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JANUÁRIO E A MULA SEM CABEÇA
Era uma linda tarde de outono.
Januário aguardava ansiosamente a chegada do seu primo Beto, que havia deixado a cidadezinha de Muzambinho ainda criança, para estudar no Rio de Janeiro.
Não tardou quando Januário viu a nuvem de poeira no horizonte. O que significava a aproximação de algum veículo motorizado.
O coração de Januário começou a bater mais forte, tamanha era sua ansiedade. E quando os seus olhos avistaram a tênue mancha amarela no meio da nuvem de poeira, confirmaram suas suspeitas. E logo o táxi estava parado à sua frente e Beto saltava um tanto desajeitado, com câimbras nas pernas por ter ficado longas horas sentado.
Januário correu apressado e tropeçou em uma pedra, caindo bem em frente do primo Beto. Que irrompeu em estridente gargalhada.
Januário levantou-se um tanto sem jeito, sacudiu a poeira e abraçou forte o primo, erguendo-o no ar, e disse sorridente: - Ara, primo, quanto tempo a gente num si vê!
Beto, um tanto formal, fica desconfortável com tamanha demonstração de afeto. Procura afastar-se e estende a mão para Januário. E diz secamente: - Como vai, primo?
Januário percebe o distanciamento do primo e sente um aperto no coração. E imagens da infância invadem sua mente e o fazem lembrar-se dos banhos nus de rio, da iniciação sexual com as vacas e cabritas, das pescarias e de todas as brincadeiras de criança. Mas, logo o saudosismo desaparece e Januário com seu jeito espontâneo, pega a bagagem do primo e diz: - Ara primo... ocê ta danado de elegante. Num vai repará a casa humirde, vai?
Mais tarde, la pelas oito da noite, Januário vira-se para o primo e diz: - Ó primo, eu queria sabê se o primo qué ir numa pescaria? – Claro primo. Precisamos relembrar os velhos tempos. – Antão, vamo prepará o materiár e os lampião, que o cumpadi Zé Matia já ta esperando nóis.
Passados alguns minutos, Januário e Beto estavam com as mãos cheias de varas, iscas, anzóis e lampiões. E enveredaram por uma trilha escura em direção à casa do compadre Zé Matias.
Depois de caminharem por mais de uma hora, chegaram. A casa de Zé Matias, também era modesta. Tinha uma varandinha na frente, que dava para um enorme terreiro, onde outrora se fazia a secagem do café.
Os dois pararam em frente da pequena casa e Januário bateu palmas, chamando: - Ô cumpadi, cumpadi Zé Matia... é o Januário!
A porta foi se abrindo devagar e a figura pitoresca de Zé Matias foi surgindo na penumbra. Parecia assustado e estendeu o lampião para identificar melhor os visitantes noturnos. Então disse: - Se aprochegue, cumpadi Januário. – Eu tô cum o primo Beto... – Se é de paz, pode chegá – disse Zé Matias.
Januário e o primo Beto caminharam a passos lentos, até entrarem na casa. Enquanto Zé Matias os acomodava em um grande banco de táboa.
- Ta animado pra pescaria, cumpadi? – Perguntou Zé Matias – Ara craro que tô cumpadi. E o primo Beto também ta. – Esse é aquele seu primo meio assim – Zé Matias gesticula com a mão – que viajô pro Rio de Janeiro pra aprendê aquelas frescuras da tar de facurdade?
Beto ficou irritado com o comentário de Zé Matias e disse irônico: - Primo meio assim nada. Eu sou é muito homem. Estou até noivo! – Ocê me discurpe o cumpadi primo. É que quando ocê saiu daqui, todo mundo comento que o seu pai tinha te mandado pro Rio pra escondê a tua frescura. – Quer dizer que é isso que falam de mim por aqui? – Num liga não primo – disse Januário – o cumpadi ta cum dispeito porque nunca saiu daqui dessa cidade miseráve. – E, e, eu já fui a Fêra de Santana – diz Zé Matias embaraçado – e quase fiu a Sarvadô.
Enquanto isso, Januário colocava um anzol na linha e verificava a flexibilidade da sua vara de pescar. Então disse: - Ara... vamo deixá de conversa fiada e vamo aproveita a lua cheia pra enche os bornal de peixe omi. – Tem razão primo. Essa conversa está tomando um rumo que não estou gostando. – disse Beto – É, vamo aproveitá a lua cheia. O rio tem um montão de traíra esperando ser apanhada. – respondeu Januário.
Subitamente, fortes batidas acompanhadas de gritos desesperados vieram da porta: “Abri, abri, abri a poirta moço, abri a poirta, que a mula sem cabeça vai me pegá”.
Os três permanecem em silencio, assustados olham uns para os outros e Zé Matias coloca o dedo indicador sobre a boca pedindo silencio. E cochicha: - Oces ouviro? A muié falô mula sem cabeça... – e as batidas frenéticas continuam. Até que Januário diz: - Acho mió nóis abri! – Zé Matias corre para um canto da sala e apanha uma velha espingarda. Então diz: - Abri essa poirta cumpadi, que eu tô preparado!
