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Memórias em Ruína - Cap. 2

Capítulo II


Nunca soube o que aconteceu ao certo entre meu pai e os Mattos durante a conversa que tiveram na construtora no dia da festa. Mas a nossa rotina mudou desde que voltamos mudos da construtora para casa. Eu quis quebrar o silêncio por minha curiosidade sem fim, mas mamãe não me deixava falar. Ela sabia o que tinha acontecido sem que meu pai precisasse lhe explicar. Ela lia em seus olhos que a negociação dera errado. Muito provavelmente o senhor Álvaro não quis vender a sua parte ao meu pai. Mas qual o motivo de tanta raiva na expressão carrancuda de meu pai era um mistério de difícil solução para minha cabeça juvenil. Respeitei-o, calando-me, mas meus pensamentos voavam como pássaros libertos para dentro da sala de reuniões a fim de descobrir por mim mesmo o que acontecera, entretanto as janelas estavam trancadas e meu vôo terminou breve. Não pude entrar.

Naquela noite meus pais brigaram. Não, na verdade apenas meu pai brigou. Do meu quarto eu só ouvia sua voz esbravejar impropérios cruéis a minha pobre mãe. Dela só se ouviam os soluços magoados de um choro contido. Discutiram por muito tempo, mas para mim o tempo foi muito maior do que o verdadeiro transcorrido no relógio de ponteiros ao lado de minha cama.

Eu quis impedir que ele a maltratasse, quis entender o que ele dizia, mas suas palavras eram grunhidos viscerais piores do que um animal selvagem. Parei à porta do quarto, depois de atravessar o longo corredor que separava nossos quartos. Ouvi o barulho de vidro se partindo e um grito. Tive medo. Corri como um cachorro magoado de volta a minha cama e puxei o cobertor sobre a minha cabeça. Voltava a ser menino, uma criança em desespero rezando para que o monstro debaixo da cama não viesse me devorar; rezando para que o monstro do armário não me levasse para o seu mundo de dor; rezando para que meu pai não tivesse machucado minha mãe; rezando para que eu estivesse no meio de um pesadelo; rezando para acordar logo; rezando para esquecer meu medo.

Adormeci depois do silêncio que se instaurara na casa. Pensei que nunca fosse conseguir dormir naquela noite. Meu sono foi perturbado. Rolei na cama de um lado para o outro incomodado, nauseado. Acordei tarde no dia seguinte. Era domingo. Meu pai não havia me chamado para a caminhada que fazíamos desde que eu era um menino e ia agarrado às suas pernas. Estava triste, nervoso, banhado de suor. Naquela noite, tive milhares de pesadelos.


***


Procurei por meu pai tão logo me pus de pé, mas não o encontrei em lugar nenhum. Quando vi que a garagem estava vazia, corri para meu quarto com vontade de chorar, mas ao passar pela porta do quarto deles, ouvi um choro muito baixo. Hesitei em bater, porque não queria na verdade saber o que acontecia, embora tudo me levasse a crer que o devesse saber.

Quando voltava ao meu quarto naquela que até então havia sido a pior das manhãs de domingo, minha mãe abriu a porta. Virei meu corpo numa mistura de excitação e medo em direção à porta. Minha mãe tentou voltar para o quarto, mas eu já tinha visto o que ela tanto tentava me esconder. Subitamente fui invadido por uma ira nunca antes sentida, meu sangue ferveu a uma temperatura mortal, senti minha boca espumar como a de um cão raivoso, pela primeira vez na minha vida quis matar alguém, pela primeira vez na vida odiei meu pai, pela primeira vez na vida quis chorar, e chorei.

Os olhos de minha mãe traduziam vergonha e dor diante de mim, parado a sua frente sem saber o que fazer, como fazer. Eu chorava, ela chorava, chorávamos pelo mesmo motivo, porém por dores diferentes. A dor de minha mãe já não era física, não era seu olho arroxeado, nem os hematomas em seu braço que lhe faziam chorar; a dor de minha mãe era íntima, nascida de fora, mas crescida por dentro, chegando à maturidade em sua alma. Não era seu corpo que doía. A minha dor também não era física, mas vinha bruta da minha consciência, transformando-se em desgosto. A minha dor somava-se a dor de minha mãe, construindo uma dor única: a decepção.

