados de orvalhos.

Aljofrados. Esqueçamos esta palavra! Estamos à procura de vocábulos ventáveis, que quando o lemos pensamos logo Meu Deus! Preciso usar esta palavra! Aljofrados ficará na prateleira por séculos, por mais que a reciclemos. Aljofro significa pérola pequena, gota de água, de orvalho, substitutos mais poéticos que o verbete em si.

Saber o sentido de dicionário de cada uma das palavras não faz nascer o sentido de garrulava, é preciso procurar uma foto de nenúfares. São folhas verdes flutuando em espelho d'água de um lago ou assemelhado, no exemplo uma bacia de mármore. A liberdade do Romantismo em José de Alencar faz o personagem ver, à noite, à distância, uma onda provocada por uma brisa, em um espelho d'água sobre um fundo de mármore, coberto por nenúfares. Os elementos se juntam em fantástica bricolagem na mente, no imaginário, do autor, pois há uma impossibilidade concreta na imagem sugerida, maior ainda quando se percebe que o personagem ouve o barulho feito pela onda, que garrula. Se a obrigação não for reportar-se à imaginação do autor, o sentido de garrulava fica por conta da imaginação do leitor, que, por mais livre, se guia pelo mundo concreto. Na impossibilidade de ouvir-se os sons produzidos por uma onda no espelho d'água, constrói-se o desenho de uma onda que flui tremendo (trépida) no espelho d'água, e parece tremer, pois os círculos concêntricos que uma onda nele formaria estaria multiplicada por colisões com as folhas dos nenúfares, uma onda que brinca com os nenúfares, uma onda que com eles garrula.

No Romantismo não importa a realidade (Realismo), mas a imaginação. Na imaginação, nada se cria tudo se transforma. Esta visão de uma onda que brinca veio de o garrular colorido das crianças impacientes, em Ocidente, "Revista portuguesa mensal", 1938, e de nem garrular de crianças em liberdade, de Fidelino de Figueiredo, Um colecionador de angústias, 1951, onde garrular está se referindo aos barulhos produzidos pelas crianças em atividade, e atividade de criança é brincar.

Se a mente produziu esta compreensão para a palavra que recebeu da Língua, introduziu um novo sentido na palavra, mas sempre haverá alguém de plantão para xizar, dizendo que nunca garrular significou brincar, é um abuso semântico. Não o é, mas é tomar o todo pela parte, figura de linguagem. Posso, também, responder que eu nunca existi antes de ter nascido. Sei muito bem que as palavras têm raízes, radicais e histórias, mas sei que, plantadas em qualquer mente, as raízes as fazem germinar e o pólen de suas flores se mistura levando a mutações de sentido. Palavras e locuções há que foram usadas de forma errada por autoridades e se impuseram como tais e outras que sempre existiram na boca do povo e autoridades disseram que devem ser cortadas, como entrega a domicilio, televisão a cores, que, encantadas, as pessoas abandonaram.


Êxtase

Pecados sonoros,
ais entre palavras cortadas
nos lábios mordiscados
de beijos balbuciados,
arrepios contatos
na pele macia
da mulher amada.
Bicos eriçados,
auréolas escurecidas,
bocas que se calam
para ver e ouvir
a garrulagem da amazonas
em harmonia simples
na flauta doce
da alma celestial.

Gritos contidos.

É isto uma construção, poesia não originada no fluxo inspiracional espontâneo, mas em trabalhar os elementos que constituirão o escrito. Mesmo em construções o pensamento sintético funciona e aqui surgiu garrulagem. A procura de seu registro dá resultados nulos. Não é, contudo, neologismo ou uma palavra malcriada. É o uso das regras de formação de palavras, no caso sufixação, quando –agem adicionado introduziu em garrul a noção de ato, ação, resultado da ação, comportamento, qualidade. Não introduziu, o que lhe é possível, a noção de coletivo, pois se vê que a poesia se refere a, apenas, dois amantes, mas parece ter introduzido a de coleção, muitos gárrulos. Há quem diga que o sufixo –agem serve apenas para a formação de palavras de cunho pejorativo, [2] ou depreciativo, em Portugal. [3] Deve ser a explicação de muitos jovens, de famílias religiosas para o fato de não gostarem de estudar linguagem, ou de outros colecionarem imagens de mulheres nuas. Também explicaria o fato de pais não gostarem que seus filhos usem tatuagem-s.

Garrulagem é virtual, está previsto nas regras da Língua. Osmar Barbosa, Grande dicionário de sinônimos e antônimos, 2000, registrou garrulice: tagarelice. Tagarelagem apareceu em Bernardo Guimarães, O Garimpeiro, a tagarelagem e as importunações continuaram na mesma, daí a pouco, e não teriam fim, se o sol que se ia escondendo atrás das colinas não viesse avisar que era tempo de se recolherem. Tagarelagem aparece em textos de vários blogs, ou seja, está na boca do povo, então está na boca de Deus.

Conferidas as regras instituídas, o poema é criativo, mas não é inovativo. Os estudiosos de Literatura não podem deixar de levar em consideração entre criatividade e inovação. Os modernistas foram criativos e inovaram, mas hoje podemos fazer Literatura barroca com imensa criatividade, e mesmo inovação dentro do próprio barroquismo.

1. h**p://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/portugues/port14.htm
2. Bruno de Andrade Rodrigues, h**p://www.filologia.org.br/xcnlf/4/11.htm
3. Maria da Conceição de Freitas Anastácio, www.uc.pt/celga/membros/docs/textos_pdf/para_uma_leitura_dos_nomes_depredicativos.pdf

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Atualizado em: Ter 22 Jul 2008

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