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Reciclagem de palavras: Lapuz, Texto: A Alva e seus lapuzes
A menina, em cidade do interior, criada pelo pai a pão de ló. Era-lhe uma rainha, e dele não sabia ouvir gritos ou xingamentos rudes, nem mesmo quando se malcriava e se sentia merecedora do fogo dos infernos de tantos pecados cometidos. Recebia ensinamentos com aquela voz cândida que a amolecia e se corrigia. Mas, ele, o pai, tinha um defeito, um defeito enorme que a diminuía na cidade de suas amiguinhas em cujas vozes ouvia o pejorativo em “a filha do carvoeiro”. Levava-lhe, a meio caminho da escola, a marmita de almoço, que entregava de mãos estendidas, olhos fixos na fuligem presa ao rosto, aos braços, às mãos. O seu npai era sujo, isto talvez incomodasse as coleguinhas das aulas primárias. O pai limpava as mãos no avental preto de carvão e procurava seus cabelos, anéis de ouro que coroavam sua rainha. Ela se afastava.
Cresceu e o pai queria vê-la estudando na Capital, para as aulas secundárias, o que conseguiu redobrando a carvoaria. No dia de partida, quis abraçá-la e beijá-la na estação do trem de ferro, que já apitava sua partida. Ela se afastou e lhe estendeu a mão protegida de luva. Ele se conteve e apenas lhe beijou a pele escondida da mão enluvada. Sentiu um cisco de carvão se abrigando no olho e fez lágrimas escorrerem para que dali saísse. Era o que diria se lhe observassem os olhos vermelhos enquanto o trem partia. Ela, na Capital. Um dia tem de fazer um trabalho em grupo, reunião na casa de uma das novas coleguinhas. E ali, abrindo livros e fazendo anotações, eis que chega o pai da anfitriã, cujos olhos beijavam os olhos do único menino da turma Faz uma pergunta que não lhe está nos contextos, nada sabe da vida interna daquela casa. De repente, ali, diante das cinco coleguinhas que com sua filha estudam, o homem, em terno, grita, envermelhecido, com espumas de saliva pelos cantos da boca, e grita com a filha, e eis que ouve pela primeira vez a palavra “prostituta”, a que não reage, mas treme ao ver sua amiguinha ser chamada de vaca, de cachorra. A reunião do grupo ali acaba e outra é marcada na casa de outra. Seu coração se apertou dentro do peito, uma mágoa crescente, uma dor que não terminava mais. Enviou telegrama para casa. Que a mãe mandasse dinheiro, pois precisava ir em casa, urgente, precisava ver o pai. A mãe pressentiu, como só mãe pressente.
Foi.
Chegando, o trem iniciou um movimento de parada que não tinha fim... Ela já se postara diante da porta do vagão, que não se abria, nem se abriria enquanto o trem estivesse vivo. Seu coração não se aguentava. Assim que pôde, pulou fora e saiu correndo. Não passou em casa, foi direto ao pai, na carvoaria. Correu de braços abertos para abraçá-lo, ao pai atônito que não esperava vê-la antes do mês de férias. O carvoeiro, saído do pó de fuligem a seu encontro, conteve-se; lapuzes estavam as mãos, lapuzes as roupas. Em carícia, deixou-lhe apenas um sujo no rosto, que sorriu feliz. A menina, deslumbrada pela alva de seu pai, abraçou inteiro aquele corpo vestido de fuligem que a continha, prometendo a si mesma manter a sua alma limpa como a do pai.
Lapuz: O uso é pequeno, com 601 registros na pesquisa pelo Google Pesquisa de Livros, embora não se saiba o montante de livros em seu acervo, sendo 50% aproximadamente referentes a dicionários ou aparentados.
O Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa registra a palavra como adjetivo, e dá os significados, sem fazer citação:
...grosseiro, tosco, labrego, rústico, matuto, porco, sujo, mal entrajado.
Não é verbete no dicionário etimológico. Não consta do Raphael Bluteau, mas está em sua reedição por António de Morais Silva, de 1789, que acrescenta:
...chulo, pouco asseado, mal composto.
Está em Bocage, em 1875, em Obras Completas,
...Nem sabes o ABC, pobre lapuz;
Cândido de Figueiredo, no Novo dicionário de língua portuguesaý, de 1939 acrescenta às acepções dadas em 1899:
...Qualidade de lapuz.
No Houaiss é substantivo, como
...aquele que tem as características que define a palavra como adjetivo,
e acrescenta, sem registrar sujo, porco:
...bronco, tolo.
Diz que tem etimologia obscura e indica quem registra vir de lapa ou lapûs, de forma inútil, pois sem dar o motivo da origem, o que faz Altair J. Aranha, no Dicionário brasileiro de insultos, de 2002:
...lappa é palavra do pré-céltico e significa "pedra". Um sentido dado ao termo lapa é exatamente esse: uma grande pedra que forma um abrigo. Lapuz é, portanto, alguém que mora na lapa. Ou seja, o homem das cavernas. Como insulto é sinônimo de rude, grosseiro.
Ainda na Internet, a palavra tem uso fácil em escritos de vários blogs, daqui e de Portugal, ou seja, não é uma filha abandonada da língua, está na boca do povo em política lapuz, admiração lapuz, ignorância lapuz...
Camilo Castelo Branco, em Os Brilhantes do Brasileiro relata um dia de janeiro de 1847:
...se eu via minha sobrinha casada com um lapuz, que ainda há anos andava por aí a jogar a pedrada no cais!
e, em Amor de Salvação,
...O lapuz do noivo queria montar à Marialva, mas o ginete quando chegou à Cárcova...
