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O Diário de Um Soldaddo Colérico.

Aqui, nesse texto, você
tomará conhecimento de uma surpreendente história. Uma história que não foi
contada nos livros didáticos. Uma história escrita, por um adoentado soldado,
em seu diário, durante uma noite lúgubre. Este diário foi encontrado dentro de
uma gruta, - gruta há pouco tempo descoberta por exploradores -, na região da
bacia platina em Mato Grosso do Sul, bem próximo às margens do rio Paraguai, na
cidade de Corumbá. Incrivelmente este livro estava muito bem conservado, digo
incrivelmente, pois, se trata de um objeto do século XIX. Precisamente do ano
de 1866. Dentro deste diário está narrado, entre muitas outras coisas, um
assombroso episódio. Um soldado sem nome explana sobre um evento extraordinário,
que aconteceu dentro de um acampamento de uma companhia do exército brasileiro,
comandado pelo capitão Eutanásio Gomes. A tropa desse soldado desconhecido se
dirigia, com seus companheiros Voluntários da Pátria, para a região de Tuiuti,
sul do Paraguai, com a intenção de se juntar a outras tropas da aliança, que
estavam assentadas, há quase um ano, naquelas paragens. O mês era janeiro.
Quatro meses antes da primeira batalha do Tuiuti, - este foi um dos combates mais
sangrentos de toda a história bélica brasileira -, que aconteceu em 24 de maio
de 1866, durante a sanguinolenta Guerra da Tríplice Aliança; a Guerra do
Paraguai. Antes de descrever o acontecido, farei uma resumida dissertação sobre
o que motivou esse conflito.

O confronto se iniciou
em 1864, quando o ditador paraguaio Francisco Solano Lopes pretendendo aumentar
o território de seu país e obter uma saída para o atlântico através dos rios da
bacia da prata, impôs uma série de obstáculos para as embarcações brasileiras
que navegavam pelos rios da bacia. E, somando-se a isso, invadiu e conquistou o
Mato Grosso, principiando a beligerância. Solano também tentou chegar ao Rio
Grande do Sul, e dominou a cidade argentina de Corrientes, desta forma, em 1865
forma-se a tríplice aliança com a união de três países, o império do Brasil, e
as repúblicas da Argentina e do Uruguai, contra o independente, e candidato a
potência sul-americana, Paraguai. A guerra durou seis anos e só terminou em
1870 com a morte de Francisco Solano Lopez na cidade de Cerro Corá no Paraguai.

 Agora, - logo após esse indispensável
apontamento histórico -, segue abaixo a descrição do militar sobre aquela
sinistra noite. Transcrevo apenas o trecho do soturno acontecimento, e não todo
o conteúdo do diário. A narrativa é em primeira pessoa. Algumas adaptações e
modificações foram feitas na tentativa de facilitar a leitura e melhor ilustrar
os fatos.

“... . Quando nos
aproximamos do lugar em que iríamos passar a noite, tive de imediato uma
horrível impressão que alguma coisa, nada boa, estava para acontecer. A
companhia parecia abandonada. A unidade originalmente composta por duzentos
homens estava diminuída em mais da metade de seus componentes. As duras
batalhas campais e, sobretudo, a escassez de alimentos aliada às epidemias,
dizimaram grande parte do contingente daquele posto avançado. O capitão
Eutanásio Gomes, comandante do lugar, encontrava-se acamado quando chegamos.
Ele estava bexiguento (contaminado pela varíola), e restava-lhe pouco tempo de
vida. A região do acampamento era pantanosa e estava cercada de uma mata
fechada, com grandes árvores, que serviam de barreira natural para qualquer
tipo de ataque inimigo. Aquela era uma das bases fixas, antes de se chegar a
Tuiuti no Paraguai, núcleo onde estava concentrada uma grande quantidade de
nossos pelotões. Eu também não estava bem de saúde. Sentia-me muito fraco.
Balançava de um lado para o outro, procurando me equilibrar em cima de meu
bravo cavalo, enquanto adentrávamos naquele circo de horrores. Há três dias
manifestou-se em mim uma violenta diarreia aquosa e vômitos constantes,
ocasionando uma severa desidratação. Sentia-me como se estivesse constantemente
urinando pelo vaso traseiro. Meu corpo todo doía e minha temperatura corporal
variava entre o estado febril e a hipotermia (esses são sintomas
característicos da doença cólera). Pelo meu estado de animo, tenho certeza que
também não ficarei vivo por muito tempo. Na verdade, pouco me importa quanto
tempo ainda ficarei vivo, desejo a morte da mesma forma que um amante sedento
de prazer deseja sua ardorosa amada. Tudo que me era mais valioso eu perdi.
Minha esposa e minha filhinha, de apenas três anos, morreram bexiguentas. Essa
maldita doença deformou suas belas faces e as fez definhar dolorosamente até
seus últimos dias. As pústulas tomaram todo o corpo delas, transformando-as em
monstros feridentos e fedidos. “Oh Deus, por que fizeste isso comigo? Por que
tanto sofrimento e tanta dor? O que eu fiz a você, meu senhor, para merecer tal
castigo?”. Com o fim de minha família resolvi me juntar aos voluntários, menos
pelos benefícios oferecidos e promessas que o imperador D. Pedro II fez, a quem
se alistasse de livre iniciativa, e mais por não ter nada a perder. Eu era um
bom atirador, fato que se confirmou durante os confrontos. Nós ficávamos dentro
de um buraco cavado no chão (trincheira; a Guerra do Paraguai deu início a essa
tática), escondidos e protegidos do fogo inimigo, e atirando na tentativa de
acertar os adversários à distância, com os nossos mosquetões. Participei de
incontáveis contendas sem sequer conseguir um arranhão em meu corpo e,
ironicamente, deixarei o mundo dos vivos por causa de uma caganeira infame.