Januário com os olhos arregalados diz: - Ocê tem certeza? – Zé Matias gesticula positivamente. Então, Januário abre. Uma mulher negra entra correndo e gritando: - Fecha a poirta, moço... fecha pro bicho num entrá!
Os três ficaram estáticos olhando para a mulher aterrorizada.
Januário fecha apressado a porta e passa a mão no queixo, demonstrando certa incredulidade. Então diz: - Ara, muié... acho mió a sora ir la dentro da casinha pra lavá as parte...- diz Januário com um sorriso no canto dos lábios – porque a sora ta toda mijada.
Podia-se notar uma expressão de riso assustado no rosto dos três.
Zé Matias, segurando sua espingarda e olhos arregalados pergunta: - Cês ouviru? A muié falô mula sem cabeça... – Ara, cumpadi Zé Matias... que mula sem cabeça quí nada!
Beto que até aquele momento permanecia calado, disse: - Eu já ouvi falar em coisas desse tipo. Dizem que são espíritos errantes, que assumem formas fantasmagóricas para pregarem peças nas pessoas. – Que isprito errante que nada... – diz Zé Matias – é a própia incarnação do Demo.
Januário caminha pela sala e diz: - Pelo sim pelo não, acho mió um de nóis ir lá fora dá um jeito no bicho... – E quem é o maluco que vai la fora – falou Zé Matias assustado.
Januário, como todo bom matuto, que de tolo não tinha dada, disse imediatamente: - Craro que é o cumpadi Zé Matias...
Zé Matias aponta para si próprio e pergunta: - Mas porque eu?
Januário bota uma das mãos no bolso, dá um passo à frente e diz: - Ara, ômi... quem é o ômi, sujeito macho, mai valente daqui das redondeza? - Sô eu cumpadi – respondeu Zé Matias – Quem é o ômi, que arrancô o Demo de baixo da pedra puxado pelo rabo? – Fui eu cumpadi – respondeu novamente Zé Matias – E quem é o cabra macho, que vai lá fora dá um jeito no bicho? – silencio – Eu pregunto de novo... quem é o ômi muito macho, que vai la fora botá um cabresto na mulinha? – silencio – É ocê, cumpadi Zé Matias!
Zé Matias estava assustado demais para responder. Então, entra a mulher negra, que já havia se lavado, mas ainda estava fedendo. Então Beto pergunta: - Minha senhora, diga o que realmente viu!
A pobre mulher estava realmente assustada. Aproximou-se de Beto e agarrou-o pelo braço dizendo: - Moço, eu vi moço... uma mula preta sem cabeça. Eu tava indo la na beira do rio apanhá água pra fervê um café, quando vi o bicho na tria... ela bufô pro meu lado e impediu a minha passage de vorta pra casa... intão, eu corri praqui. Porque sei que o seu Zé Matias é ômi distemido e podia me protegê.
Januário estava prestando muita atenção, e aproveitando a deixa, diz incisivo: - Intão, eu num disse? O cumpadi Zé Matias é o ômi certo... é ele que vai la fora dá um jeito no bicho.
Contra fatos não há argumentos. Zé Matias percebeu que havia sido vítima das suas próprias mentiras. E não havendo outro jeito, ele disse: - E cumpadi... ocê tem razão. Num existe ninhum outro ômi aqui nas redondeza, que seja capaz de infrentá um bicho desse... eu vô lá. O cumpadi Januário pega aquela cartuchera 28 alí na parede, pega um outro lampião e mi dá cobertura.
Assim fez Januário. Armou-se com a velha espingarda e o lampião, e acompanhou Zé Matias até a varanda.
Zé Matias iluminou o terreiro limpo e caminhou intrépido em direção da vegetação. Januário observou-o até desaparecer mata a dentro.
Passaram-se uns dois minutos, quando Januário ouviu dois disparos. Os cabelos arrepiaram e as pupilas dos olhos dilataram. Logo a seguir, ouve os estalos da vegetação quebrando e os gritos do compadre Zé Matias, que dizia: - Abre, abre a porta cumpadi, quí o bicho vem aí.
Januário caminhou até a metade do terreiro, engatilhou a espingarda e ficou parado, estático, enquanto Zé Matias passava apressado por ele e entrava aterrorizado na casa.
Passaram-se alguns minutos e o susto, quando todos perceberam que Januário havia ficado do lado de fora. Quando Beto perguntou: - Cadê o primo Januário?
Os três se entreolharam espantados com a ausência de Januário, quando este entra sorrindo.
Zé Matias com os olhos esbugalhados aproxima-se de Januário e pergunta: - Do que é que o cumpadi ta si rindo?
Januário, ainda com o sorriso nos lábios, diz: - Ara, sô... que diabo de mula sem cabeça que nada... ocês são um bando de troxa... era somente um boi preto pastando grama. Como ele tava cum a cabeça baixa, o cupim dele paricia um pescoço sem cabeça... ocês são memo uns troxa!
Nem sempre o que o coração sente, é o mesmo que os olhos vêem.
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