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mistério

  • Janela

    Há pelo menos uma coisa que todos os humanos, sem distinções, fazem com frequência: dormir. Isso é algo bom, saudável e almejado, principalmente depois de um dia longo de trabalho. Entretanto, tudo isso tem um problema. Afinal, como saber como é não estar dormindo?
    A maioria das pessoas acredita saber quando está acordada por simplesmente terem nascido sabendo. Há aqueles que acreditam inclusive que conseguem controlar o sonho, então, se não podem controlar outra realidade, logo não é um sonho. Entretanto, não pode ser possível que a pessoa esteja em um sono tão pesado que ela simplesmente tenha perdido o controle sobre o seu subconsciente?
    João não pensava muito nessas possibilidades. É claro, já estava dormindo menos de três horas pelo quarto dia seguido quando finalmente terminou o seu projeto para a faculdade, então não pensava em muitas coisas fora isso. Não se lembrava ao certo de como acordou, se passou desodorante ou se escovou os dentes, mas isso era normal já que essas eram somente partes corriqueiras do dia e não estavam incluídas na ação do cotidiano. Uma ação que era monótona, mas que movimentava intensamente os seus sentimentos e causava tanta agonia em certos momentos que chegava a se assemelhar a um pesadelo.
    Assim que enviou o arquivo com o seu trabalho para o e-mail do professor, foi dormir. Não queria pensar em mais nada por umas doze horas seguidas e, por isso, somente se jogou na cama, se cobriu com um cobertor que não estava cheirando tão bem e fechou os olhos. Não precisou se dar ao trabalho nem de relaxar os músculos ou ficar pensando em algo para pegar no sono, simplesmente dormiu.
    Quando acordou, não se lembrava de ter sonhado algo. Tudo ao seu redor estava escuro, mas estava sonolento demais para se importar. Ele estava se sentindo bem mais relaxado e totalmente renovado, embora ainda sentisse a preguiça de ter acabado de acordar. No momento exato em que se levantou, todas as luzes acenderam. Não estava mais no quarto em que foi dormir, mas em uma cabine com paredes totalmente brancas. Não havia portas ou janelas, somente as quatro paredes que o confinavam em um espaço minúsculo. A sua respiração se encurtou com o medo e começou a pensar rapidamente nas possibilidades da causa de estar onde estava. Pensou desde abdução até um teste ilegal do governo e só depois disso pensou na possibilidade de ser um sonho. Essa era a resposta, tinha que ser isso. Mas, ao pensar mais um pouco, não parecia ser um sonho. Afinal, tudo parecia real demais, tanto que sentia a textura lisa e macia das paredes ao tocá-las.
    Não conseguia entender nada com total certeza e isso o frustrava. Com os olhos cheios de lágrimas que se recusavam a descer, ficou rodando o minúsculo lugar em que se encontrava para tentar solucionar o maldito quebra-cabeças em que estava. Quanto mais rodava, mais se esquecia dos detalhes daquela realidade que julgava ser a real. Toda a sua família, embora conseguisse ver com clareza o rosto de todos, parecia ser uma lembrança distante e quase tudo que pensava saber sobre eles não parecia totalmente certo. Sobre o seu irmão mais novo, por exemplo, ele se lembrava de ter ido na formatura dele da faculdade, mas agora, por algum motivo, sentia que ele era muito mais novo do que isso. Por não saber mais se poderia confiar na sua memória, a raiva gerada pela frustração começava a aflorar.
    No momento em que pensou que não sabia mais quem era, percebeu que o eu dessa realidade também não se lembrava de muitas coisas. Isso não era muito animador já que podia haver diversos motivos para ter tido perda de memória e aquilo ter sido o subconsciente tentando lembrá-lo de algo por meio de um sonho. Mas, de algum modo sútil, indicava que não podia confiar em nenhuma das duas realidades já que ambas podiam ser verdadeiras, nenhuma delas ou somente uma delas.
    O único jeito de saber no que confiar era testando a realidade em que estava. Não podia saber se o primeiro cenário era real porque agora só estava em suas memórias, mas ele estava no segundo cenário. Buscou em sua mente todas as lembranças sobre coisas que falaram de sonhos, embora não conseguisse saber nem quando, onde ou quem havia dito essas coisas. Lembrou-se de diversas coisas e por elas sabia que era difícil ler em sonhos por tudo estar embaçado e mudar de repente, que normalmente se sonha com locais conhecidos, e que, quando se percebe que está sonhando, é fácil de controlar o que acontece a sua volta. Infelizmente, só restava a última possibilidade já que não tinha nada para ler e com certeza não conhecia o local em que estava.
    Decidiu sentar em cima dos seus joelhos porque sabia que essa era uma das posições de meditação e com certeza iria necessitar da máxima concentração possível nessa hora. Fechou os olhos e imaginou aquelas paredes brancas explodindo e uma ilha paradisíaca surgindo a sua volta. Abriu os olhos estando mais calmo e relaxado. Quando terminou, a decepção caiu sobre a sua mente uma vez que tudo estava exatamente igual. Tentou repetir todo o processo e de diversas maneiras: olhos abertos, em pé, deitado e em mais umas outras dez posições. Nada. Absolutamente nada. Tentou também mudar a realidade dentro do quarto branco ao imaginar objetos e diversos possíveis superpoderes que queria ter. O máximo que conseguiu foi se sentir como uma criança de oito anos após assistir ao x-men e acreditar que talvez também pudesse ser um mutante.
    Todas as tentativas o deixaram exauridos mentalmente e sentimentalmente. A combinação gerou a raiva e essa fez ele começar a esmurrar as paredes com total ferocidade. Depois de uns vinte minutos socando o chão, o teto e cada uma das quatro paredes, atingiu um local que não havia nem encostado até aquele momento. Seria na altura de um interruptor e longe o suficiente da quina formada no encontro das duas paredes para que fosse construída uma porta se essas coisas existissem no quarto.
    No exato momento que atingiu esse suposto interruptor, uma das paredes começou a se levantar. João correu até ela pensando que podia ser uma saída. Entretanto viu que se tratava de um vidro cuja espessura não conseguia identificar. Assim que a parede parou de subir ao atingir o teto, uma vista surgiu através do vidro. Nunca tinha visto uma imagem como aquela. Estava na beira de um penhasco num dia ensolarado, talvez no meio da manhã, e de lá via um rio que vinha atrás de onde aquele quarto branco estava, passando distante o suficiente à sua direita para não simbolizar um perigo. Descia o penhasco em uma alta cachoeira e lá embaixo se tornava uma rápida corredeira até que entrava em uma floresta como um rio calmo e de correnteza não tão forte. Essa floresta não era muito densa, sendo composta principalmente por pinheiros. No fim de um mar verde de árvores, havia uma cordilheira de montanhas com um tom levemente azulado e com neve no topo da maioria delas.
    Ficou admirando aquela paisagem durante alguns minutos. Era extremamente reconfortante enxergar aquilo tudo depois de passar sabe-se lá quanto tempo somente vendo a cor branca. Depois de se acalmar, começou a encostar em cada parte do quarto em busca de algum outro botão. Afinal, se existia uma janela poderia existir uma porta. Provavelmente horas se passaram, mas a única coisa que conseguiu foi o fracasso. Deve ter percorrido todo o quarto umas cinco vezes antes de desistir sem achar nada.
    Após desistir, ficou muito tempo sentado na extremidade oposta a janela encarando a paisagem. Novas questões começaram a atormentar a sua mente: será que isso é mesmo uma janela? Não pode ser uma televisão? Essa seria a saída? Se fosse um sonho, durante a queda ele acordaria? Se não acordasse e morresse no sonho, morreria na sua outra vida? E se essa fosse a realidade, acabaria por se suicidar sem querer? A cada nova pergunta e possibilidade que surgia, abaixava a cabeça e colocava as mãos nos ouvidos os pressionando. Sentia o tormento de ter que tomar uma decisão importante. Então, esperaria para tentar recuperar pelo menos mais um pouco da memória e achar uma outra saída ou se jogaria contra o vidro esperando não se machucar e essa ser a solução para todo o seu tormento?
    Hesitava em tomar uma decisão. Sabia que não tinha como voltar atrás no momento em que pensou nas possiblidades que tinha. Nesse exato instante, soube que a sua mente iria atormentá-lo com as possibilidades que tinha de maneira eterna, principalmente se tomasse a decisão mais errada. E é claro que ele também sabia que não tomar uma decisão também seria somente a escolha de uma possibilidade. Não havia nenhuma chance de escapar disso, pelo menos não depois de ter pensado.
    Infelizmente, quando se tem que escolher por um caminho, não é possível ver o seu interior e também não é possível retornar. Também não se pensa muito no ter que escolher, se focando nos caminhos mais atraentes a sua frente. Talvez seja por isso que João não percebeu que ficou somente encarando aquele vidro e, por um longo tempo, escolheu involuntariamente ficar parado enquanto se perdia em seus pensamentos.
    No meio da bagunça da sua mente, encontrou uma trilha que o levou a uma afirmação. Ele percebeu que não valia a pena ficar parado em sua prisão sem fazer nada e que talvez ir na direção da morte valeria mais a pena do que viver muito em um cárcere agoniante. Embora nem sempre fosse assim, nessa situação tinha convicção de que o risco valia muito mais que a certeza. Por isso, se levantou lentamente e, assim que terminou de ficar em pé, gritou o mais alto que pôde para afastar os seus demônios. Se sentiu mais aliviado e gritou uma segunda vez, mas nessa começou a correr o mais rápido que pode. Atingiu o vidro com o máximo de sua força e usou o ombro como ponta de lança. Cacos de vidro se espalharam para todos os lados e começaram a cair de uma altura gigantesca junto com o corpo de João. Ele sentia o vento frio que entrava em contato com a sua pele quente e a sensação de liberdade que isso criava o fazia crer que podia voar, embora caísse em uma velocidade extremamente alta. Via rapidamente diversas partes da paisagem, tendo rápidas visões do verde da floresta e da queda d’água que estava ao seu lado. Talvez por ter simplesmente se livrado do peso de ter que tomar a decisão ou por algum outro motivo que ele nem sequer entendia, João gritava ao mesmo tempo em que tentava esboçar um sorriso. Com certeza estava feliz nos últimos segundos antes de acordar.
    Abriu os seus olhos lentamente, ainda confuso com tudo o que estava acontecendo. Só conseguia ver luzes e paredes brancas, o deixando com o coração acelerado. Os seus movimentos estavam limitados, mas não entendia o porquê disso. Ouvia vozes que pareciam estar muito distantes e que foram lentamente se aproximando. Depois de um tempo, conseguiu ver uma imagem ainda um pouco desfocada que conseguiu identificar como um médico.
    Aos poucos conforme os seus sentidos melhoravam, as notícias começaram a ser dadas. Depois de umas duas horas que havia enviado o trabalho, o professor havia respondido com as diversas mudanças necessárias. João foi acordado com o aviso do computador de recebimento de e-mail e, como o prazo era curto, resolveu acordar, ir até alguma loja que estivesse aberta e comprar energético, café e qualquer outra coisa que o deixasse acordado. Ele foi de carro, pois a única loja aberta durante a madrugada era a de um posto de gasolina que ficava muito distante. No fim, bastou uma batida para deixá-lo em coma por cinco anos e meio.
    Era difícil não deixar de pensar que podia ter saído do coma a qualquer momento desde que aquela janela apareceu. É claro que ele não tinha total certeza da relação entre as duas coisas já que pode ter tido muitos sonhos e esse ter sido somente um deles, mas os seus instintos tinham a certeza. Talvez muito tempo pudesse não ter sido desperdiçado e o seu corpo não definhado tanto se tivesse feito uma outra escolha. Ele não sabia na época que às vezes o tempo não tinha tempo para se ficar pensando nas escolhas.
  • Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capítulo II: O Salão de Beleza

