- Reciclando Palavras
- Postado em
Reciclagem de palavras: Lancinar, crispar, elegia, incontinente. Texto: Udi a Enquia Terr Aparou-me
Lembro-me claramente de tudo. Eu caminhava na praça naquela hora vazia. Senti um agudo coletivo de punhais me lancinando, levei a mão ao peito, segurando-o com força, procurando conter meu coração expulso de casa. Meus olhos e lábios se crisparam. Água gelada por todos os poros me lavou os coloridos. Incontinente, a incontinência: o medo me estercou as calças e irriguei infrutiferamente a terra, cimentada. As luzes do céu se apagaram enquanto eu cedia à força da gravidade do que me ocorria. Em uma parábola hiperbólica, cruzei o ar horizontalizando minha vertical. Uma dor surda na nuca me abriu os olhos e me vi sufocado por pessoas altas, altas chegando ao céu, de faces escuras de formas que mudavam a todo instante. Depois o breu. Fui abduzido e meu corpo apareceu em um inferno de gemidos e gritos de dor. Posto em algo que me pareceu um altar de sacrifício, uma lâmina gelada e brilhante. Senti um marimbondo me morder no braço. Suspensa no ar e se movimentava alucinada à medida que os punhais iam sendo retirados de meu peito, um a um, a lâmina gelada, quase metro acima do chão, voava contra as paredes e nela eu me segurava para não cair. Adormeci por uma ou duas eternidades, talvez três, naquele cavalo mecânico preso ao chão. Me acordaram uma lombriga, que me saía pelo nariz, e algo que me calava a voz em boca aberta. Senti que babava. O ambiente era outro, meio marciano, com gentes verdes um pouco parecidas com humanos, das quais pouco se viam os olhos. Barulhos aborrecidos, monótonos, fffffffu-chchchch-tá fffffffu-chchchch-tá fffffffu-chchchch-tá... Nada a fazer senão aceitar tudo que me faziam. Contei, mais ou menos dezesseis fffffffu-chchchch-tás a cada minuto. Outro barulhinho chato me atordoava, bi bi bi bi bi, rápidos, não conseguia contá-los, pareciam centenas, ou novena. E de repente, silêncio. Um temporal de gelos tomou conta de meu corpo, lavando-lhe os brilhos. Marcianos a meu lado me esmurraram o peito sem piedade durante alguns minutos e depois se olharam desanimados. Despiram-me, desejava um banho completo enquanto me lavaram em panos úmidos. Senti depois, imobilizado no cubículo de meu corpo, cheiro de flores. Vi, de novo, gente a meu lado, me circundando, uns constritos, outros restritos, outros tritos. Vi pessoas queridas ao meu lado, pessoas não tão queridas e pessoas que, em verdade, não queriam me ver. Algumas passaram por mim e foram para seu canto onde pareciam contar piadas sem rir. Revi amigos, falsos amigos, amigos falsos e até inimigos. Alguns beijos no rosto dos quais nada senti, outros em que senti amor sincero. Um murmurinho de vozes parecia cochichar segredos. Depois me senti flutuando, vi o céu pela janela de meu cubículo, azul e branco de nuvens, não existe céu preto e branco, pensei no meu time que perdia mais uma partida. Ouvi orações e, como há anos delas esquecera, as repeti em silêncio. Uma voz me encomendava a Deus, elegia. Subi, então, ao céu enquanto meu corpo descia ao inferno.
Elegia: uma forma de poesia clássica que, primeiro, séc 7 A.C., abordava qualquer assunto, passando muito mais tarde, a vincular-se à idéia de lamento e pranto, em canto acompanhado de flauta, em cerimônias fúnebres, permanecendo como forma estrutural de poesia, passando por ensinamentos morais, temas festivos, e, como explica Alexandre José Mello Moraes, [2] em 1856, retorna às origens:
"Entre nós como não há forma particular para esse gênero de poesia distingue se o pela natureza do sentimento que ele exprime e tem se o restringido ao sentimento da dor"
Não apareceu em blogs.
Quem pretende ser escritor e ter uma luzinha do sol que ilumina os livros deve ir tomar conhecimento completo do que é. Vai que uma bela hora recebe um convite para homenagear um alguém recém saído do forno da vida. Não que se vá fazer como está ali costurado, mas se não se tem a base não se há de querer modificar o telhado. Escrever não é seguir regras, é saber como modificar a que os outros criam.