Queríamos dizer mil palavras um ao outro. Havia muito a ser explicado, entendido, questionado, mas estávamos parados, nossos olhos penetrados no outro, dentro do outro como se voltássemos a ser um, como se eu voltasse ao seu ventre, como se recriássemos o cordão umbilical partido quando nasci. As palavras nos faltavam, apesar de eu querer interrogá-la, de querer que ela me detalhasse cada momento de seu próprio sentimento. Eu precisava saber o motivo de ter acontecido aquele tipo de agressão. Eu queria vingá-la e ao mesmo tempo vingar-me. Meu pai não poderia ter deixado aquelas marcas no rosto de mamãe, somente um monstro faria ato tão miserável a uma mulher delicada como mamãe, e meu pai não era um monstro, não meu pai. Ele era um homem superior à média, era um homem de destaque, invejável e invejado, não um ser que é tomado por instintos animalescos, capaz de machucar a mulher que ele realmente amava sem nenhum motivo. Aquilo estava errado, e eu só queria saber o que motivara aquilo, o que o levara a bater em minha mãe, a magoá-la, a humilhá-la de tal maneira, ignorando que ela era a mãe de seu filho, uma mulher que lhe dava a vida sem nada pedir em troca.

Minha mãe me estendeu os braços machucados e forçou um sorriso tímido para mim. Deixei-me ir em sua direção, abraçando-a. Senti naquele instante a paz. Seu corpo quente protegendo meu corpo, seu calor me esquentando, seu carinho me acalmando. Aos poucos fui levado a uma nova realidade, deixando as máculas presas nesta. Ia ao meu mundo de sonhos antes que se acabassem, pois lá, eu sabia, seria feliz. O abraço caloroso de minha mãe era único, trazia nele tranqüilidade e amor, amenizando a dor que eu tinha. Nós dois chorávamos juntos e ríamos juntos de pequenas coisas dentro daquele abraço.

Ela me puxou pelo braço para dentro do seu quarto e juntos deitamos na cama. Nossos corações doíam da mesma dor, do mesmo tormento, da mesma mágoa contida em nossos corações sofridos. Meu pai nos tinha decepcionado de tal maneira que dificilmente conseguiríamos olhar para ele com os mesmos olhos de admiração, de devoção como olhávamos antes. Tudo mudara a partir daquela manhã cinza de domingo. Mas outra decepção ainda viria, outra decepção ainda mais dolorida viria assolar nossas vidas, impregnando-a com uma nódoa triste e impossível de mudar.

Enquanto passávamos o dia na cama, imersos em tristeza e ressentimento, meu pai esteve fora de casa. Não voltou para o almoço, nem chegou para o jantar. Quando vimos o clarão do farol do carro iluminar as janelas da frente de casa, finalmente conseguimos fechar os olhos; quando o motor enfim cessou seus giros barulhentos, eu finalmente consegui dormir, embora quisesse descer e lhe surpreender ainda na escada. Queria tomar satisfações que não me cabiam tomar, queria revidar a dor de minha mãe, mas não tive coragem para encará-lo, não tive coragem de enfrentá-lo. Mal ou bem, ele era o meu pai, o meu herói em decadência, mas ainda assim o meu herói.

Encontrei-o na cozinha pela manhã do dia seguinte. Estava pálido e pesaroso como alguém que acabara de perder um ente querido. Eu já experimentara o gosto amargo da morte anteriormente, portanto a imagem do meu pai dessa vez não me pareceu tão diferente de como havia sido quando meu avô morreu. Mas meu avô já estava morto, minha avó também estava morta, não havia portanto por quem chorar as mágoas de um luto real. Devia ser o peso do arrependimento,eu imaginei, sentando-me à mesa.

Meu pai ergueu a cabeça a me ver sentar de frente para ele. Não disse uma palavra, não fez nenhum ruído. Apenas deixou cair por um instante seu olhos cansados sobre mim e tornou a baixá-los como se estivesse pensando sobre seus ombros;

— Bom dia — eu disse apenas por dizer, para não lhe faltar com a educação que tive. Por mais raiva que sentisse, não poderia ignorar a minha formação, meus modos diante das pessoas.

Mas ele não me respondeu. Continuava naufragado em seus pensamentos, perdido num oceano imenso de problemas que somente ele podia enxergar. Nunca vi meu pai daquela maneira: frágil, atordoado e triste. Até então sua figura era de respeito, força, indiferença. Mas dali em diante seus olhos eram sem vida, suas expressões sem cor, seus interesses negros. Ele nunca mais voltou a ser o pai que conheci e aprendi a admirar. Tomei o café em silêncio. Eu calado, meu pai mudo. Havia um abismo entre nós, um abismo profundo e sombrio que jamais seria iluminado. Permanecemos os dois, um diante do outro, como se nem um, nem outro estivesse ali.