    Por causa de um erro em minhas suposições, eu havia me exposto a Alice Harback. Agora ela sabia que era alvo de uma investigação. Eu sei que as mentes mais brilhantes também erram, por exemplo, o inventor do salpicão de frango quando decidiu colocar maçãs na receita. Só que ao invés de enfiar o erro goela abaixo das pessoas, como fez o inventor do salpicão de frango, eu precisava de uma nova estratégia para corrigir o erro.
    Porém, antes de traçar qualquer estratégia, eu precisava enfrentar um furioso Allan Tresekos, que estava em meu escritório questionando meus métodos:
    – Detetive, como que você não sabia que Jack era o cachorro?
    – Ah, vou te dizer uma coisa também, que mania idiota é essa de as pessoas darem nome de gente pra bicho? Nome de cachorro tem que ser Rex, Totó, Fido etc. Não Jack! Daqui a pouco vão começar a dar nome de bicho pra gente. O cara vai no cartório e registra o nome do filho como Flufy da Silva. Ia ser uma bagunça.
    – Custava você fazer o seu trabalho de detetive e investigar? Meia hora de investigação e você descobriria que ele era um cachorro. Além disso, se você olhasse na internet, veria que aquilo era um cemitério de animais.
    – Não tente ensinar o padre a rezar a missa! Vê se eu fico dando pitaco no seu trabalho? Eu não vou numa construção sua pra falar "você devia fazer melhor seu trabalho de engenheiro tipo... Tipo... Fazer o reboque da parede com gesso".
    – O senhor quis dizer "reboco da parede", detetive?
    – Ué, tem diferença, é?
    – Ai, meu Deus!
    – Sabe de uma coisa, senhor Allan? O senhor parece muito com o meu capitão quando eu era da Polícia. Ele também tinha essa mania de ficar com a mão no rosto falando "ai, meu Deus" pra todo lado. Vocês devem ser muito religiosos.
    – O senhor era da Polícia, detetive?
    – Sim, mas eu saí de lá e achei melhor ser detetive particular. Essas repartições públicas engessam demais pessoas de espírito livre como eu. Eles nunca concordavam com meus métodos.
    – Faço uma ideia do porquê.
    Esse último comentário de Allan me deixou ressabiado. Parece que ele queria dizer algo com aquela fala. Fiquei encarando por alguns instantes em silêncio pensando em uma resposta boa pra ele, mas relevei. Quando eu entro em uma investigação, vou até o fim. Além disso, eu poderia ganhar um bom dinheiro no final.
    – Muito bem, senhor Allan, vamos voltar ao caso. O senhor desconfia que Alice Harback é, na verdade, um homem disfarçado, certo? Bom, pra um homem andar como uma mulher por um dia inteiro sem ser notado, ele precisaria de uma maquiagem ou um profissional de maquiagem de primeira linha. Já que o senhor parece ter tanta intimidade com a família, saberia dizer se a Alice conta com algum profissional assim?
    A feição de Allan mudou, parecia que ele tinha gostado do meu raciocínio. Ele se sentou na cadeira e começou a puxar algo da memória.
    – Bom, Alice Harback sempre foi uma mulher muito vaidosa. E ela tem um salão de beleza de confiança que ela sempre vai. É o Hamilton's Fashion.
    – Poxa vida, senhor Allan! O senhor sabe mesmo bastante detalhes da vida da Alice, hein?
    – O que você quer dizer com isso, detetive?
    – Não, Nada! Só que... Vamos deixar as coisas claras aqui. Todo homem já se apaixonou por uma mulher mais velha, né não?
    – Como é que é?
    – Ah, qual é? Tem problema não. Eu mesmo, quando estava na Academia, tive um relacionamento com uma das copeiras. Ah, ela fazia uma broa que...
    – Senhor detetive! – Gritou Allan, esmurrando a mesa e me assustando.
    – Tá bom! Tá bom! Já não está mais aqui quem falou! Eu vou pra esse salão de beleza pra ver se tem algo que me dê uma pista.
    – Acho melhor eu ir junto pra evitar mais problemas.
    Allan me levou até o local. Durante a viagem, ele me encarava com um olhar sério. Minha intuição me dizia que foi por causa da insinuação de que talvez ele tivesse uma queda pela senhora Alice Harback. Mas, convenhamos: esse cara sabe demais da vida dela. Até o salão de beleza ele sabia. Ah, só pra constar: não vamos mais tocar nesse assunto do meu relacionamento com a copeira, tudo bem? É que não acabou muito bem pro meu lado.
    Chegamos ao salão de beleza. Era um salão muito grande e parecia ser frequentado por mulheres da alta sociedade. A recepcionista veio falar conosco. E pra atrapalhar, ela reconheceu o Allan.
    – Allan Tresekos! Que bom ver o senhor aqui de novo! Faz muito tempo que o senhor não vem. Veio trazer alguém da sua família dessa vez?
    Se todo mundo ficar reconhecendo o Allan assim, meus disfarces vão para o brejo! Afinal, Alice Harback já sabia que era alvo de investigação. Aí alguém fala pra ela que o Allan apareceu lá e pronto! Então, dessa vez, eu resolvi tomar as rédeas da conversa:
    – Não, ele veio me trazer a este local. Meu nome é José Caravejo, sou diretor de teatro.
    – Muito prazer, senhor Caravejo! Quais peças o senhor dirigiu?
    – Como? A senhora não sabe? Não é possível! Eu exijo falar com o gerente! Como que um salão desses não respeita a arte? A arte! – Eu tinha um vizinho que era desse meio e falava todo afetado, foi daí que eu peguei a referência pra esse disfarce. Inclusive a pose com braço esquerdo inclinado pra cima, como se eu estivesse pegando uma fruta da árvore, toda vez que eu falava "a arte" – Me diga seu nome, moça! E chame o gerente agora!
    – Não, não. Tudo bem, acalme-se! Eu prometo que vou me informar. Em que posso ser útil?
    – Pois bem, na minha próxima peça, um dos atores fará um papel de um militar disfarçado de mulher numa família e...
    – Hehehe, Você já vai contar o final da peça, diretor? – Disse Allan, me interrompendo e me dando um beliscão no braço ainda!
    – Pare de interromper a arte, Allan! A arte! Só porque o senhor patrocina a minha peça, o senhor acha que está acima da arte? A arte! Você é o dinheiro e eu sou a arte! A arte! A arte não se interrompe! A arte! Olha só, agora eu perdi a minha linha de raciocínio.
    – O senhor não vai fazer a pose, senhor Caravejo? – Perguntou a recepcionista.
    – Não, só quando eu falo a palavra "arte" na frase. A arte!
    – Nossa! Vocês, do meio artístico são... Bem... Particulares.
    – A senhora está caçoando da arte, moça? A arte!
    – Não, não! Olha, pelo que eu entendi, o senhor precisa de um maquiador para fazer um ator homem se passar por mulher na sua peça, certo?
    – Você é esperta, moça! Os olhos da arte me trouxeram para o lugar certo. A arte!
    – Ai, meu Deus do céu! – Esse Allan não para de fazer oração!
    – OK, vou chamar o nosso principal maquiador aqui. Ele é o que dá o nome ao salão. Aguardem nessa sala de espera que ele já vem.
    A recepcionista nos deixou gentilmente nas cadeiras da sala de espera e saiu em direção à porta de uma sala que ficava no final do salão. Ela atravessou todo o salão, entrou pela porta e fechou rapidamente. O salão estava com todas as cadeiras ocupadas, cada uma com uma mulher sentada enquanto o profissional fazia seus serviços nos cabelos, ou nas unhas, ou na maquiagem de cada uma. Um cheiro de descolorante era forte no ar e o barulho dos secadores de cabelo juntos compunham o ambiente.
    Logo veio até nós o dono do local. Um rapaz sorridente e muito simpático. E, por incrível que pareça, ele também reconheceu o Allan:
    – Allan Tresekos! Há quanto tempo! Não te vejo desde quando a Dona Alice foi internada.
    Opa, opa, opa! Dona Alice seria a Alice Harback? Allan nunca me disse que ela foi internada. Além disso, parece que ele ia lá junto com ela. Então eu precisei intervir:
    – Olá! O senhor deve ser o Hamilton que dá o nome ao salão. Muito prazer, eu sou José Caravejo.
    – O prazer é meu de receber um diretor de teatro tão renomado no meu salão. A propósito, não precisa pronunciar meu nome com sotaque estrangeiro, meu nome é aportuguesado mesmo.
    – Aaaah! Tudo bem. Só uma pergunta: quem seria essa "Dona Alice" à qual você se referiu?
    – Alice Harback, acho que o senhor deve conhecer, já que anda com o Allan.
    Opa, opa, opa e mais opa! Quer dizer que quem anda com o Allan conhece a Alice automaticamente?
    – Allan Tresekos, quando combinamos o seu patrocínio, o senhor ficou de me passar as informações minuciosamente. O senhor quer atrapalhar a arte? A arte!
    – Eeeh... Eu não sabia que isso era importante pra história da peça.
    – Como não? Isso faz parte da história central da peça!
    – Desculpem-me, mas... A peça é sobre a Dona Alice? Ela nunca me disse que fariam isso.
    – Não posso contar a história agora, Hamilton. A arte é um castelo que precisa ser construído aos poucos. A arte! – Muito boa essa analogia, hein?
    – OK... Então, a Manu me disse que vocês precisam de um maquiador para fazer um ator se passar por mulher no palco. Bom, eu posso mostrar pra vocês o meu trabalho? Eu faço uma maquiagem mais simples pra vocês verem, aí vocês decidem se me contratam ou não. Onde está o ator?
    Allan queria acabar logo com a situação, então tentou entrar na conversa. Mas eu precisava de mais informações. E aquele maquiador parecia saber bastante.
    – O ator não pôde vir. Podemos marcar pra outro dia?
    – Não, tudo bem, pode fazer no Allan mesmo!
    – O quê? Cê tá doido?
    – Allan, faça isso pela arte! A arte!
    – Ah, perfeito, senhores! Allan, acompanhe a Manu até a cadeira enquanto o diretor me diz como ele quer que fique.
    – Ei, eu não concordei com isso!
    Pois esse tal de Hamilton faz mesmo uma maquiagem perfeita! O Allan ficou uma modelo fotográfica! Além disso, ele também sabia muito sobre a vida de Alice Harback. Enquanto Hamilton ia trabalhando no Allan, ele ia me dando mais alguns detalhes.
    Parece que Alice Harback contraiu um tumor há dois anos atrás e foi dada como sem esperanças. Mas, meio que milagrosamente, ela voltou e o tumor regrediu. Esses médicos de ricos são muito competentes mesmo!
    Além disso, parece que enquanto o General Ivan Harback lutava na guerra, Alice Harback frequentava o salão de beleza na companhia de Allan. E isso só acabou quando ela ficou doente.
    Mas esse Allan me deve muitas explicações! E não vai ser o rostinho bonito dele que vai me fazer titubear não, viu?
    Continua...
  • Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capítulo III: O Cemitério Militar

