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Reciclagem de palavras: abada e lustosa
Estando com José Lins do Rego, Menino de Engenho, na cabeça quando houve a pesquisa da palavra aba, a segunda palavra desta série acabou sendo abada, ao sair do forno um reescrever a cena da primeira experiência sexual de um menino em um engenho de açúcar nos muito antigamente brasileiro. Ali surgiu lustosa e obrigou comentários à guisa de post-scriptum para explicá-la. Na minha opinião, Artaud tem uma teoria do pensamento que pode ser adotada ou própria, pois não deixou indicadores de onde tirou suas idéias. Refere-se ele aos mil choque interiores no inconsciente que levam à formação de aglomerados de formas inominadas, às quais se junta o nome/palavra e será a partir desta visão que se procura explicar o aparecimento de lustosa no texto.
Abada demonstra o que alguns portuguesólogos de televisão parecem não saber: a pesquisa histórica é ato anterior ao apedrejar os que usam determinados termos, como se fossem idiotas. O Instituto de do Instituto de Estudos Brasileiros da USP acaba de disponibilizar, o Vocabulario Portuguez & Latino, aulico, anatomico, architectonico, [1] de Raphael Bluteau, escrito entre 1712 a 1728, em Coimbra, o qual, em 1789, o lexicólogo pernambucano, António de Morais Silva (1755-1824) recompila e amplia, trazendo-o para o Brasil, tendo a sua 10ª e última edição, de 1959, saído em 12 grossos volumes, profundamente revista, corrigida e muito aumentada, com abundantíssima cópia de abonações de escritores clássicos para explicação dos termos aí compilados. [2] O dicionário etimológico diz que abada vem de aba e o de dificuldades diz que significa uma grande quantidade, assim, uma abada de rosas, abada de nozes, de caju, e, ainda, o rinoceronte, alpendre, varanda, o copiar, o beiral. Pelo Raphael Bluteau, abada se refere a aquilo que está no bolso ou cavidade que se faz levantando as extremidades da capa ou qualquer vestidura larga, portanto, as abas da roupa que se veste. Se beiral leva direto a Portugal, com os beirais dos telhados, caju leva ao nordeste, e, quem não tem, na mente registrado, aquelas imagens de casarões com varandas em volta, suas abas? Se é daqueles que não têm, peça a Deus o retorno dos Rugendas que as desenharam para os livros escolares de antanho. O Cândido de Figueiredo de 1913 diz que é a fêmea do rinoceronte africano, Martinz de Aguiar dirá para uns o mesmo que rinoceronte, indicando para outros apenas a fêmea. Confere com textos antigos que se referem a a abada. Paez cita alguém que descreve no feminino o animal que viu no ano de 1537, e Luciano Cordeiro, em 1881, escreve este corno quando a abada ha de pelejar com o elefante ou o leão aguça em uma pedra para que faça mais dano. No cômputo geral, determina-se a indefinição sexual da palavra, podendo ser a espécie quanto apenas a fêmea do rinoceronte. É também o dente ou o corno da abada, como no Diccionario geographico abreviado de Portugal e suas possessões ultramarinas, de Francisco dos Prazeres Maranhão e Manoel Bernardes Branco, de 1862 e o Dicionário didático e popular da língua portuguesa, de Aires da Mata Machado Filho e Eduardo Sucupira, de 1965. Significado diverso dá Pedro Augusto Ferreira, em 1873, no seu Portugal Antigo e Moderno, registrando que abada significa adorar, dar culto, ser religioso, o mesmo que José Pedro Machado, em 1961, registra citando Artur Ramos, O Negro Brasileiro, o que sugere origem africana do sentido. Isma'il Raji al-Faruqi, Islã e outras religiões, [3] dá a dica de que abada no sentido de culto, servir se relaciona ao Alcorão. É uma palavra que poderia ter sido introduzido pelos escravos africanos ao chegarem ao Brasil, da língua yorubá-nagô, como registra Eduardo Fonseca Júnior, em Dicionário antológico da cultura afro-brasileira Português-Yorubá-Nagô, significando mudanças e contingências da vida.
