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A ENTIDADE

A tarde avançava destemida trazendo o vento gelado que prenunciava uma noite fria. A dança das estrelas cedeu espaço a uma profunda escuridão e não se podia avistar se quer o vôo silencioso da coruja. As ruas estavam desertas e a cidade abandonada, aparentemente seus moradores haviam desaparecido.

No fundo do sofá a menina coberta por grosso edredon mostrava-se hipnotizada por um programa de televisão que assistia absorta. A um canto um gato gordo e cinzento estava adormecido aquecido pelo calor da menina. Seus pais estavam na igreja e chegariam bem mais tarde cumprindo suas obrigações religiosas.

Pela janela podia-se ver as sombras dos arbustos que decoravam os arredores da casa. Mas a menina já estava acostumada a ficar só, dominando seus medos e agarrando-se a companhia fiel de Zongo, seu gato.

Tão atenta estava ao filme que não notou que estava sendo observada por uma sombra na porta da cozinha. Não era possível definir detalhes de seu rosto, apenas a silhueta de um homem alto, provavelmente de terno e chapéu. Baforadas de fumaça demonstravam que possivelmente fumava um charuto.

Os pais adentraram eufóricos  pela casa, contando alegremente os feitos do dia, e mal perceberam a existência da menina buscando logo a cozinha. A fome exigia maior atenção e cuidados, por outro lado as ações junto à igreja dava a sensação de dever cumprido, de fazer o certo, dispensando quaisquer outras atitudes cotidianas, inclusive carinho à própria filha.

Foi quando o pai sentiu o cheiro do fumo e indignou-se. A menina estava fumando e isto era inadmissível para uma família cristã. Sem qualquer diálogo agarrou a menina pelo braço arrancando-a do sofá e puxando-a pelo quarto aos berros clamando clemência do Senhor.

- Hoje não vou bater em você. Estou apenas avisando que ficará de castigo e não se atreva em corromper esta casa. Esta é uma casa de Deus...e você sabe muito bem do que estou falando !

A menina o olhava sem compreender, embora já tivesse se acostumado aos acessos de ira do pai. Naquela noite, porém buscava nos recônditos da memória lembrar-se de qualquer ato que justificasse tal postura. Não encontrou e a indignação aumentou, em especial o ódio por aquele Deus e aquela igreja.

Encostado no guarda roupa o mesmo vulto sorria malicioso, assistindo a cena. Ele sabia bem mais que as aparências. Conhecia os segredos do pai traindo a esposa com outras mulheres, entre uma caridade e outra, após a evangelização deste ou daquele grupo. Sabia também dos desvios financeiros que fazia na igreja no qual era respeitado e considerado exemplo.

A esposa era uma coitada, submissa, fiel, acreditando ser essa a posição da mulher, feita de uma das costelas de Adão. Canalizava toda sua energia para ações determinadas pelos superiores e a própria energia sexual. Sendo o sexo destinado a procriação essa tarefa já estava cumprida, sendo abolido qualquer contato no gênero. Seus desejos, sonhos, fantasias foram lançadas no abismo do inconsciente, considerando pecaminosos, perigosos, armadilhas fatais do chamado inimigo.

Na escola a menina mostrava-se retraída, preferindo brincar solitária e caminhar entre os jardins do colégio, repleto de árvores frondosas, flores multicoloridas e um gramado que se traduzia em isolamento, paz e tranqüilidade.

Foi num desses momentos que viu sentado num banco o homem com seu terno e fumando seu charuto.

- Se a Coordenadora ver o senhor fumando ela vai ficar muito brava...advertiu a menina aproximando-se.

- Sério ? Prometo que ela não ficará sabendo. Vejo você sempre aqui. Prefere ficar sozinha ?, inquiriu ele olhando-a debaixo para cima.

- É. Gosto das árvores...

- Não tenha medo das pessoas, nem todas são iguais ao seu pai ou como sua Coordenadora...há bons amigos para você fazer por aqui – orientou.

- Você quer ser meu amigo ?, questionou sentando-se ao lado.

- Já sou seu amigo...quando quiser falar comigo é só chamar.

- Mas eu não te conheço, como você se chama ?, perguntou curiosa.

- Cada um me chama de um nome. Mas para que seu pai não fique bravo com você, basta pensar em mim...disse ele enigmático e soltando baforadas.

- Nossa você sabe o que a gente pensa ?

- Hummm ...muitas vezes. Não se sinta mais sozinha. Tá vendo aquela menina lá, vestida de azul ? Ela é uma boa amiga para você. Faça logo amizade, pois sua Coordenadora está te observando e logo vai chamar seu pai dizendo que você não tem amigos...Vai lá...converse com ela, ela vai gostar...eu garanto.

A menina atenta a nova amiga correu em sua direção, quando pensou em despedir-se do homem, voltou-se para trás, mas ele não estava mais lá. Sem dar importância a isso, foi em direção a Ana Paula.

Da janela do terceiro andar a Coordenadora a olhava e sorriu ao vê-la dirigir-se ao escorregador com sua amiga.

Um mês depois o pai da menina enfartou. A esposa precisou assumir diversas tarefas antes cuidadas exclusivamente pelo marido e rapidamente inteirou-se sobre as muitas responsabilidades, desde ir ao mercado, pagar contas e zelar pelas atividades na igreja. E foi assumindo as atividades do marido que acabou sabendo das amantes, embora relutasse em acreditar em tais informações e romper relações com algumas pessoas que ousaram alertá-la.

Embora não acreditasse a dúvida persistia e a motivava a estar acessível às informações que vez ou outra chegavam a seus ouvidos. O cenário se tornou mais cruel quando foi chamada à igreja. A pessoa que assumira no lugar do marido havia detectado as muitas irregularidades e possibilidade de fraudes. Ficou estarrecida. Aquele não era seu marido, o homem dedicado a Deus, honesto, íntegro, fiel, verdadeiro. Não cobrava dele perfeição, mas não esperava tantos rombos na sua personalidade.

Mais uma vez, olhando com os braços cruzados, recostado à porta, o homem de terno olhava a mulher debruçada sobre a mesa, em prantos, folheando os documentos que demonstravam um marido corrompido.

Envergonhada, afastou-se da igreja, embora não pudesse acusá-la. O culpado por tudo aquilo era seu marido.

Ele, por sua vez, anunciava que tudo aquilo não passava de ardilosa armadilha do demônio e manteve suas mentiras até o túmulo. Momento em que esposa e filha, abatidas, inconformadas, tristes e desiludidas decidiram ir para outra cidade, começar nova vida.

Hoje a menina já é mulher. Advogada, bem sucedida, casada e mãe de dois filhos, Agnaldo e Guilherme. Não acredita em Deus, nem freqüenta qualquer igreja. Dedica-se fervorosamente à família e ao trabalho.

- Mãe, disse Guilherme o menor, um homem de chapéu falou pra mim que sua vida vai mudar, uma coisa muito boa vai acontecer...

A menina-mulher sentiu um arrepio na espinha enquanto aspirava estranhamente o odor da fumaça do charuto.   

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Atualizado em: Seg 3 Jan 2011

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