    Após a visita ao salão de beleza favorito da senhora Alice Harback, acabei descobrindo que Allan Tresekos estava me escondendo informações importantes sobre o caso. No final das contas, fiquei tão intrigado com essa descoberta que esqueci do principal, que era saber como eram os procedimentos do salão em Alice Harback.
    O maquiador conseguia sim fazer perfeitamente um homem se passar por mulher. O Allan teve até trabalho para tirar toda a maquiagem. Porém, isso não era suficiente para comprovar a teoria maluca de Allan. Eu precisava de alguma prova palpável. Algo que demonstrasse que, de fato, tinha um doido que se inspirou em comédias de Hollywood dos anos 90 para executar uma vingança. Mas se o Allan continuar me escondendo informações, será impossível achar. Então, tive de confrontá-lo em meu escritório. Agora era o Allan que ia enfrentar um furioso Jerry Bocchio.
    – Senhor Allan, como você pôde me esconder essas informações? Elas são muito necessárias para o caso! O fato de saber que Alice foi internada sem esperanças de sobreviver muda toda minha linha de investigação. Você acha que eu sou tão burro a ponto de não descobrir?
    – Eu já disse que não sabia que eram importantes para o caso. Além disso, achei você meio burro mesmo desde a nossa primeira conversa.
    Então, Allan achava mesmo que eu era burro. Eu só queria saber o que influenciou essa suposição dele. Mais uma vez eu estava diante de alguém que não tinha confiança em meus métodos. Talvez fosse por isso que Allan gostava tanto de me acompanhar em minhas investigações.
    Allan percebeu que sua fala havia deixado um silêncio constrangedor e ficou incomodado, então tentou retornar ao assunto:
    – Mas me diga, detetive: tem algo mais que gostaria de saber?
    – Eu só quero mais detalhes sobre a internação de Alice.
    – Bom, como amigo da família, eu tentei visitar Alice no hospital. Mas os enfermeiros me diziam que ela não aceitava visitas de ninguém. Eu fiquei sabendo que nem da própria família ela aceitava.
    – Muito estranho, mas justificável. Talvez ela não quisesse que alguém tivesse uma última recordação dela sofrendo numa maca de hospital. Mas antes de ela ser internada, por que o senhor a acompanhava ao salão de beleza?
    – Bom... Ela se sentia sozinha quando seu marido estava lutando na guerra. Eu costumava passar as tardes dando companhia a ela.
    – Você ia até a casa dela?
    – Olha, detetive... Sim! Eu ia pra tomar café com ela. Mas era só isso. Aí, quando era dia dela ir ao salão, eu deixava ela lá e ia pra minha casa.
    – Só mais uma pergunta: ela adoeceu antes de ficar sabendo da morte de Ivan ou depois?
    – Antes. Só que a morte de Ivan aconteceu bem na época da recuperação de Alice.
    – OK, vou encerrar minhas atividades nesse caso por hoje então.
    – Como assim? Não vai investigar nenhum lugar hoje?
    – Olha, senhor Allan, isso foi muita informação nova. Preciso processar tudo um pouco pra traçar uma nova estratégia. E como eu sou meio burro, preciso de, pelo menos, um dia inteiro pra isso.
    – Ai, detetive, sinto muito se você se magoou com o que eu disse. Eu reconheço que você tem métodos de investigação e de raciocínio um tanto quanto heterodoxos, então deveria saber que isso causa um estranhamento nas pessoas.
    – Olha só! Agora fica me chamando de metido a hétero top!
    – O que? Não tem nada a ver uma coisa com a outra! Ah, quer saber? Eu estou achando melhor a gente seguir amanhã mesmo.
    Allan se levantou e saiu do meu escritório. Era exatamente isso o que eu planejava, pois minha intenção, na realidade, não era de continuar no dia seguinte, era de continuar sem o Allan. Allan era reconhecido por todos, isso atrapalhava minha investigação. Além disso, com essa história contada por ele hoje, percebi também que Allan estava muito envolvido no caso. Esse envolvimento afetivo também poderia atrapalhar.
    Com Allan fora do meu caminho, era hora de pensar em alguma outra linha de investigação. Eu poderia tentar o hospital onde Alice foi internada, mas esses médicos não gostam muito de falar sobre seus pacientes. Eles ficam falando que tem a ver com uma tal de ética. Nunca entendi essas coisas.
    Talvez o cemitério onde Ivan está enterrado poderia dar uma pista. Se eu conseguir as informações de quem foi no velório, quem fez o discurso ou quem organizou, talvez eu consiga a informação de alguém estranho aparecendo lá. Alguém que procura vingança, quando fica sabendo da morte daquele que considera ser seu algoz, costuma aparecer no velório pra comprovar. Vi muito isso nos filmes. É só uma suposição, mas é o que tenho pra hoje.
    Eu me lembrei que Allan havia me dito que militares e seus familiares tinham direito a um cemitério exclusivo. Pesquisei na internet qual era na cidade e encontrei o Cemitério Militar. Bem óbvio, não? Ele contava com tudo, inclusive uma administração com um cartório anexo ao lado do cemitério para as certidões de óbito. Então decidi que era lá que eu ia para buscar mais alguma pista.
    Fui à noite para evitar chamar muito a atenção. Pensei que era só chegar lá e procurar o túmulo, mas não, parece que você precisa se identificar também pra administração. Eu não sabia que funcionava desse jeito. Aliás, eu não sabia como nenhum cemitério funcionava porque nunca fui em um. Sempre tive medo. No balcão da administração estava apenas um senhor que era o responsável pela identificação. Ele sempre falava de um modo firme e direto, como um militar. Já começou perguntando o meu nome e o que eu ia fazer ali aquela hora da noite. Então precisei inventar mais um disfarce. Comecei a dar uns soluços e fazer cara de choro. Aprendi a fazer isso num tutorial do YouTube que ensinava a disfarçar tristeza.
    – Meu nome é Rubens Augusto Marchiello. Eu vim aqui prestar homenagem ao General Ivan Harback. Eu fiquei sabendo recentemente sobre a morte dele.
    – O senhor é alguém próximo a ele?