Não só entre nós dois mudara a relação. Meu pai era outro homem desde a volta de Júlio da Europa. Se comigo mal dirigia a palavra, com minha mãe era direcionada sempre com amargura e raiva, descontando sobre sua fragilidade as decepções que a vida lhe dera. As brigas entre eles em casa eram rotineiras. Bastava um olhar diferente de minha mãe para que ele elevasse a voz e bradasse impropérios cruéis. Nunca mais encostou as mãos em seu corpo como da vez em que lhe marcara o olho, mas a dureza de suas palavras era tão, ou mais, dolorosa quanto os bofetões que lhe dava em pensamento. A beleza de nossa vida morria diariamente. Não havia mais harmonia em nossa casa, não existia mais amor. As manhãs de domingo morreram. Morreram sem um velório apropriado, sem um enterro memorável.

Não demorou muito para que nossa estrutura familiar ruísse. Os alicerces já estavam completamente abalados desde a manhã em que meu pai batera em minha mãe pela primeira vez. Eu não conseguia entender o porquê de ele descontar nela suas frustrações. Minha mãe não gritava, não procurava se defender; apenas se calava a cada mácula, a cada agressão, fosse ela verbal ou não. Eu já não era mais um menino inocente. Começa a ver que o mundo não era feito de sonhos e ilusões. A mudança de comportamento de meu pai refletia também em mim, que já não queria mais ser como ele, apesar de seu jeito influenciar o meu, num molde imperfeito. Sem me dar conta, eu também me tornava agressivo com outros meninos do colégio, também tinha uma língua ferina em meu discurso. Assim, mesmo contrário às suas atitudes, eu amava meu pai, queria ser meu pai...

Poucos meses depois da volta de Júlio Mattos, o velho Álvaro teve um infarto e logo morreu. Todos nós vestimos o luto por respeito ao homem que juntamente com meu avô fez o nome da empresa, dedicando-lhe a vida. Meu pai sentiu novamente a morte como a perda de um ente próximo, afinal mesmo sem terem o mesmo sangue, o velho o viu crescer ao lado do meu avô, ajudou meu pai na transição da empresa, tratava-o como um sobrinho, mas nunca como um filho, apesar de meu pai ter sido mais presente em sua vida do que o seu próprio. Álvaro Mattos morreu. O velório foi longo e triste. Choramos nós com muito pesar, inclusive eu, que naquele momento compreendia o verdadeiro sentido da Morte, sem fantasia ou eufemismo; e não gostei nenhum pouco.

Enquanto minha família sentia o peso da perda, estranhamente Júlio Mattos não parecia abalado. Não sorria, obviamente, mas também não parecia tão comovido como um filho ao perder o pai. Podia-se facilmente ler em seus olhos que estava aliviado, que se livrara de um fardo. Eu percebi claramente que ele estava satisfeito com a morte do pai, meu pai percebeu ainda mais claramente que Júlio estava satisfeito, não com a morte do pai, mas com o caminho aberto para pôr seus planos em prática.

Comprovamos suas intenções no fim da semana.


***

A escuridão me devora como um monstro voraz. Tudo aqui, à noite, traz o medo. Cada barulho mínimo é apavorante; cada sombra atormenta; cada voz que ouço por detrás da porta me arrepia os pêlos de todo o corpo. Imóvel nesta cama dura, às vezes me sinto novamente um menino, temendo os monstros que se escondem sob as camas, dentro dos armários, prontos para nos atacarem quando dormimos.

Pior do que o medo do obscuro é a certeza de que a Morte em breve baterá à minha porta entreaberta. Não poderei fazer nada para me defender, para impedir sua visita, pois tenho hora marcada para morrer. A Morte, que tantas vezes cruzou minha vida, chegará em breve para levar-me com ela. Desta vez não a verei tocar meus queridos, mas somente eu, homem decadente, já moribundo, tentando entender de fato o que me trouxe até aqui. Mas o entendimento dos atos é compreensível até mesmo a um idiota, preciso na verdade aceitá-los, revisitando uma vida construída sob o caos, sob a maldade, sob mentiras, sob sofrimento que causei. Não quero minha absolvição nem que a pena seja abrandada, não tenho nenhuma pretensão além de julgar-me eu mesmo. Todo sofrimento é meu, toda a dor é minha.

