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Arqueologia Pop – Kroma!

          O grupo Zine EXPO teve uma grande função social na divulgação e produção de quadrinhos nacionais, principalmente os mangás. Eram desenhistas e roteiristas amadores tentando galgar um espaço no mercado editorial, com recursos próprios, com a cara e a coragem que só artistas do cenário independente tem. Singravam a diversos eventos, vendendo os seus quadrinhos em formatinhos de papel offset e lombada grampeada.
          Dentre o catálogo da Zine Expo, em seu site, eu conheci e adquiri alguns quadrinhos, dentre eles, o Magic Ystin do Laio Yune, o Digude do Vinicius de Souza, o Templários do Yuji Katayama, autores que eu chamo carinhosamente dos Três Mosqueteiros Carioca. E por fim, comprei um quadrinho que tinha uma capa bem legal, o Kroma!. O título era produzido por uma dupla de irmãos.
          O roteiro era do Washington Messias, com desenho do Erick Messias, ou para ficar mais fácil, produzido pelo Messias Brothers. Kroma! tinha uma identidade visual bem legal, e uma trama que me envolveu de súbito. Usar a temática de gangues com o shonen pode não parecer nada fora do normal, mas quando você vê o cenário e os personagens que conduzem a trama, você muda de opinião imediatamente. Saca só!
          Henry está em plena aula de História, mas o joguinho de luta tava mais legal e toma um esbregue da professora. Voltando para casa, ele acaba encontrando o seu pai Abraham largado no sofá, bêbado igual uma raposa. Escornado mesmo. O jovem vai preparar o rango e relembra da mãe falecida semanas atrás. Henry parece estar sofrendo com o chamado “luto difícil”, um forte apego emocional a imagem idealizada da pessoa morta. Ele se apresenta apático e melancólico, além de tímido.
          Em pleno meio-dia, uma visita inoportuna chega, é a Candy, aluna de intercâmbio. Henry a leva para conhecer a Academia de Gangue do Abraham, e para azar de ambos, o velhote acorda. Depois do rolezinho, eles chegam na sala de treino, que é aberta com poder de kroma. Após o término da visita, um grupo grande de jovens moradores visita a casa de Abraham e decidem que querem continuar seus treinos para defenderem o território de invasões de gangues inimigas.
           Mas para surpresa de todos, havia um espião que desafia a academia. O pai de Henry o força a lutar contra o desafiante. Daí ocorre uma das melhores lutas que eu já li num shonen. Só depois da luta é que descobrimos o objetivo do misterioso desafiante, o José “JC” Carlos. Suas habilidades são bem diferenciadas, e prometem lutas incríveis.
          Apesar da história começar com o Henry, o verdadeiro protagonista da história é o JC. Apresentar o personagem o colocando como antagonista no primeiro capítulo é uma inversão de expectativa que o leitor jamais iria esperar. Afinal de contas, é esse personagem que tem o grande objetivo que irá conduzir a trama: destruir o sistema de gangues, que gera violência e desigualdades.
          Seguindo com o JC, o personagem chama muito a atenção em vários sentidos. Ele é negro, luta ao som do hip-hop e tem um grande sonho. Você sente empatia logo de cara pelo personagem. Tem personalidade e um passado trágico: perdeu o irmão mais velho para as gangues. É um bom personagem para fazer um contraponto com o outro coprotagonista, o Henry que, deixaria a desejar como protagonista, mesmo tendo um bom plano de fundo.
          O sistema de gangues parece funcionar muito semelhante as nossas milícias, grupos armados que realizam atividades ilegais em comunidades pobres e favelas, como segurança, extorsão e tráfico. As gangues, nessa história, parecem ter surgido de modo orgânico na sociedade. Existe todo um sistema bem definido, incluindo Juízes de Guerra, ou seja, tem um sistema legal próprio estabelecendo as relações sociais. Uma justiça alternativa.
          As gangues têm seu próprio exército particular e território. Gangues maiores cobram dinheiro de gangue menores, e aglutinam outros territórios, ao que tudo indica. Além disso, existe toda uma economia em torno das gangues, pois, existe um sistema educacional e impostos. Seria interessante, nos futuros capítulos, se os autores explorassem as relações socioeconômicas do Estado com essas gangues.
          Na história, as habilidades dos personagens estão relacionadas ao Círculo Kromático. Num primeiro momento, parece complexo, mas, cada cor está relacionada a um tipo específico de habilidade, que pode ser usada de modo combinado. Como se aprende ou se desenvolve o poder kroma, não sabemos ainda. Levando em conta o que foi apresentado, teriam variações e usos bem estratégicos em batalha.