    – Eu não diria próximo, mas ele foi um homem que marcou a minha vida. O General Ivan Harback me tirou do mundo das drogas e me colocou no exército fazendo eu tomar jeito na vida – uma história grandiosa e que agrada o interlocutor sempre ofusca uma mentira, aprenda isso.
    – O General Ivan Harback nunca trabalhou no alistamento – OK, dessa vez não foi do jeito que eu esperava devido a essa informação.
    – Aaaah... É que ele abriu essa exceção pra mim. – Comecei a aumentar a frequência dos soluços – ele tinha esse dom de ver disciplina nas pessoas e ele enxergou isso em mim.
    – O General Ivan Harback era um militar reservado, não gostava de ficar fora de seu gabinete – que cara chato! Ele tem resposta pra tudo. Esses militares...
    – Aaaah... É que eu disse que eu era uma exceção, né?
    – Escute aqui, rapaz, eu só não te chuto pra fora daqui porque o General Ivan Harback não está enterrado neste cemitério.
    Mais uma informação nova escondida de mim. Fiquei tão surpreso que até saí do personagem.
    – Não? Como assim?
    – O General Ivan Harback desertou durante a guerra e perdeu seus benefícios como militar. Agora, senhor Rubens, se é que é esse mesmo o seu nome, dê o fora daqui!
    Além de chato, ele era bem esquentadinho também. Talvez fosse pelo fato de trabalhar à noite. Já vi muitos médicos falando que não se deve trocar o dia pela noite porque aumenta o estresse, eu acho.
    Enfim, durante a guerra que o Ivan lutava, Alice adoeceu e ele desertou. Além disso, no hospital, Alice não deixava ninguém visitá-la. Eu saí do prédio da administração desconfiado de que esses eventos possuem algo em comum. Eu estava na calçada matutando sobre isso quando me assustei com uma voz de uma mulher:
    – Bisbilhotando na minha vida, Jerry Bocchio?
    Era Alice Harback. Dei o azar de ir até lá bem num dia que ela ia visitar o túmulo do marido... Opa! O marido não estava enterrado lá! O que ela estava fazendo ali?
    – Olha, senhora Alice, se a senhora veio visitar seu marido, está perdendo tempo. Ele não está enterrado aqui.
    – Mas você é muito burro mesmo! Você acha que eu não sei onde meu marido está enterrado? Eu vim até aqui porque eu quero saber porque estou sendo investigada. Você tem o dever de me falar!
    Será mesmo que eu conto a teoria de Allan? Ainda bem que eu não sou engessado pelas instituições governamentais.
    – Eu? Investigando a senhora? Não, eu vim aqui porque... porque... eu vim visitar o túmulo do meu superior na polícia...
    – Você foi até o meu clube, depois foi ao enterro do meu cachorro, depois até o meu salão de beleza e agora está na porta do Cemitério Militar, com certeza presumindo que meu marido estivesse enterrado ali. E muitas vezes com aquele enxerido do Allan Tresekos. Aquele idiota fica me mandando mensagem direto desde quando saí do hospital. Você não está pensando que eu matei o meu marido, está?
    Droga! Eu sabia que essas pessoas reconhecendo o Allan iam acabar me atrapalhando.
    – Olha, como eu sou um detetive particular, e não da Polícia, eu não preciso ficar dando satisfação sobre minhas linhas de investigação. Então, se a senhora me der licença, eu preciso voltar ao meu escritório pra encerrar o dia.
    – Está bem então, detetive! Eu vou tomar providências para que o senhor se mantenha longe de mim e da minha família.
    Olha só! Ela veio me ameaçar sozinha, sem nenhuma autoridade por perto. Pelo visto eu estou no caminho certo. E ela está fazendo alguma coisa errada. Tomei meu rumo e voltei pra casa tentando imaginar alguma ligação entre os eventos que eu descobri.
    No dia seguinte, quando fui abrir o escritório, tinha uma pessoa me esperando na porta. Na hora me deu um receio, mas era apenas meu antigo parceiro da Polícia, Thomas Mangalvo. Thomas era o único que entendia meu raciocínio lá dentro e apreciava muito meu jeito de trabalhar. Ele gostava de ser meu parceiro e dizia que nós éramos a dupla de amigos Tom & Jerry, baseado no desenho do gato e rato. Isso indica apenas uma coisa: ele nunca assistiu Tom & Jerry.
    – E aí Jerry, beleza?
    – E aí Tom? O que o traz aqui? A Polícia precisa de ajuda minha? Eu estou num caso mas posso ver um espaço.
    – É, eu tô sabendo. Você está investigando a senhora Alice Harback, né?
    – Ué, como assim? Como você está sabendo disso? E a sua cara ainda me indica que você vai me dar más notícias.
    – É, pois é, Jerry. A senhora Alice Harback foi na Polícia hoje de manhã pedir medidas restritivas contra você.
    – Ai, que droga! Quer dizer que eu vou ter que passar por aquilo de novo?
    A nossa Polícia, quando recebe uma solicitação de medidas restritivas contra um detetive particular, solicita uma sabatina a ele para saber detalhes sobre a investigação. Se ela acha a investigação pertinente, ela autoriza a investigação com supervisão dela, mas se não achar, ela defere as medidas restritivas.
    – Mas não se preocupa não, Jerry! Eu vou fazer parte da sabatina. Como eu já te conheço, eu posso convencer a autorizar.
    – E quem vai ser o outro?
    – O Capitão Gregade.
    Essa não! O Capitão Lester Gregade é aquele que eu disse ao Allan que era meu capitão, que eu falei que também ficava falando "ai meu Deus, ai meu Deus" pra todo lado. Ele sempre foi muito rígido em relação às regras da Polícia. Ou seja, agora eu precisava mesmo de uma prova palpável e convincente.
    – Ah, que legal, Tom! Agora eu me ferrei de vez!
    – Ué, sua investigação tá muito parada?
    – Eu só tenho uma teoria maluca e nenhuma prova.
    – Caramba, Jerry! Então você precisa pôr sua genialidade pra funcionar rápido. A sabatina é depois de amanhã. Eu até me ofereceria pra ajudar, mas vou participar da sabatina, então não posso me envolver.
    E agora? Não pretendo desistir, mas tenho só hoje e amanhã pra conseguir algo. Espero que Tom esteja certo em relação à minha genialidade.
    Continua...
  • Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capitulo V: A Sabatina