A enfermeira da noite ainda não veio. Estou esquecido neste quarto, entregue aos meus próprios pesadelos.

***

Em respeito ao luto de Álvaro Mattos, a construtora fechou as portas durante três dias. Meu pai ficou em casa durante todo esse tempo, mas não conosco, trancado em seu escritório, trabalhava dia e noite. Quando se juntava a mim e a mamãe, não ficava por muito tempo. Seu rosto estava sempre aflito, como se estivesse preocupado com o futuro, talvez prevendo algo ruim em relação a Júlio.

Numa das poucas vezes que nos sentamos juntos na sala de leitura, minha mãe o interrogou.

— O que vai acontecer agora que o Álvaro morreu, Marcelo?

Meu pai levou as mãos à cabeça, olhou fixo para lugar nenhum.

— Eu realmente não sei, Ângela. Tenho esperanças de que o Júlio caia em si e me venda a parte que lhe cabe na construtora. Ainda não entendi o que ele pretende. Com certeza não é dar seguimento aos negócios do pai, porque em nenhum momento ele se interessou pelo nosso trabalho.

— Quem sabe ele não se interesse agora.

— Nunca. Aquele imbecil europeizado não saberia lidar com a menor das atribuições que compete a um administrador. A construtora em suas mãos irá à falência em menos de um semestre. Seria muito mais fácil ele me vender suas ações agora que a empresa ainda pode respirar, mal, mas ainda pode.

— Não entendi. Respirar mal? — Minha mãe franziu a testa.

— É isso mesmo, Ângela. Estamos em uma fase muito crítica na construtora. Se nos atrasarem mais um mês no pagamento, entraremos numa situação bem delicada. Pelo que eu conheço do Júlio, ele ignorará qualquer tipo de problema e fará loucuras financeiras. Não temos mais meios de manter as regalias e altos salários, não há mais como ostentar em nada. Inclusive aquela estúpida recepção foi um erro e abalou nossas reservas financeiras. Sem contar os empréstimos no banco, a nossa situação já era preocupante.

— Marcelo, se tudo está a ir mal, por que você quer tanto comprar a empresa?

— Eu prometi ao Manuel que ela seria dele um dia. Tenho certeza de que se não houver nenhuma interferência, eu posso reverter essa situação negativa. Com meus projetos, em pouco mais de um ano já voltaremos a ter lucro. Em dez anos seremos novamente a maior construtora da região. Mas se a deixarmos nas mãos do Júlio, nada disso acontecerá.

— Não seria melhor abrir outra empresa? Pense bem, meu amor, você começaria tudo a sua maneira, sem que ninguém se intrometa nos seus negócios. Por que você não vende a sua parte ao Júlio e deixe que ele afunde sozinho?

— Nunca! — Meu pai bateu os pés no chão com violência. Seus olhos flamejavam com fúria. Minha mãe se encolheu no sofá com medo da reação de meu pai. — Nunca, ouviu, eu nunca deixarei o esforço do meu pai ser em vão. Eu jamais entregarei a construtora para ninguém. Você deve estar louca em pensar que eu deixarei acontecer conosco o que aconteceu com você, desprezada, roubada pela própria família. A Junqueira & Mattos é minha, eu não a perderei para um idiota qualquer.

— Calma, Marcelo — minha mãe disse chorosa — eu me expressei mal. Mas se ele não aceitar sua proposta?

— Ainda restará uma alternativa, mas dificilmente terei recursos para levá-la adiante. Se a construtora tiver seus títulos tomados por cautela pelo banco, eu posso tentar comprá-los antes que aconteça um leilão. Mas essa é a última possibilidade a ser tentada.

A conversa foi interrompida, quando uma de nossas empregadas informou a meu pai que Júlio estava ao telefone. Lembro, como se fosse recente os anos que se afastaram, do longo silêncio que se deu em nossa casa, a partir do momento em que ele se levantou e saiu da sala. Mamãe e eu nos olhamos preocupados e permanecemos mudos como duas estátuas sem vida.

Ele não voltou mais à sala depois de conversar com Júlio. Passou pelo corredor apressado e sem entrar, disse a minha mãe:

— Amanhã bem cedo conversaremos pela última vez.

— Estou com um mau pressentimento, Marcelo.

— Eu também — ele respondeu pesaroso, dando-nos as costas para sumir em seu escritório.