A palavra não apareceu na literatura brasileira e portuguesa em meu banco dados, nem mesmo José Lins do Rego, que foi menino de engenho, a usou. Abadá, a túnica de todos conhecida, aparece em qualquer texto, literário ou não, que aborde o carnaval baiano. João do Rio, em As Religiões no Rio, demonstra que a origem africana para abadá deve ser colocada sob suspeição, com
Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua, sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.
Recontando a primeira experiência sexual do menino de engenho (de José Lins do Rego):
A família reunida na abada da casa,
de repente, dá a mãe falta do menino.
Vindo do mato o negro alforriado
com amarrado de caças miúdas,
que sertanejo se tornara,
foi logo a mãe perguntando:
- Cadê ele, o menino?
- Sei não, nhora,
a última vez que o vi ele,
'stava na beira do bananal,
adentrou e não respondeu
q'eu 'stava embora vino.
Enquanto isto, o menino,
a dedo, a bananeira procura,
de seus sonhos a Tereza do agreste,
e agora transa com a mais lustosa,
a que tivera de vaginar
com seu precioso canivete.
Mentira o africano.
A tudo vira,
de sua infância lembrando,
do nagô quas'esquecido,
vira as costas às abadas
do menino em vias
de adolescência.
Os portuguesólogos de plantão, com a única letra que conhecem, xisariam o lustosa, e teria eu de concordar. Alguns diriam que esta palavra simplesmente não existe em português, o que me daria a possibilidade de requerer direitos autorais de um neologismo. Alguns perguntariam educadamente se eu não queria dizer lustrosa. Estes não conseguem entender que não sou eu quem falo, é meu inconsciente. Lacan chegou a dizer que o inconsciente é um Outro, o Outro fala na fala do homem, ou coisas que o valham. Artaud disse eu assisto a Antonin Artaud, o que Rimbaud já havia dito de si, de forma levemente modificada. O meu inconsciente sou eu, não um Outro, mas é ele quem fala. E se meu inconsciente escreveu lustosa foi por que quis usar esta palavra. Se não vejamos. A função da mente é sintetizar. Na cidade cerebral há um conjunto habitacional reservado às palavras. No centro deste habitat mental estão as palavras em português, simplesmente por terem sido, em meu caso, as primeiras a ali fixarem residência; na abada, estão as palavras estrangeiras, no meu caso do francês, inglês, espanhol, uma ou outra alemã ou latina. Quis me explicar o rebento que trouxera ao mundo, lustosa, um ser feminino (as palavras não seriam, também, seres vivos?). Primeiro pensei que minha mente casara gostosa com lustrosa, o menino do texto inventado, em ânsias sexuais, procura a bananeira mais gostosa e encontra a mais brilhante. Não é nada disto. Meu inconsciente pariu lustosa pela necessidade de encontrar uma bananeira que satisfizesse as fantasias meninais do personagem, e, deste modo, usou lust, palavra inglesa que teria se originado de palavra com mesma grafia do alemão antigo, talvez do latim lascivus, diz com autoridade o Merriam-Webster atual e confirma o Online Etymology Dictionary. O menino encontrar uma bananeira lasciva não seria a forma de corrigir minha escrita, pois tirar lustosa seria estragar o que meu inconsciente escreveu. Lust vem a ser usualmente, um desejo sexual intenso, que não tem uma palavra correspondente em português, não pelo menos no meu vocabulário, e meu inconsciente fabricou lustosa. E, assim, a história entre o menino e a bananeira é uma história de amor, e, como tal, o menino transou com a bananeira ao mesmo tempo em que a bananeira transou com o menino, e para levar o menino ao ato a bananeira teria de ser lustosa, cheia de intenso desejo sexual.
Poderia eu não alcançar nota suficiente em prova de vestibular, perdendo pontos por causa deste lustosa, se redação de concurso fosse. Se o objetivo do ensino da Língua é abrir a mente para o reino das mil possibilidades, o instrumento de sobrevivência por excelência de que é portador o ser o humano, a poiesis, a criatividade pela síntese de fragmentos internalizados; se a função dos concursos vestibulares é selecionar os que mais produzirão resultados a partir dos fragmentos a serem internalizados em um curso superior, haveria um baita erro de concordância comigo se esta palavra, mero fruto da síntese mental, me impedisse de ingressar em curso superior.