    O dia amanheceu. Levantei confiante, sem medo do que poderia acontecer na sabatina. O caso ainda não estava solucionado, mas minha intuição, ah, minha intuição, dizia que o que eu estava prestes a fazer era o caminho certo.
    Saí da minha casa e fui andando em direção ao meu escritório. Mas não sem antes passar na Padaria Nova Caledônia e tomar meu café da manhã habitual. O Seu Rogério já chegou me perguntando quando eu ia dar uma entrevista sobre o caso. Eu prometi a ele que se alguma emissora de TV me procurasse, eu iria correndo para a fachada da padaria.
    Cheguei em meu escritório, peguei as cartas que estavam guardadas em uma gaveta com chave. Deixo essa gaveta apenas para minhas coisas importantes, como provas de casos grandes, cartas de ameaças recebidas e cupons de desconto da praça de alimentação do shopping da cidade. Repassei elas mais uma vez e pensei bem no que iria falar na sabatina, afinal, tudo o que eu disser será avaliado pelo Capitão Lester Gregade.
    O Capitão Lester Gregade é um homem que segue as regras à risca. Ele não tolera brechas. Segundo ele, se a Polícia não mostrar que está cumprindo seu papel dentro da lei, a população nunca vai respeitar e colaborar com a Polícia. Eu até concordo em partes com ele, mas e se as regras forem feitas por pessoas que não gostam de seguir regras, como ficaríamos? Por isso que saí da Polícia, às vezes, as regras parecem estar do lado errado da história.
    Peguei minhas coisas e saí do escritório. Fui andando em direção à delegacia onde trabalhei. Quando cheguei lá, vi que poucas coisas haviam mudado. Algumas pessoas novas, muitas pessoas conhecidas, até a cela onde ficavam os presos temporários tinha um rosto conhecido, um cara que tinha um bom advogado. A mesa onde eu trabalhava agora era ocupada por outro investigador, ele me parecia ser bem mais sério do que eu. Talvez seja perfeito para o Capitão Gregade.
    Eu fui até a mesa da secretária e era a mesma, Maria Silveira. Ela é uma pessoa legal, mas às vezes tem a incômoda mania de ser muito debochada. Quando ela me viu chegando, já foi logo falando:
    – Ah, Jerry, você aqui de novo? Nem como detetive particular você se livra de problemas, hein?
    – Que bom ver você também, Maria. Eu estou aqui pra falar com o Capitão Gregade.
    – Já tá todo mundo lá na sala de reuniões esperando você. É só ir lá.
    – Ué, não vai me levar até a sala?
    – Ué, por quê? Você já sabe o caminho.
    Então lá fui eu, na sala de reuniões da delegacia. A porta estava aberta e uma mesa enorme estava ocupada faltando apenas um lugar, que supus que era o meu. Nela, estavam o Capitão Gregade, Thomas Mangalvo, um promotor do Conselho de Justiça, Alice Harback e até o Allan Tresekos e seu advogado. Allan estava com um olhar muito temeroso, afinal, ele acreditava que eu iria expor a teoria maluca dele, de que Alice Harback era um homem disfarçado.
    Assim que me sentei, o Capitão Lester Gregade, sério como sempre, olhou fixamente para mim e começou a falar:
    – Antes de nós começarmos, quero que você me escute bem, Jerry Bocchio. Não é só porque o senhor está fora da corporação que o senhor pode fazer tudo do jeito que deseja. Nós temos leis pra cumprir, todos nós. Investigação não te dá carta branca para importunar ninguém. Estou sendo claro?
    Agora era a hora do show:
    – Sim senhor, sempre tive consciência disso. Mas, em minha defesa, eu gostaria de falar duas coisas: primeiro, que eu não importunei ninguém, a senhora Alice Harback não estava presente em quase nenhum dos lugares onde investiguei, segundo, quando ela ficar sabendo da minha linha de investigação, vai querer retirar a queixa na hora.
    Nesse momento, todos os olhares vieram para mim com curiosidade, até o de Allan. Então, o Capitão Gregade perguntou:
    – Posso saber que informação tão estupefaciente é essa?
    – Segundo as informações que eu já apurei, tenho muitos motivos para acreditar que o General Ivan Harback está vivo.
    Geralmente, num filme, nessa hora todos os personagens fariam um "ooooh" uníssono e a trilha sonora tocaria um "tan, tan, tan" indicando um clímax. Infelizmente, não foi bem assim. O Capitão Gregade fechou ainda mais a cara, Alice Harback começou a rir de deboche e o Allan virou para seu advogado e soltou um "meu Deus", de novo orando.
    – Mas esse detetive é um idiota mesmo, como que vocês, da Polícia, aceitaram um sujeito desse para trabalhar? Eu enterrei meu marido, vi o corpo dele no caixão, como que esse sujeito fala que ele está vivo?
    – Como que o senhor pode fazer uma afirmação dessas, senhor Jerry Bocchio? – Perguntou o Capitão Gregade num tom ainda mais firme.
    Eu peguei as cartas que Allan havia me dado, retirei do maço a carta onde ele dizia que já estava no país e que iria para o hospital e entreguei ela nas mãos do Capitão Gregade.
    – O General Ivan Harback não morreu na guerra, ele desertou. Essa carta escrita por ele diz que ele havia acabado de chegar no país e que iria visitar Alice Harback no hospital.
    – Como você teve acesso a isso? – Perguntou Alice Harback, perplexa.
    – Responda apenas a mim, Jerry Bocchio. Isso não prova que ele está vivo. – Disse o Capitão Gregade, ignorando o espanto de Alice.
    – Eu sei, mas o paradeiro do corpo do General Ivan Harback é desconhecido. Ele não foi enterrado no Cemitério Militar, pois perdeu os direitos após desertar, o que significa que entre a saída dele e sua suposta morte, teve tempo do Exército fazer todo o trâmite de retirada de seus direitos. Além disso, o velório dele foi fechado, apenas a família mais próxima teve acesso ao seu corpo, mais ninguém. E também não existem registros do óbito dele no Exército, ele apenas é dado como desaparecido.
    – Jerry, Jerry. Eu dizia a você desde quando você trabalhava aqui. Você é muito criativo, mas você deixa ela afetar demais o seu trabalho. A sua história está muito mirabolante.
    – Isso mesmo! Prendam ele agora! – Gritou Alice, com uma voz firme e tom de autoridade.
    O grito e a postura de autoridade de Alice causaram um estranhamento no Capitão Gregade. Ele ficou encarando Alice, que logo voltou para sua pose de velhinha rabugenta normal.
    – Mas desta vez, eu vou te dar uma chance. Mangalvo, procure o nome do General Ivan Harback no sistema de controle de óbitos. Veja o que você encontra lá.
    – Sim, senhor! Agora mesmo!
    Thomas saiu da sala correndo, com um ar de confiança, foi até sua mesa e começou a olhar em seu computador. Ficou uns dez ou quinze minutos lá, ele sempre fazia questão de ser detalhista, imprimiu um papel e logo voltou correndo. Durante todo esse processo, Alice olhava tentando disfarçar sua apreensão, mas o suor frio e o tremor nas mãos indicava que ela estava acuada. Ao voltar pra sala, Thomas entregou o papel nas mãos do Capitão Gregade.