Mais tarde, eu não conseguia dormir. Assustado com qualquer ruído, com qualquer sombra, remexia-me na cama como se estivesse deitado sobre mil formigas ruivas, que picavam minha pele, causando uma dor descomunal. As horas eram lentas, arrastadas. Levantei-me e fui ao escritório para pegar um livro que me levasse ao mundo dos sonhos, mas esbarrei na porta trancada. Meu pai ainda estava lá. Devia ser mais de três da manhã, e ele ainda estava lá a fazer não sei o quê. Supus que avaliasse seus títulos, que estivesse a estudar uma forma de convencer o novo sócio a vender-lhe o controle da construtora, uma forma de levar a promessa que me fizera anos antes acontecer, uma maneira de deixar registrado o nome de nossa família às gerações futuras. Não quis incomodá-lo, por isso voltei ao meu quarto e aos meus fantasmas. Eu sabia que algo iria acontecer. Eu sabia que nossas vidas mudariam, mas nunca imaginei que a mudança que seria tão cruel e drástica.

***

Por mais que eu me esforce para fazer explodir em meu peito um grito bestial, o resultado do esforço é nulo, mas, em conseqüência, extremamente doloroso. Que importa? As dores são constantes. Um grito no escuro não faz diferença quando o que sobra da vida é treva. Eu tento gritar, mas minha voz morre na garganta, como se me estrangulassem, como se me enfiassem um pano sujo que me entupisse a boca.

Eu quero um cigarro. Como eu quero tragar a fumaça, encher os pulmões e, num sopro de prazer, encher este maldito quarto de fumaça! Eu quero um cigarro, meu último desejo. Que seja! Eu só queria sentir o gosto amargo da nicotina em minha boca mais uma vez. Maldito corpo arruinado, és o culpado da minha morte sem gozar pela última vez o prazer de um bom trago. Não sei o que me foi mais doloroso neste fim de vida. Não sei o que me causou mais pavor quando o doutor me sentenciou:

— Senhor Junqueira, o caso é grave.

— Quão grave doutor?

— Extremamente.

Silêncio entre nós dois. Ele continuou.

— Eu sinto muito, mas o câncer está num estado bem adiantado.

Engoli em seco.

— É possível operar.

— Inviável. Seria um risco desnecessário. Não há como fazê-lo regredir. O tumor é grande demais para uma intervenção cirúrgica.

— Qual a real situação, doutor?

— Seu pulmão esquerdo está arruinado, o direito muito comprometido; por isso o senhor tem tanta dificuldade para respirar.

— Compreendo...

— Não é só isso, senhor Junqueira.

— Ainda há mais?

— Sinto em dizer que sua laringe também foi atingida. O senhor sempre teve essa voz rouca?

— Não, doutor. Pensei ser um calo.

— Não, senhor, é o grau avançado do câncer.

— O que o senhor sugere que eu faça?

— Não há muito a se fazer. Mas podemos prolongar sua vida com sessões constantes de quimioterapia, para tentarmos conter o avanço do câncer.

— Prolongar minha morte, provocar mais sofrimento... Quanto tempo?

— Não posso precisar, senhor. Algo em torno de seis meses ou quem sabe um ano...

— Preciso de um cigarro! Posso?

— Não o aconselho a fumar.

— Entendo... É proibido fumar nas dependências do hospital, não é mesmo?

— O senhor não me entendeu...

— Entendi perfeitamente, doutor. O Ministério da Saúde Adverte: fumar causa câncer. Acho que é um pouco tarde para isso.

— A hora não é para brincadeiras, senhor Junqueira.

— Não brinco, doutor.

— Se o senhor fumar um cigarro apenas pode ter um colapso. Um único cigarro pode matá-lo.

Silêncio. O mundo se fez mudo enquanto eu era sentenciado por aquele homem de meia idade, vestido de branco dos pés à cabeça, sentado atrás da mesa, com ar de piedade e punição. Minha vida estava acabada. Eu tinha meus dias contados. A partir daquele instante eu soube que iria morrer. E pior do que morrer era ser privado da única coisa que ainda me dava um mínimo de prazer.

— E agora, doutor, o que eu faço?

— Acredita em Deus?

— Não, doutor! Eu não acredito.

— Então nem rezar adiantará.

Tive vontade de chorar de verdade depois de anos de seca em meu rosto. Desde a noite que meu pai voltara da construtora depois da reunião com Júlio, eu nunca mais desprendi sequer uma lágrima. Naquela noite minhas lágrimas secaram, minhas retinas secaram para a dor de tanto sofrer. Mas ao ouvir o parecer do médico, eu tive vontade de chorar. Mas impedi que as lágrimas brotassem em meus olhos fundos. Fui forte, fui tolo, fui eu mesmo, fui o monstro que me tornei.