[1]www.ieb.usp.br/online/dicionarios/Bluteau/imgbluteau.asp
[2]www.slp.pt/Variavel/Jose_Pedro_Machado.html
[3]www.bismikaallahuma.org/archives/2005/islam-and-other-religions/pt/
Abada demonstra o que alguns portuguesólogos de televisão parecem não saber: a pesquisa histórica é ato anterior ao apedrejar os que usam determinados termos, como se fossem idiotas. O Instituto de do Instituto de Estudos Brasileiros da USP acaba de disponibilizar, o Vocabulario Portuguez & Latino, aulico, anatomico, architectonico, [1] de Raphael Bluteau, escrito entre 1712 a 1728, em Coimbra, o qual, em 1789, o lexicólogo pernambucano, António de Morais Silva (1755-1824) recompila e amplia, trazendo-o para o Brasil, tendo a sua 10ª e última edição, de 1959, saído em 12 grossos volumes, profundamente revista, corrigida e muito aumentada, com abundantíssima cópia de abonações de escritores clássicos para explicação dos termos aí compilados. [2] O dicionário etimológico diz que abada vem de aba e o de dificuldades diz que significa uma grande quantidade, assim, uma abada de rosas, abada de nozes, de caju, e, ainda, o rinoceronte, alpendre, varanda, o copiar, o beiral. Pelo Raphael Bluteau, abada se refere a aquilo que está no bolso ou cavidade que se faz levantando as extremidades da capa ou qualquer vestidura larga, portanto, as abas da roupa que se veste. Se beiral leva direto a Portugal, com os beirais dos telhados, caju leva ao nordeste, e, quem não tem, na mente registrado, aquelas imagens de casarões com varandas em volta, suas abas? Se é daqueles que não têm, peça a Deus o retorno dos Rugendas que as desenharam para os livros escolares de antanho. O Cândido de Figueiredo de 1913 diz que é a fêmea do rinoceronte africano, Martinz de Aguiar dirá para uns o mesmo que rinoceronte, indicando para outros apenas a fêmea. Confere com textos antigos que se referem a a abada. Paez cita alguém que descreve no feminino o animal que viu no ano de 1537, e Luciano Cordeiro, em 1881, escreve este corno quando a abada ha de pelejar com o elefante ou o leão aguça em uma pedra para que faça mais dano. No cômputo geral, determina-se a indefinição sexual da palavra, podendo ser a espécie quanto apenas a fêmea do rinoceronte. É também o dente ou o corno da abada, como no Diccionario geographico abreviado de Portugal e suas possessões ultramarinas, de Francisco dos Prazeres Maranhão e Manoel Bernardes Branco, de 1862 e o Dicionário didático e popular da língua portuguesa, de Aires da Mata Machado Filho e Eduardo Sucupira, de 1965. Significado diverso dá Pedro Augusto Ferreira, em 1873, no seu Portugal Antigo e Moderno, registrando que abada significa adorar, dar culto, ser religioso, o mesmo que José Pedro Machado, em 1961, registra citando Artur Ramos, O Negro Brasileiro, o que sugere origem africana do sentido. Isma'il Raji al-Faruqi, Islã e outras religiões, [3] dá a dica de que abada no sentido de culto, servir se relaciona ao Alcorão. É uma palavra que poderia ter sido introduzido pelos escravos africanos ao chegarem ao Brasil, da língua yorubá-nagô, como registra Eduardo Fonseca Júnior, em Dicionário antológico da cultura afro-brasileira Português-Yorubá-Nagô, significando mudanças e contingências da vida.
A palavra não apareceu na literatura brasileira e portuguesa em meu banco dados, nem mesmo José Lins do Rego, que foi menino de engenho, a usou. Abadá, a túnica de todos conhecida, aparece em qualquer texto, literário ou não, que aborde o carnaval baiano. João do Rio, em As Religiões no Rio, demonstra que a origem africana para abadá deve ser colocada sob suspeição, com
Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua, sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.
Recontando a primeira experiência sexual do menino de engenho (de José Lins do Rego):
A família reunida na abada da casa,
de repente, dá a mãe falta do menino.
Vindo do mato o negro alforriado
com amarrado de caças miúdas,
que sertanejo se tornara,
foi logo a mãe perguntando:
- Cadê ele, o menino?