    – Senhor, o sistema de controle de óbitos não tem registro do General Ivan Harback.
    – Estranho, será que foi um erro no sistema?
    – Eu vasculhei várias vezes, senhor.
    – Senhora Harback, tem uma explicação que gostaria de dar?
    Os olhos de todos se voltaram para Alice, que agora não tinha mais como esconder seu medo.
    – Nós... Cremamos ele.
    – Mesmo assim, isso estaria constando aqui.
    – É que... Nós... Jogamos suas cinzas no mar.
    O Capitão Gregade foi ficando mais desconfiado ainda das reações de Alice, foi aí que eu aproveitei:
    – Capitão, porque o senhor não solicita a presença da família Harback para depoimento? Eles devem saber de algo que a senhora Harback não sabe. – Joguei verde pra colher maduro.
    – Bom, acho que vou ter que seguir sua sugestão, Jerry. Mangalvo, vá agora...
    – Não ouse incomodar minha família! – Interrompeu Alice, em tom ameaçador.
    – Senhora Harback, acho que a senhora não está compreendendo totalmente o que está se passando. O detetive Jerry Bocchio está me trazendo provas de que seu marido ainda está vivo depois de ter desertado de uma guerra. E as evidências que pegamos aqui estão fazendo esse caminho parecer ainda mais possível. Se alguém de sua família estiver sabendo de algo e escondendo o paradeiro dele, isso pode incorrer em muitos crimes. Se não for verdade, temos que eliminar essa teoria. Então seria bom chamarmos sua família aqui também.
    O Capitão Gregade virou-se para Thomas de novo para dar a ordem quando Alice, desesperada, levantou num movimento brusco da cadeira e interrompeu com outro grito, só que agora com uma voz muito mais grossa:
    – Não! Eu confesso!
    Alice Harback põe uma de suas mãos na cabeça, puxando seus cabelos para trás e tirando-os, revelando que seus cabelos eram, na verdade, uma peruca. Depois disso puxou a pele de seu rosto, revelando que era uma máscara de maquiagem. Após isso, com a peruca em uma mão e a máscara na outra, de cabeça baixa ela, que agora parecia ser mais ele, disse:
    – Eu sou Ivan Harback!
    Todos os outros na sala, falaram um uníssono "ooooooh" e depois logo ouviu-se um "tan tan tan", que eu percebi que era o toque do meu celular indicando que eu estava sem crédito.
    – Hehehe, desculpa aí pessoal, esqueci de colocar o celular no silencioso... Wow! Como é que é?
    – Ivan Harback! Acho que o senhor nos deve muitas explicações. – Disse o Capitão Gregade, ainda perplexo com a situação.
    – A Alice nunca se curou, ela morreu no hospital mesmo. Ela não deixava ninguém visitá-la porque eu estava lá com ela e ela tinha medo que alguém me visse e chamasse as autoridades. Tudo isso foi ideia dela, ela não queria que eu fosse preso depois de passar tanto tempo na guerra, então, antes de morrer, ela falou para eu assumir a identidade dela até que eu conseguisse limpar meu nome no Exército.
    – Como o senhor quer que acreditemos nessa história, General?
    – Primeiro, por favor, não me chame mais de General, não presto mais serviços ao Estado, nem quero prestar mais. Segundo, eu tenho uma gravação feita por ela enquanto estava no hospital.
    Ivan puxou o celular e mostrou um vídeo salvo. Nele, a verdadeira Alice Harback, bem fraca, falava com um pouco de dificuldade para a câmera:
    "Olá, eu sou Alice Harback, se meu marido está mostrando esse vídeo a você, é porque você deve ter descoberto nosso combinado. Eu autorizei meu marido a assumir minha identidade para que ele não seja preso. Eu prometo que quando ele conseguir arrumar a situação dele junto ao Exército, ele vai revelar toda a verdade. Mas eu não quero que ele fique longe mais da nossa família."
    Sua cabeça explodiu agora? Porque a minha, sim. Quer dizer que o doido do Allan tinha razão quanto à Alice ser um homem disfarçado? Só que é ainda mais doido porque o homem é o marido dela. Após o vídeo, Ivan continuou:
    – Eu desertei e voltei porque Alice tinha parado de responder minhas cartas. Então fiquei preocupado que pudesse ter sido o câncer. Mas quando cheguei no hospital, ela tinha acabado de dar entrada, o que significa que ela só não estava respondendo minhas cartas mesmo.
    Nessa hora eu fiquei incomodado com algo. Era um momento de revelação de verdades, eu tinha que falar outra coisa que eu havia percebido. Além disso, eu queria um clímax pra mim:
    – Ela não estava respondendo as cartas porque teve um caso com Allan Tresekos.
    – O quê?
    OK, OK, fiquei empolgado e falei demais. Ivan e Allan estavam querendo me matar e o Capitão começou a falar o clássico "ai, meu Deus" dele. Mas, já que eu tinha começado, né?
    – É, né? É que ela não respondia porque o Allan interceptava o rapaz que entregava as cartas e pegava as cartas pra ele. Percebi isso porque as datas de umas cartas eram anteriores à entrada de Alice no hospital, e o Allan me disse que só fez isso depois, então a conta não fechava. Além disso, Allan sabe muitos detalhes da vida dela, inclusive jeito de andar, de maquiar etc. Mas não sabia o nome do cachorro da família, já que ele não me avisou sobre isso no enterro do Jack, o que indica que ele era íntimo dela, não da família, como ele alegava. Também tem o fato do pessoal do salão de beleza ter reconhecido o Allan e tratado ele como íntimo da Alice. E se você somar isso ao hábito dele de ficar visitando a Alice quando ela estava sozinha em casa, né? Hehehe.
    – Allan Tresekos, seu enxerido, desgraçado! É por isso que você me enchia o saco me mandando mensagem?
    – Eu... Gostava do bolinho de chuva.
    Isso virou uma novela mexicana, né? Depois dessa fala de Allan, um silêncio sepulcral tomou conta da sala. Allan e Ivan me olhavam com vontade de me matar. O Capitão Gregade, depois de perceber isso virou pra mim e disse:
    – Jerry, pra sua segurança, é melhor você ir embora. Mangalvo, acompanhe ele pra evitar mais problemas.
    Enfim, esse foi o meu caso mais estranho até agora. Ivan Harback está respondendo na justiça por falsidade ideológica e ocultação de cadáver, por ter escondido Alice Harback. Allan Tresekos está enfrentando um divórcio e ainda teve todo o caso dele com Alice vazado na internet pela ex-mulher dele, que tava com raiva, viu?
    Quanto a mim, eu não ganhei todo o dinheiro que esperava, afinal eu expus o meu cliente, né? Coisas que acontecem. Mas sigo fazendo o meu trabalho esperando que esse caso me dê mais visibilidade pra eu poder dar a entrevista na frente da Padaria Nova Caledônia.
    Só sei de uma coisa: se eu ainda tivesse na Polícia, esse caso nunca teria chegado até mim.
  • Jerry Bocchio — Detetive Particular – Capítulo I: O caso