— Marcamos as sessões de quimioterapia, senhor Junqueira?

Parei para pensar. O quão valeria a pena prolongar o óbvio. Todos morrem um dia. Para morrer basta estar vivo. Pessoas morrem diariamente das mais diversas causas. A morte não escolhe ninguém, leva qualquer um, do velho ao novo; do doente ao saudável. Todos nós um dia vamos ter com ela, não há fuga para a única certeza da vida. Se eu iria morrer, seria com dignidade. Eu não quis perder os cabelos, nem ter um fim de existência entrevado como um vegetal a partir daquele dia. Não se foge ao destino... Ele errou no tempo, durei mais do que o previsto talvez por não sofrer as mazelas da radiação intensivamente como ele me recomendara... Talvez fosse melhor ter menos tempo do que padecer como agora. Pensando bem, eu escolhi errado o meu desfecho.

— Não, doutor. Eu quero terminar o que me resta com dignidade.

— Tem certeza?

— Absoluta.

Eu deveria ter escolhido a morte rápida. Mas parece que Deus resolveu se vingar de mim, prolongando ainda mais o que deveria ser rápido. Pessoas morrem facilmente, eu não morro. Definho diariamente, seco como uma flor entregue a própria sorte debaixo de um sol de verão tropical, quarenta graus à sombra, sem água.

Sai do consultório arrasado, destroçado por dentro, por fora. Andei como uma barata tonta pelas ruas, sem saber para onde ou por que andava. O mundo se tornou nebuloso, eu não via direito, eu não respirava direito, eu mal me agüentava de pé, mas andava como se os meus passos amenizassem as dores fortíssimas que me levavam o tino. Eu estava para morrer... mas não morri ainda.

Naquela noite, ao chegar a minha casa, na solidão completa da velhice impiedosa, eu chorei. Chorei todas as lágrimas que segurei por décadas de sofrimento. Eu chorei como o menino tolo que fui. Eu chorei de arrependimento, eu chorei de desgosto. Eu chorei de medo.

***

Pela manhã, tão logo amanhecera, ouvi pelas paredes frias do meu quarto o som do carro aumentar para em seguida diminuir seu barulho. Corri para a janela na esperança de ver meu pai, desejar-lhe boa sorte, mas somente a cinza da fumaça restara à minha despedida. Meu pai já estava longe, ganhava velocidade, desaparecia pela névoa tristonha que caía como um manto sombrio sobre a cidade, sobre casa, sobre mim e minha angústia.

Era ainda muito cedo, e eu não dormia. A casa dormia inteira, não havia passos no andar de cima, não havia passos no andar de baixo. Minha mãe dormia no quarto ao lado talvez por esgotamento físico, talvez por esgotamento mental. Minha mãe dormia enquanto meu pai buscava realizar o seu sonho em perigo. Minha mãe dormia, na verdade, para não sentir as dores que a corroíam no peito sofrido, dormia para esquecer as mágoas que minavam sua alegria. Os empregados também dormiam, não porque minha mãe ainda não exigira o seu café, não porque eu ainda não havia descido à sala de jantar para o desjejum. Os empregados dormiam por terem, como eu, passado a noite às claras, atentos às exigências de meu pai, que não dormiu na noite passada, que não dormiu na retrasada, que não dormia havia dias; noites sob a luz amarelada de seu escritório, debruçado sobre os livros de contas, encarcerado em seus temores, consumido pela raiva que lhe brotava por dentro e acumulava, enchia, transbordava de ódio pelos seus olhos contundentes.

Com a casa ainda em sonhos, tive como átimo inconseqüente a curiosidade de meter-me nos negócios de meu pai. Caminhei pelo corredor entre os quartos pisando leve, desci as escadas sem estalar as madeiras dos degraus, guinei pelo corredor do andar de baixo e parei de frente à porta dó escritório. Sem fazer nenhum ruído, girei a maçaneta e entrei como um ladrão às escuras. Contornei a mesa de meu pai e sentei-me em sua cadeira. Ali, tomando o lugar de meu pai pela primeira vez, vi o mundo com sua óptica. Senti-me respeitado, senhor de posses, dotado de respeito, homem importante. Tinha meus quinze anos, mas envelheci o espírito sobremaneira naquele curto espaço de tempo em que brincava ser quem um dia eu era preparado a me tornar. E gostei disso.