 A cada metro que avançávamos dentro do
acampamento, víamos com mais nitidez a desventura que acometeu aquele lugar.
Podíamos ver cadáveres, incontáveis, caídos ao chão, de soldados mortos pelas
doenças que assolavam aquele sítio. Corpos apodrecidos e apodrecendo se
espalhavam pelo caminho. Uma catinga pestilenta, quase palpável de tão densa,
impregnava-se em nossas narinas de forma definitiva, nos nauseando
implacavelmente. Muitos dos que ainda restavam vivos eram como zumbis,
mortos-vivos em pele e osso, escorados em qualquer lugar, apenas esperando a chegada
da Indesejada das gentes. Os soldados sadios, - a minoria -, não se aproximavam
dos mortos, muito menos dos adoentados e desenganados, para não correrem o
risco de contraírem alguma daquelas capitais enfermidades. Eram ordens extremas
dos oficiais. E por isso, os moribundos e mortos, ficavam jogados pela
periferia do acampamento, como se fosse uma forma de atemorizar qualquer
intruso que se aventurasse entrar em nossos domínios. Muitas chinas, com os
corpos seminus, perambulavam pela localidade. “Este lugar parece com um dos
infernos de Dante!” Lembro-me de ter dito isso para mim mesmo.

Desci a muito custo do
meu cavalo, levei-o até uma baia com água fresca e com espigas de milho.
Deixei-o lá, para seu merecido descanso, e me dirigi há um abrigo. Comemos uma
rala sopa e bebemos um péssimo vinho aquecido, que só serviu para aumentar
minha dolorosa crise intestinal. A noite chegou apressadamente, trazendo com
ela muitas nuvens negras. Uma tempestade não tardaria em cair. O vento fazia
com que a sensação de frio fosse ainda maior, além de provocar sons distorcidos
e arrepiantes ao se chocar nas folhas das árvores. Meu companheiro de alistamento
e grande amigo, que fiz durante aqueles tristes dias de luta, - ele era um dos
“índios cavaleiros” que se juntaram ao exército durante a guerra -, olhava
assustado para todos os lados e falava coisas ininteligíveis na sua língua mãe.
Jacinto era um enorme índio Cadiéu, de um grupo indígena remanescente da grande
nação Guaicuru, que se destacava pela destreza na montaria em cavalos.
Estávamos em baixo de uma cobertura, próximo à barraca dos oficiais. Eu me
encontrava deitado numa rede e ele estirado em seu catre. Perguntei-o sobre
aquele medo, que se estampava em seus olhos. Ele respondeu com a seguinte
frase: “O espírito ruim está aqui nos “oiando” e esperando pra nos matá”.
Aquilo não me amedrontou, - apesar do calafrio que gelou meus ossos -, as
cólicas que eu sentia eram tão intensas que morrer não me parecia uma má ideia.
Disse pra ele parar com sandices e que tratasse de descansar, pois, a jornada
do dia seguinte seria árdua. Mas, ele não me ouviu, parecia fora de si,
completamente absorto, perdido em seu olhar.

Nossas barracas ficavam
dentro de uma clareira circundada pela floresta. Há poucos metros à frente,
passando do matagal, corria nervoso um dos grandes rios platinos, o rio
Paraguai. O tenente Melquiades, líder de nossa tropa chegou acompanhado do
segundo sargento Ribamar. O sargento era encarregado de manter a ordem do lugar
depois do adoecimento do capitão Eutanásio. Conversamos sobre o andamento da
guerra e de nossas baixas nos frontes. A avaliação, segundo os comandantes, era
otimista e, apesar da diferença numérica entre nossos combatentes e os combatentes
paraguaios, a vitória não demoraria a sobrevir. Passamos dos assuntos sérios
para a trivialidade e animadas anedotas foram contadas. Aquele palavreado todo
me fez esquecer um pouco minhas dores e reconfortou meu espírito por alguns
momentos. Horas depois o silêncio tomou conta do ambiente. Todos, enfim,
dormiram.