Em um momento de ruptura com regras que nos foram ensinadas, fundir o substantivo no verbo e dizer como se disse, mistura de "eleger" com "elegia".
Lancinar: Golpear; torturar; afligir. [3] Surgiu em alguns blogs apenas, poucos. E não está no Bluteau (1712)
Crispar: Contrair súbita e involuntariamente; franzir; contrair. [4] [5]
Incontinente: Antonio Luiz Mendes de Almeida, [6] em 1999, pretendeu, seguindo uma direção anterior, diferenciar "incontinente" de "incontinenti":
"Incontinente = pessoa sem moderação. Incontinenti = imediatamente, já sem delongas. Ex.: Quando vi que Paulo estava incontinente na sua linguagem e em seus modos, afastei-o incontinenti para evitar atritos".
Incontinenti veio do latim e frequenta também o italiano e o espanhol, que são a maioria das primeiras cem páginas na pesquisa pela Google Pesquisa de Livros.
Contudo, outros dicionários grafaram "incontinente", e também, por exemplo, Rui Barbosa [7]
"... as ideias liberais conexas a alguns pontos da reorganização do ensino, e incontinente a bancada conservadora estremeceu".
"Apenas começadas a levantar, ainda em alicerces, as casas em construção encontram incontinente locatários, ou já estão empenhadas a futuros inquilinos".
e Euclides da Cunha [8]
"E vencido o inimigo que podia ser vencido, recuar incontinente ante o inimigo invencível e eterno - a terra desolada e estéril".
"Logo que cai uma chuva nesses pedregosos tabuleiros, de rara vegetação, as águas
seguem incontinente pelos sulcos ou regos, produzindo verdadeiras".
Trito: Triturado, moído, reduzido a pó. (Lat. trito) O mesmo que torturado. [9][10]
Foram encontrados outros usuários consagrados:
Tudo na vida é um lancinar de chagas,
Um revolver de imponderáveis pragas,
Um secreto tormento eterno, [11]
no último crispar da agonia [8]
e neste derradeiro momento,
um lancinar de transes [12]
aqueles lábios que pareciam crispar cintilas nervosas [13]
cedendo
incontinente ante o inimigo invencível e eterno, [8]
trito, triturado, moído, reduzido a pó [14]
pelos beijos vorazes dos vermes,
a elegia do corpo. [15]
1. Massaud Moisés, Dicionário de termos literários, Editora Cultrix, 1997, GPL.
2. Alexandre José Mello Moraes, Elementos de literatura, 1856.
3. Hamílcar de Garcia, Dicionário prático, Companhia Distribuidora de Livros, 1965.
4. Antenor Nascentes, Dicionário do português básico do Brasil, Edições de Ouro, 1966.
5. Osmar Barbosa, Grande dicionário de sinônimos e antônimos, Ediouro Publicações.
6. Antonio Luiz Mendes de Almeida, Atenciosamente: manual prático de redação comercial e oficial, Garamond, 1999.
7. Rui Barbosa, Obras completas, 1942.
8. Euclides da Cunha, Os sertões: campanha de Canudos, Livraria F. Alves, 1963.
9. Francisco da Silveira Bueno, Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, 1963.
10. Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, 1936.
11. Arnaldo Claro de São Thiago, História da literatura catarinense, 1957.
12. Alcides Maya, Machado de Assis: algumas notas sobre o humour?, Movimento, 2007
13. Camilo Castelo Branco, Anathema: romance original, 1858.
14. Francisco da Silveira Bueno, Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, 1963.
15. Manuela Amaral, A elegia do corpo: poemas, 1995.
Elegia: uma forma de poesia clássica que, primeiro, séc 7 A.C., abordava qualquer assunto, passando muito mais tarde, a vincular-se à idéia de lamento e pranto, em canto acompanhado de flauta, em cerimônias fúnebres, permanecendo como forma estrutural de poesia, passando por ensinamentos morais, temas festivos, e, como explica Alexandre José Mello Moraes, [2] em 1856, retorna às origens:
"Entre nós como não há forma particular para esse gênero de poesia distingue se o pela natureza do sentimento que ele exprime e tem se o restringido ao sentimento da dor"
Não apareceu em blogs.