    Meu nome é Jerry Bocchio, trabalho como detetive particular. Os clientes que vêm até mim costumam me mandar casos que a polícia rejeita por achar que não tem importância. Porém, todos os casos têm alguma importância: furtos de lojas, gatos de água, luz ou internet, plágios entre outros.

    Naquele dia não foi muito diferente. Estava eu, sossegado em meu escritório, quando um homem aparentemente muito rico entrou na minha sala. Ele estava um pouco assustado, talvez pela luz baixa que eu deixo no meu escritório — eu vejo nos filmes que isso passa uma boa impressão ao cliente.

    Após se sentar na cadeira em frente à minha mesa, ele logo começou a falar:

    — O senhor é Jerry Bocchio?
    — Quem é que me pergunta?
    — Meu nome é Allan Tresekos.

    Allan Tresekos é um importante empreiteiro no país. Dono de muitas empresas que mexem com construção civil.

    — O que um homem como o senhor faz aqui no meu escritório?
    — Infelizmente, a polícia não acredita no meu caso.Estão pensando que estou louco. Então fiquei sabendo de seus trabalhos e me interessei.
    — Conte-me mais.
    — Eu desconfio, aliás, desconfio não, tenho certeza de que uma senhora que frequenta mesmo clube que eu é, na verdade, um homem disfarçado.
    — Opa, Opa! Pode parar por aí! No meu escritório não tem espaço pra preconceito!
    — Como é?
    — Poxa vida, senhor! Estamos no século XXI! Existem mais de dois gêneros, atualize-se!
    — Não é nada disso que eu estou falando, detetive! Eu conheço essa senhora desde quando eu era criança. Só que de uns tempos pra cá eu percebo algo diferente na atitude e na aparência dela.
    — Aaaah! Então tá, pode continuar.

    Para continuar a ouvir, peguei um cigarro e comecei a dar um trago. O problema é que logo depois do primeiro trago eu comecei a tossir demasiadamente.

    — Está tudo bem, detetive?
    — Não, não (cof)... Tá tudo bem (cof)! É que eu não fumo (cof, coooof).
    — Se você não fuma, por que pegou esse cigarro?
    — É que causa uma boa impressão pra um detetive (aaaa-ham). O senhor não vê isso nos filmes (cof, cof)? Mas pode continuar a história (aaaa-ham).
    — Certo... Então, o nome dela é Alice Harback, ela é uma amiga da minha família. Eu estou preocupado porque ela é viúva do General Ivan Harback. Talvez algum inimigo antigo dele tenha aparecido e...
    — Atchim! Atchim!
    — Tossir por causa de cigarro eu vejo muito, agora espirrar, aí é nova.
    — Ai... É que fumaça de cigarro ataca a minha rinite. Mas não se preocupa não porque eu tenho um antialérgico aqui na minha gaveta.
    — Você toma antialérgico assim? Tem a receita pelo menos?
    — Ué, pra que eu preciso de receita se eu posso comprar um pronto na farmácia?
    — Meu Deus, eu não acredito que ouvi isso!
    — Além do mais, deve ser muito caro comprar os componentes e os frascos pra fazer...
    — É receita médica que eu tô falando! Aquele papel que o médico te dá autorizando você a comprar um remédio e instruindo como tomar.
    — Aaaah! É receita o nome disso? Caramba! Pra que dar o mesmo nome, né? Já pensou se a indústria da confeitaria descobre isso? Pra comer bolo, você só vai poder se tiver receita assinada por um confeiteiro. Gente, isso ia ser...
    — Você vai ouvir a história ou não, detetive?
    — Tá bom, Tá bom! Desculpa! Pode falar.

    De fato, a história dele parecia muito maluca mesmo. Ele acreditava que um velho inimigo do General Ivan Harback havia matado Alice Harback e assumido o lugar dela na família para completar sua vingança. Um chapéu de alumínio cairia bem na cabeça desse homem.

    Mas minha intuição, ah, minha intuição, me dizia para pegar o caso. Bom, talvez não fosse tanto minha intuição assim, mas a minha ganância disfarçada, já que era um caso que envolvia a alta sociedade. Mas ouvi minha intuição falando que a voz da intuição que eu ouvi era a minha intuição de verdade e resolvi aceitar o caso. E minha intuição, ah, minha intuição, essa raramente errava.