Machado de Assis, em A semana
...Mas por que lhe chama lapuz? - Que lapuz? Não disse tal. Disse que acho o Rangel mais elegante...
Vergílio Ferreira, em Conta-corrente, de 1981, transforma um pouco:
...para aquela parte lapuz de nós, que é a que compra o bilhete...
Alva: apenas uma transformação de alma, para significar alma pura.
Cresceu e o pai queria vê-la estudando na Capital, para as aulas secundárias, o que conseguiu redobrando a carvoaria. No dia de partida, quis abraçá-la e beijá-la na estação do trem de ferro, que já apitava sua partida. Ela se afastou e lhe estendeu a mão protegida de luva. Ele se conteve e apenas lhe beijou a pele escondida da mão enluvada. Sentiu um cisco de carvão se abrigando no olho e fez lágrimas escorrerem para que dali saísse. Era o que diria se lhe observassem os olhos vermelhos enquanto o trem partia. Ela, na Capital. Um dia tem de fazer um trabalho em grupo, reunião na casa de uma das novas coleguinhas. E ali, abrindo livros e fazendo anotações, eis que chega o pai da anfitriã, cujos olhos beijavam os olhos do único menino da turma Faz uma pergunta que não lhe está nos contextos, nada sabe da vida interna daquela casa. De repente, ali, diante das cinco coleguinhas que com sua filha estudam, o homem, em terno, grita, envermelhecido, com espumas de saliva pelos cantos da boca, e grita com a filha, e eis que ouve pela primeira vez a palavra “prostituta”, a que não reage, mas treme ao ver sua amiguinha ser chamada de vaca, de cachorra. A reunião do grupo ali acaba e outra é marcada na casa de outra. Seu coração se apertou dentro do peito, uma mágoa crescente, uma dor que não terminava mais. Enviou telegrama para casa. Que a mãe mandasse dinheiro, pois precisava ir em casa, urgente, precisava ver o pai. A mãe pressentiu, como só mãe pressente.
Foi.
Chegando, o trem iniciou um movimento de parada que não tinha fim... Ela já se postara diante da porta do vagão, que não se abria, nem se abriria enquanto o trem estivesse vivo. Seu coração não se aguentava. Assim que pôde, pulou fora e saiu correndo. Não passou em casa, foi direto ao pai, na carvoaria. Correu de braços abertos para abraçá-lo, ao pai atônito que não esperava vê-la antes do mês de férias. O carvoeiro, saído do pó de fuligem a seu encontro, conteve-se; lapuzes estavam as mãos, lapuzes as roupas. Em carícia, deixou-lhe apenas um sujo no rosto, que sorriu feliz. A menina, deslumbrada pela alva de seu pai, abraçou inteiro aquele corpo vestido de fuligem que a continha, prometendo a si mesma manter a sua alma limpa como a do pai.
Lapuz: O uso é pequeno, com 601 registros na pesquisa pelo Google Pesquisa de Livros, embora não se saiba o montante de livros em seu acervo, sendo 50% aproximadamente referentes a dicionários ou aparentados.
O Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa registra a palavra como adjetivo, e dá os significados, sem fazer citação:
...grosseiro, tosco, labrego, rústico, matuto, porco, sujo, mal entrajado.
Não é verbete no dicionário etimológico. Não consta do Raphael Bluteau, mas está em sua reedição por António de Morais Silva, de 1789, que acrescenta:
...chulo, pouco asseado, mal composto.
Está em Bocage, em 1875, em Obras Completas,
...Nem sabes o ABC, pobre lapuz;
Cândido de Figueiredo, no Novo dicionário de língua portuguesaý, de 1939 acrescenta às acepções dadas em 1899:
...Qualidade de lapuz.
No Houaiss é substantivo, como
...aquele que tem as características que define a palavra como adjetivo,
e acrescenta, sem registrar sujo, porco:
...bronco, tolo.
Diz que tem etimologia obscura e indica quem registra vir de lapa ou lapûs, de forma inútil, pois sem dar o motivo da origem, o que faz Altair J. Aranha, no Dicionário brasileiro de insultos, de 2002:
...lappa é palavra do pré-céltico e significa "pedra". Um sentido dado ao termo lapa é exatamente esse: uma grande pedra que forma um abrigo. Lapuz é, portanto, alguém que mora na lapa. Ou seja, o homem das cavernas. Como insulto é sinônimo de rude, grosseiro.
Ainda na Internet, a palavra tem uso fácil em escritos de vários blogs, daqui e de Portugal, ou seja, não é uma filha abandonada da língua, está na boca do povo em política lapuz, admiração lapuz, ignorância lapuz...
Camilo Castelo Branco, em Os Brilhantes do Brasileiro relata um dia de janeiro de 1847:
...se eu via minha sobrinha casada com um lapuz, que ainda há anos andava por aí a jogar a pedrada no cais!
e, em Amor de Salvação,
...O lapuz do noivo queria montar à Marialva, mas o ginete quando chegou à Cárcova...
Machado de Assis, em A semana
...Mas por que lhe chama lapuz? - Que lapuz? Não disse tal. Disse que acho o Rangel mais elegante...
Vergílio Ferreira, em Conta-corrente, de 1981, transforma um pouco:
...para aquela parte lapuz de nós, que é a que compra o bilhete...
Alva: apenas uma transformação de alma, para significar alma pura.
Atualizado em: Ter 3 Fev 2009