Quem pretende ser escritor e ter uma luzinha do sol que ilumina os livros deve ir tomar conhecimento completo do que é. Vai que uma bela hora recebe um convite para homenagear um alguém recém saído do forno da vida. Não que se vá fazer como está ali costurado, mas se não se tem a base não se há de querer modificar o telhado. Escrever não é seguir regras, é saber como modificar a que os outros criam.
Em um momento de ruptura com regras que nos foram ensinadas, fundir o substantivo no verbo e dizer como se disse, mistura de "eleger" com "elegia".
Lancinar: Golpear; torturar; afligir. [3] Surgiu em alguns blogs apenas, poucos. E não está no Bluteau (1712)
Crispar: Contrair súbita e involuntariamente; franzir; contrair. [4] [5]
Incontinente: Antonio Luiz Mendes de Almeida, [6] em 1999, pretendeu, seguindo uma direção anterior, diferenciar "incontinente" de "incontinenti":
"Incontinente = pessoa sem moderação. Incontinenti = imediatamente, já sem delongas. Ex.: Quando vi que Paulo estava incontinente na sua linguagem e em seus modos, afastei-o incontinenti para evitar atritos".
Incontinenti veio do latim e frequenta também o italiano e o espanhol, que são a maioria das primeiras cem páginas na pesquisa pela Google Pesquisa de Livros.
Contudo, outros dicionários grafaram "incontinente", e também, por exemplo, Rui Barbosa [7]
"... as ideias liberais conexas a alguns pontos da reorganização do ensino, e incontinente a bancada conservadora estremeceu".
"Apenas começadas a levantar, ainda em alicerces, as casas em construção encontram incontinente locatários, ou já estão empenhadas a futuros inquilinos".
e Euclides da Cunha [8]
"E vencido o inimigo que podia ser vencido, recuar incontinente ante o inimigo invencível e eterno - a terra desolada e estéril".
"Logo que cai uma chuva nesses pedregosos tabuleiros, de rara vegetação, as águas
seguem incontinente pelos sulcos ou regos, produzindo verdadeiras".
Trito: Triturado, moído, reduzido a pó. (Lat. trito) O mesmo que torturado. [9][10]
Foram encontrados outros usuários consagrados:
Tudo na vida é um lancinar de chagas,
Um revolver de imponderáveis pragas,
Um secreto tormento eterno, [11]
no último crispar da agonia [8]
e neste derradeiro momento,
um lancinar de transes [12]
aqueles lábios que pareciam crispar cintilas nervosas [13]
cedendo
incontinente ante o inimigo invencível e eterno, [8]
trito, triturado, moído, reduzido a pó [14]
pelos beijos vorazes dos vermes,
a elegia do corpo. [15]
1. Massaud Moisés, Dicionário de termos literários, Editora Cultrix, 1997, GPL.
2. Alexandre José Mello Moraes, Elementos de literatura, 1856.
3. Hamílcar de Garcia, Dicionário prático, Companhia Distribuidora de Livros, 1965.
4. Antenor Nascentes, Dicionário do português básico do Brasil, Edições de Ouro, 1966.
5. Osmar Barbosa, Grande dicionário de sinônimos e antônimos, Ediouro Publicações.
6. Antonio Luiz Mendes de Almeida, Atenciosamente: manual prático de redação comercial e oficial, Garamond, 1999.
7. Rui Barbosa, Obras completas, 1942.
8. Euclides da Cunha, Os sertões: campanha de Canudos, Livraria F. Alves, 1963.
9. Francisco da Silveira Bueno, Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, 1963.
10. Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, 1936.
11. Arnaldo Claro de São Thiago, História da literatura catarinense, 1957.
12. Alcides Maya, Machado de Assis: algumas notas sobre o humour?, Movimento, 2007
13. Camilo Castelo Branco, Anathema: romance original, 1858.
14. Francisco da Silveira Bueno, Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, 1963.
15. Manuela Amaral, A elegia do corpo: poemas, 1995.
Atualizado em: Sáb 20 Dez 2008
Comentários
Bem... mas uma rápida pesquisa num simples dicionário põe ascoisas em ordem: INCONTINENTE!
Um abraço Gilberto; e... parabéns, novamente, pela coluna!
Bem... mas uma rápida pesquisa num simples dicionário põe ascoisas em ordem: INCONTINENTE!
Um abraço Gilberto; e... parabéns, novamente, pela coluna!