          O Henry, por exemplo, possui uma técnica ocular em que, ajustando o poder entre ele e o oponente, o jovem poderia bloquear a emissão de kroma do adversário. Já o JC, parece ter uma habilidade diferenciada, originada de outra fonte: o som. Cada som parece lhe conferir uma habilidade diferente, por exemplo, ouvindo hip-hop ele apela para as acrobacias, ouvindo rock, ele fica com supervelocidade. Fico imaginando o que aconteceria se ele ouvisse funk ou sertanejo universitário... melhor não, eu passo.
          A Candy foi o alívio cômico, mas se eu tivesse que fazer uma análise mais profunda, ela parece ser uma menina de classe média. A gente logo vê que ela está muito deslocada na academia. Parece ser uma patricinha vinda de outro lugar, pronta a viver novas experiências, mas que sofrerá com a adaptação. Fico imaginando que ela seria um bom exemplo de personagem que evoluiria muito, a Candy é muito perceptiva.
          O sentido de academia de gangue aqui é menos voltado a um tipo de Ensino Superior e mais direcionado a academia de exercícios físicos mesmo. A obra se passa numa favela, cheia de violência e conflitos. Me aparecem que os autores deram um que de autobiografia na obra. Tá muito crível, ruas apertadas, casas claustrofóbicas, uso de gírias, enfim, muito favela. Eu adorei a abordagem.
          O traço nos remete ao Masashi Kishimoto. Esse artista deixou um ótimo legado entre os mangakás. Sua arte é menos caricata, não chega a ser realista como um gekigá, mas respeita a anatomia mais que outros autores. Erick Messias usa pouca hachura e retículas, investe nos chapados de preto e branco, deixando a arte clara, mas dinâmica. Eu só acho que ele poderia ter feito um dégradé em algumas páginas, ou utilizado texturas, quebraria a monotonia das páginas. Os rostos apresentam boas expressões, definindo muito bem o humor dos personagens.
          Enquadramento perfeito, dinamizou a luta. Aliás, luta bem coreografada, dando peso e movimento na medida certa. Linhas de movimento bem executada. Os diálogos estão bons, os balões não arrastam a leitura. O capítulo cumpriu sua função narrativa e gerou boas expectativas para o próximo capítulo. Tem ação, contexto e ambientação. Já tenho nítido o que os autores querem contar.
          O mangá foi lançado em 2015, sendo vendido em formatinho, de modo independente em dois volumes. Em 2018, sob pseudônimo de Dr. Nankim, os autores republicaram num site de mesmo nome, paralisando a obra. Na época eu entrei em contato com o roteirista, ele fazia faculdade e nada estava descartado. Se a série teria chance de continuar?
          Sim. Eu acho viável. O objetivo do JC era acabar com um sistema de gangues, o mesmo objetivo interrompido pelo Abraham, que desejava formar uma Antigangue —uma gangue que lutaria para dissolver o sistema. Para isso, eles precisam recuperar as jaquetas da primeira gangue existente, a Blackberry, que na verdade, são boton que registram a kroma do usuário!? O JC rapou um, havia mais três livres. No todo são dez. Vai fazendo as contas, mano.
          O arco inicial, para recuperar os boton escondidos poderiam ser usados para desenvolver os personagens, que não sei porque raios, o autor apresentou uns dez logo de cara. E os arcos seguintes seriam direcionados a desenvolver os vilões mais poderosos que, provavelmente, estariam em posse das seis jaquetas restantes. Não ia terminar cedo assim não, mas, mantendo um bom ritmo de publicação, bimestral, por exemplo, seria uma ótima série de se acompanhar, inclusive, com alto apelo comercial.
          Eu entrei em contato com o roteirista da série novamente. Ele disse que apesar de ter algumas páginas prontas, não dará continuidade ao título por algum tempo. Graduado em História, não tem tempo para se dedicar a obra. Não conseguiu seguir na área como quadrinista. Atualmente ele trabalha só, o desenhista deixou o projeto. Essa é mais uma daquelas obras que não conseguem se sustentar sem um mercado editorial para o seu amparo, mas que merecia uma segunda chance.
Título: Kroma!
Ano de publicação: 2018
Autor: Roteiro, Washington Messias; desenho, Erick Messias.
Sinopse: Após a morte da esposa, Abraham entra em decadência e deixa de pagar os Juízes de Guerra. O território da Blackberry Gangue está oficialmente aberto para invasões. Abraham, Henry, Candy e os discípulos da academia estão correndo sérios perigos. A primeira ameaça adentra o território, Abraham aceita o desafio à sua academia. Quem enfrentará o invasor?
Cap. 1 – Blackberry Gangue, nº de pág. 30.
Cap. 1.2 – Invasão, nº de pág. 32.
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Atualizado em: Ter 20 Out 2020

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