- Sei não, nhora,
a última vez que o vi ele,
'stava na beira do bananal,
adentrou e não respondeu
q'eu 'stava embora vino.
Enquanto isto, o menino,
a dedo, a bananeira procura,
de seus sonhos a Tereza do agreste,
e agora transa com a mais lustosa,
a que tivera de vaginar
com seu precioso canivete.
Mentira o africano.
A tudo vira,
de sua infância lembrando,
do nagô quas'esquecido,
vira as costas às abadas
do menino em vias
de adolescência.
Os portuguesólogos de plantão, com a única letra que conhecem, xisariam o lustosa, e teria eu de concordar. Alguns diriam que esta palavra simplesmente não existe em português, o que me daria a possibilidade de requerer direitos autorais de um neologismo. Alguns perguntariam educadamente se eu não queria dizer lustrosa. Estes não conseguem entender que não sou eu quem falo, é meu inconsciente. Lacan chegou a dizer que o inconsciente é um Outro, o Outro fala na fala do homem, ou coisas que o valham. Artaud disse eu assisto a Antonin Artaud, o que Rimbaud já havia dito de si, de forma levemente modificada. O meu inconsciente sou eu, não um Outro, mas é ele quem fala. E se meu inconsciente escreveu lustosa foi por que quis usar esta palavra. Se não vejamos. A função da mente é sintetizar. Na cidade cerebral há um conjunto habitacional reservado às palavras. No centro deste habitat mental estão as palavras em português, simplesmente por terem sido, em meu caso, as primeiras a ali fixarem residência; na abada, estão as palavras estrangeiras, no meu caso do francês, inglês, espanhol, uma ou outra alemã ou latina. Quis me explicar o rebento que trouxera ao mundo, lustosa, um ser feminino (as palavras não seriam, também, seres vivos?). Primeiro pensei que minha mente casara gostosa com lustrosa, o menino do texto inventado, em ânsias sexuais, procura a bananeira mais gostosa e encontra a mais brilhante. Não é nada disto. Meu inconsciente pariu lustosa pela necessidade de encontrar uma bananeira que satisfizesse as fantasias meninais do personagem, e, deste modo, usou lust, palavra inglesa que teria se originado de palavra com mesma grafia do alemão antigo, talvez do latim lascivus, diz com autoridade o Merriam-Webster atual e confirma o Online Etymology Dictionary. O menino encontrar uma bananeira lasciva não seria a forma de corrigir minha escrita, pois tirar lustosa seria estragar o que meu inconsciente escreveu. Lust vem a ser usualmente, um desejo sexual intenso, que não tem uma palavra correspondente em português, não pelo menos no meu vocabulário, e meu inconsciente fabricou lustosa. E, assim, a história entre o menino e a bananeira é uma história de amor, e, como tal, o menino transou com a bananeira ao mesmo tempo em que a bananeira transou com o menino, e para levar o menino ao ato a bananeira teria de ser lustosa, cheia de intenso desejo sexual.
Poderia eu não alcançar nota suficiente em prova de vestibular, perdendo pontos por causa deste lustosa, se redação de concurso fosse. Se o objetivo do ensino da Língua é abrir a mente para o reino das mil possibilidades, o instrumento de sobrevivência por excelência de que é portador o ser o humano, a poiesis, a criatividade pela síntese de fragmentos internalizados; se a função dos concursos vestibulares é selecionar os que mais produzirão resultados a partir dos fragmentos a serem internalizados em um curso superior, haveria um baita erro de concordância comigo se esta palavra, mero fruto da síntese mental, me impedisse de ingressar em curso superior.
[1]www.ieb.usp.br/online/dicionarios/Bluteau/imgbluteau.asp
[2]www.slp.pt/Variavel/Jose_Pedro_Machado.html
[3]www.bismikaallahuma.org/archives/2005/islam-and-other-religions/pt/
Atualizado em: Seg 23 Jun 2008
Comentários
obrigado por ter escrito o dicionário. Pesquisando o meu "dialeto familiar" descobri que não existe, é tudo falar africano...
Um abraço
Eduardo Fonseca Júnior
Um abraço
Eduardo Fonseca Júnior
Um abraço
Eduardo Fonseca Júnior