Fui acordado pelo o som
de um tropel de cavalos. Não sei por quanto tempo dormi, contudo, era seguro,
que a madrugada ia alta. Minha cabeça estava estourando e meu corpo quente como
uma fornalha. Estiquei minha cabeça da rede e tentei olhar ao longe, tentando
enxergar de onde vinham aqueles cavalos. Foi inútil, não vi absolutamente nada
e achei que tinha sido enganado pelo som de algum outro animal. Voltei a
deitar. Segundos depois um relinchar assombroso fez eriçar todos os pelos do
meu corpo e desta vez não fui só eu quem escutou aquele estranho ruído. Vi
outros companheiros levantarem assustados dos seus leitos. Procurei meu amigo Jacinto,
que estava deitado no chão, próximo a mim e não o vi. Olhei novamente para a
direção da mata. Neste exato instante vi o índio, segurando seu mosquetão, com
a baioneta acoplada, desferindo golpes ao vento, como se lutasse contra
inimigos invisíveis. Ele lutava com ardor e gritava palavras desconexas. Um minuto
depois meus olhos viram uma coisa impossível de ter acontecido, mesmo assim,
eles viram, mesmo assim, aconteceu. Eles enxergaram, limpidamente, meu amigo
Jacinto ser degolado, por uma arma inexistente, por um sortilégio demoníaco, e
um jorro de sangue escapar de seu pescoço, enquanto seu corpo inerte e sua
cabeça sem vida tombavam ao chão. Não só fui eu que vi. Muitos outros soldados também
viram aquela absurda cena, e uma gritaria medonha e uma correria desesperada
tomou conta do acampamento. E mais e mais homens eram decepados e estraçalhados
por espadas que não se via, por armas transparentes, diáfanas, camufladas ao ar
da noite. Aquilo me deixou completamente fora de minha razão. Levantei de um
salto e comecei a disparar meu mosquetão a esmo, sem mirá-lo para uma direção
definida, já que não via nada, nem ninguém. Somente ouvia o som de cavalos e
gritos guturais vindos de gargantas fantasmagóricas. Mesmo não crendo em nada
daquilo, e achando que estivesse dentro de um pesadelo perturbador, sendo
abocanhado pelos meus medos mais terríveis, eu continuava a pelejar como um
cego. Golpeando com meu sabre o vento, as folhas das árvores, o ar. Gritos de
dor inundavam meus ouvidos. Gemidos alucinados tomavam conta daquele dantesco
massacre. Um por um, todos os soldados eram abatidos, e o sangue escorria,
diluindo-se na água da chuva.  Uma
sensação angustiante se apoderou de mim e pude sentir uma energia nefasta se
apoderando de todo o lugar. Uma força inexplicável, doentia e má, que me fez
fugir ensandecido, para bem longe dali. Não sei de onde tirei forças para a
fuga, só sei que acordei hoje aqui, dentro desta gruta, que descobri não sei
como, próxima as margens do rio. Não sei o que aconteceu com os outros, estou
completamente só, perdido. Nenhum tipo de racionalidade pode explicar os
acontecimentos da noite de ontem. Acho que enlouqueci. Deve ser mais um sintoma
desta doença amaldiçoada, que arruinou meu juízo. Não sei onde estou e estou
incerto sobre minha identidade. Não sei se estou vivo ou morto. Devo ter
morrido e ido parar no inferno, para pagar todos os meus pecados”.

Os escritos do diário
acabam aí. O livro encontra-se guardado em local seguro e sob a
responsabilidade de autoridades competentes. Muitas das histórias contadas no
diário, que não foram mostrados aqui neste texto, se encaixam, comprovadamente,
em fatos existentes na Guerra do Paraguai. Locais de acampamentos, nomes de
batalhas, nomes de soldados e oficiais, datas importantes, tudo isso é
verdadeiro. O diário realmente foi de alguém que viveu naquela época. Em poucos
meses surgirão notícias em toda a mídia sobre a descoberta deste livro singular.
O ataque de forças invisíveis ao acampamento militar nunca foi evidenciado. Não
existe nenhuma documentação em arquivos sobre tal acontecimento. Se por acaso
aconteceu, foi completamente abafado e tirado dos registros oficiais. Nada
daquilo pode ser provado. E daí surge uma grande dúvida; será que essa
contundente narração é realmente verdadeira? Ou não passa de um delírio fantástico
de uma mente enferma a beira da morte? Não estou aqui para dar opiniões, e nem
sou capaz de responder a essas perguntas. Deixo que você tire suas próprias
conclusões.  

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Atualizado em: Qua 3 Out 2012

Comentários  

#4 Enzo 30-10-2014 16:59
Você escreve inacreditavelmente bem. Historia enlouquecedora e arrepiante. Se não for verdadeira, parabéns pela imaginação, e se for, ótima narrativa.
#3 Arnoldo 15-10-2012 10:26
No horror de todas as guerras, assimbradas por fantasmas invi´siveis ou visíveis, as vítimas somos nós e somos vítimas de nós mesmos, pois nós as criamos.
#2 xxx 09-10-2012 19:20
Tenho uma poesia que fala da Tríplice Aliança...
Bah, com certeza foi delírio do camarada que estava para lá de febril...
Excelente texto, Jacosta!
#1 ANTENA 08-10-2012 17:14
Uma narração aterrorizante, típica dos grandes contistas e cronistas, se verdadeiro for o relato. Parabéns, mestre do horror e do suspense.


abraço anarquista

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