Havia um livro de contas aberto no centro da mesa. Abri-o por curiosidade. Altos valores em depósitos ali anotados, transferências em quantias enormes. Era muito dinheiro. Dava-me conta de como éramos ricos, de como tínhamos uma vida superior à maioria da população. O montante era suficiente para construir uma nova mansão, comprar fazendas e nunca mais na vida trabalhar. Mas a cabeça do homem é interessada apenas pelo dinheiro. Se quer mais, sempre queremos mais, mesmo que nunca consigamos gastar um décimo daquilo que juntamos por toda uma vida. Eu queria mais, acrescentar mais alguns zeros àquela absurda quantia que me faziam os olhos brilharem na ganância. Já não era mais um menino, tornava-me um homem prematuro. Imaginei-me um pouco mais velho, com a barba crescida, com o corpo mais largo, com a voz mais grossa, sem que desafine como um piano desregulado. Entrava em casa pisando forte, de nariz empinado como se vivesse a olhar com soberania. Dava boas noites a minha mãe já mais enrugada; cumprimentava meu pai, que na sala fumava prazerosamente o seu havana, enchia um copo de uísque e sentava ao seu lado para conversarmos sobre os valores monetários e o quanto aumentamos o nosso patrimônio.

Naqueles dias de amargura, eu sorri esperançoso. Sonhava acordado e me satisfazia com as imagens surgidas em meu pensamento. Não mais queria a empresa porque meu pai me preparava para ela desde que nasci, eu a queria tão-somente por mim, por minha vontade, por minha ganância e o desejo imenso de dobrar, triplicar, quadriplicar o que tínhamos.

Eu sonhava acordado. O sorriso aumentava em meu rosto. Eu chegava a minha casa e era recebido com alegria por uma jovem magnífica. Ela caminhava em minha direção como se bailasse um minueto. De braços abertos e um sorriso tenro, ela me enlaçava nos braços e me beijava a boca com paixão. Seu rosto era lindo, parecia uma boneca de rara porcelana com duas estrelas nos olhos a brilharem por mim, somente por mim. Eu apertava seu corpo esguio. Minhas mãos desciam-lhe à cintura. Ela arfava por mim. Suspirava de contentamento enquanto a levava para o quarto e nos amávamos.

Virei mais uma página do livro. Meu sorriso não cabia em meu rosto. Era uma sensação mágica de felicidade. Algo que não sentia desde que o Júlio regressara de sua vida na Europa.

Eu também poderia ir à Europa. Embarcava num grande navio com uma cabine exclusiva. Atravessava o oceano. Desembarcava no Porto e gozava dos prazeres lusitanos, acompanhado do famoso vinho e das iguarias culinárias. Depois seguia para a Espanha, onde caminhava pelas ruas de Madri e me deitava com belas espanholas. Quando saciado das castanholas, continuava a viagem até chegar à Itália para assistir a uma ópera famosa, passeava pelos canais de Veneza, acompanhado por uma bela italiana. Terminava minha viagem em Paris, arrepiado pela beleza Louvre. Eu também iria à Europa como foi o Júlio. Voltava experiente, maduro.

Outra página do livro me indicava maiores quantias. Eu me regozijava. Teria um filho. Ele seria lindo. Eu o carregava no colo. Brincava com ele nos jardins de nossa casa. Juntos, construíamos a melhor casa da árvore que uma criança poderia sonhar. Eu o ensinava a vida, o ofício. Preparava-o para me substituir um dia como meu pai fazia comigo. E era ele que anos mais tarde estaria sentado à mesma mesa em que eu sonhava acordado. Seria ele que chegaria da construtora e se sentaria ao meu lado para fumar um charuto e beber uísque, como fizera meu avô com meu pai, como meu pai em breve faria comigo, como eu faria ao meu filho, como meu filho também faria com meu neto.

Cheguei à última página. O sorriso em meu rosto desapareceu por completo. Roubaram-no. Em seu lugar surgiu uma expressão confusa, preocupada. Voltei às páginas que saltei em delírio e meus olhos quase saltaram pelas órbitas. Os cálculos. Meu pai errara nos cálculos! Não podia ser verdade o que havia lido. O montante diminuíra drasticamente na última página. Toda a fortuna reduzida a um valor em vermelho e um campo em branco. Não havia mais nada.

Pus-me a calcular os valores. Entradas e saídas. Saída, na última página do livro de contas havia o registro de saída de todo dinheiro que tínhamos. Mas antes que eu pudesse concluir o que foi feito do meu futuro abastado, minha mãe me surpreendeu debruçado sobre os livros de meu pai. Ergui os olhos assustado. Ela vinha em minha direção com olhos de reprovação. Pegou-me pelo braço, erguendo-me à altura dos seus olhos. Deu-me um forte tapa no rosto.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Não era a dor que me fazia chorar, era o desgosto e o medo. Nunca antes minha mãe havia levantado a mão para me bater. Era a primeira vez que experimentara o peso de suas finas mãos. Pareceu-me o fim do amor que tinha por mim. Angústia. Meu peito doeu como se houvesse penetrado um punhal em meu coração. Mal pude respirar. A face ardia, o espírito chorava. A dor que eu senti talvez fosse a dor que ela sentira quando meu pai deixara cair sobre ela a mão. Nesse instante inesperado percebi que o mundo era injusto, que as pessoas são injustas, que o amor é injusto.

Olhando para mim com raiva, minha mãe tomou o livro de minhas mãos e gritou:

— Você quer que seu pai lhe bata, Manuel?

Não consegui respondê-la. Minha voz se perdera dentro de mim.

— Nunca mais mexa nas coisas de seu pai. Isso não diz respeito a nós.

Eu quis gritar. Eu quis questioná-la. Por que não diz respeito a nós se ele me prometera a sua herança? Por que eu não podia estudar os livros de contas, se aquelas contas também eram minhas? Que direito ela tinha de me reprimir por querer entender o que se passava conosco?

— Vá para o seu quarto e nunca mais mexa nas coisas de seu pai! Nunca mais!

Jamais a ouvira falar nesse tom. Estava transtornada como se eu houvesse cometido um crime grave. Suas palavras, seu tom, tudo me machucava como golpes desferidos com violência por um carrasco impiedoso em masmorras medievais. Tomei coragem, venci meu espanto e minhas debilitações.

— Não! — Gritei também, como se meu grito rompesse as amarras da inocência, libertando o homem bruto do torpor. Minha voz ecoou furiosa pela casa, tão alta e ressentida que nem mesmo os mortos, se pudessem, deixariam de ouvi-la. — Não saio!

Ao me ouvir tão decidido, ela largou meu braço, recuando um passo. Seus olhos refletiam o espanto de minha atitude tão diversa daquela que sempre fora acostumada a ver. Eu que jamais a respondi, gritava como um bárbaro no campo de batalha, acuando os inimigos antes do golpe mortal. Ela paralisou-se, estancada a minha frente como se seus pés afundassem no piso acarpetado. Passado o espanto, disse decepcionada, entrecortada pelas lágrimas que tentava impedir:

— A cada dia você se torna o seu pai. Não a parte boa do homem, mas a que me machuca sem piedade, a que me faz chorar todas as noites, a que não tem no coração amor. A cada dia você se torna seu pai. A cada dia você me entristece como ele, você me mata o amor incondicional que tenho por você.

Ela deu-me as costas e caminhou para a porta do escritório. Seus passos eram lentos e melancólicos. Parou sob o batente. Esperou alguns segundos e voltou-se para mim.

— Entenda-se com ele. Se você é homem o suficiente para gritar com uma mulher, para gritar com sua mãe, também será para enfrentar seu pai como o homem que você pensa que é. Não me peça ajuda, não me peça perdão, não me peça nada, pois já não tenho um filho para proteger. Minha missão com você chegou ao fim. E eu falhei.

Minha mãe sumiu no corredor. Suas palavras me afetaram. Eu quis correr atrás dela, pedir desculpas pela minha desobediência. Senti-me pequeno novamente, pareceu-me regressar nos anos até ser um bebê indefeso. Mas não havia uma mãe para me proteger do frio, para evitar os predadores ávidos pela carne nova. Eu era um bebê indefeso e solitário no meio da floresta, cercado por olhares apavorantes que flamejavam na escuridão. Quis correr atrás dela, mas a vergonha e o medo me fizeram estancar à porta como se do outro lado fosse um mundo de discórdia e sofrimento. Eu causara a dor de minha mãe, eu era meu pai encarnado num corpo jovem. Eu era o que sempre quis ser.
Sentei-me novamente à mesa de meu pai e voltei a folhear as páginas do livro de contas.
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Atualizado em: Dom 15 Fev 2009

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