    O plano era o seguinte: eu iria com Allan até o Clube Cerejeiras na festa de aniversário de um dos membros. Allan diria que eu sou convidado da família dele. Eu, com meu conhecimento sobre a alta sociedade, tentarei sociabilizar com alguns membros pra não levantar suspeitas. Quando eu avistar a Senhora Harback, eu tentaria chegar perto para verificar algum ponto que corroborasse a suspeita de Allan.

    Tudo começou bem como o planejado. Allan veio me buscar em meu escritório, me levou a seu alfaiate para me emprestar um terno e de lá fomos ao clube. Allan me apresentou como Rafael van Treven. Logo chegou um outro frequentador do clube para falar com Allan.

    — Allan, meu amigo! Que surpresa ver você aqui no clube numa quarta feira! Por um acaso esqueceu de pagar a mensalidade e veio quitar a dívida? – Disse o sujeito com um ar completamente esnobe.
    – Não, Marcelo. Na verdade vim aqui para apresentar o clube a um amigo meu. Deixe-me apresentá-lo: Marcelo, esse é Rafael van Treven. Rafael, esse é Marcelo Rubino, dono da Alfaiataria Rubino.

    Chegou a minha hora de brilhar na atuação.

    – Ah, claro, a Alfaiataria Rubino! É um prazer conhecê-lo!
    – O prazer é todo meu! Me diga, van Treven, pelo seu sobrenome, suponho que sua família veio da Europa, correto!
    – Claro! Meu avô era um comerciante muito conhecido na Suécia.
    – Suécia? Pensei que sobrenomes com van vinham da região da Holanda, Bélgica ou próximo.
    – Aaaah! É que ele morava perto da fronteira.
    – Suécia fazendo fronteira com a Holanda?

    Eu não sabia que os ricos gostavam tanto de geografia. Se eu tivesse suspeitado disso na infância, com certeza tinha me esforçado mais nessa matéria e hoje teria dinheiro. Pra minha sorte, avistei Alice Harback sentada a uma mesa perto da janela, completamente isolada e mexendo no celular. Deixei Marcelo e Allan, que por algum motivo estava com as mãos no rosto dizendo "meu Deus", e fui até uma mesa ao lado de Alice.

    Alice pôs o celular no ouvido e começou a falar. O bom de clubes de gente rica é que eles falam muito baixo, então, se eu quiser me concentrar na conversa alheia, é só eu direcionar minha audição, que é muito boa, por sinal. Pra se ter uma ideia, eu consigo localizar uma barata no meu escritório apenas ouvindo seus passos, assim eu consigo fugir mais rápido.

    Alice falava com muita veemência ao telefone:

    – Sim, Jack já foi sacrificado. Não se preocupe, eu sei como ele fazia bem pra família, fiz questão que ele não sofresse mais. Diga às crianças que ele foi para um lugar onde não vai acontecer nada de ruim a ele. Vamos enterra-lo assim que essa reunião do clube acabar. Eu te passo o endereço.

    O maluco do Allan estava certo, ou quase! Aquela mulher havia matado um membro da família e agora queria mentir sobre seu fim. Como foi fácil, eu só precisava pegar o endereço do cemitério onde ocorreria o velório e desmascarar aquela velha na frente de todos.

    O velório aconteceu no Cemitério São Francisco de Assis. Eu chamei Allan Tresekos para vir comigo para testemunhar o caso sendo solucionado. Allan estranhou e disse que aquele cemitério não era o cemitério que a Família Harback costumava enterrar seus membros. Segundo Allan, como Ivan Harback era um oficial do Exército, eles tinham direito a um cemitério exclusivo. Rapaz, agora que eu estou aqui falando com você, eu tô percebendo. Como esse Allan sabe tanto detalhe dessa família?

    Chegamos ao cemitério bem na hora que haviam enterrado o caixão. Os dois netos de Alice Harback, Enzo e Rebeca, choravam em volta da avó. Alice mantinha sua feição seria, com o queixo erguido. Mal sabia ela que eu iria derrubar aquele queixo – no sentido de deixar surpresa, sem violência, ah, você entendeu.

    – Alice Harback, parada! A senhora está presa!

    – Você pode dar voz de prisão, detetive? – perguntou Allan, estragando minha entrada.

    – Posso saber porque estou sendo presa?

    – Pelo assassinato de Jack Harback!

    – Você matou o Jack, vovó? – perguntou Rebeca.

    Agora eu havia pegado ela de jeito, no bom sentido! Então continuei dando seguimento ao meu excelente trabalho de detetive:

    – Sim, ela matou Jack Harback! Ele sabia de algo que ela queria esconder e então ela sacrificou Jack Harback...

    – Pare de chamar ele de Jack Harback! O nome dele era só Jack – Alice me interrompeu de um modo desesperador.

    – Ah, é? Você não considerava ele da família?

    – Não é isso, seu idiota! Jack era o nosso cachorro! – Alice me respondeu apontando para uma placa com o nome do cemitério que dizia: "Cemitério de Animais São Francisco de Assis" – Eu sacrifiquei ele porque ele estava muito doente, mas não queria dizer isso para meus netos! Foi você quem trouxe esse idiota, Allan?

    Allan não conseguia falar outras palavras que não fossem "ai meu Deus". E eu havia cometido um erro. Um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente, quando resolvi falar:

    – Aaaah! Bom... Talvez esse cachorro tinha uma segunda família.

    E agora? Por causa de um erro, me expus à investigada. Agora ela sabe que tem um detetive brilhante no pé dela e vai fazer de tudo para atrapalhar minha investigação.

    Continua...
  • Jerry Bocchio e a Ameaça no Reality - Capitulo IV: A Área VIP

    Após um dia longo de conversas com os participantes do reality, estava eu, no dia seguinte, me arrumando de um modo a parecer bem sucedido, mas respeitando o clima do local. Não dava pra ir de terno pra lá. Anne Gonzalo e eu combinamos de nos encontrar no restaurante, na área comum, para repassarmos nossos personagens para entrar na área VIP, onde o representante do patrocinador do reality gosta de frequentar. Nessas horas me faz falta um distintivo, com ele eu só entraria nos locais sem precisar bolar histórias.
    Ao sair do quarto, eu estava trancando a porta quando vi um vulto que parecia se esconder na parede do corredor que cruzava com o corredor onde ficava meu quarto. Minha intuição me chamou a atenção, então fui andando até lá. Pra você ver, né? Todo mundo fala da burrice dos mocinhos dos filmes de terror, mas acaba fazendo igual.
    Esgueirei a cabeça pra ver e era o Roninho. Ele estava com uma cara de criança quando é pega cabulando aula. Um pouco nervoso e parecia estar se escondendo de mim. Por que isso? Eu tive que falar:
    – Roninho, está tudo bem?
    – Detetive! Tá... Tudo bem! Só estou passeando.
    – Passeando dentro do hotel?
    – Não, dentro do hotel não! Eu tô saindo do hotel, na verdade. É que eu... Preferi usar as escadas... Manter a saúde, sabe? Exercícios!
    Roninho parecia muito nervoso. Ele costuma falar gesticulando muito, mas, dessa vez, estava com as mãos nos bolsos da calça.
    – Você tá bonitão, detetive! Não está paquerando nenhuma das participantes não, né?
    – Não! Não é isso não! Isso aqui é porque... Eu não posso falar o porquê agora.
    – Tem a ver com a investigação?
    – Sim! Só o que posso falar por enquanto.
    – Bom, boa sorte pra você então! Eu vou continuar meus exercícios hehehe.
    Ufa! Ainda bem que ele não pediu pra vir comigo. E que medo é esse de eu paquerar uma das participantes? Talvez porque ele queira que o programa dê certo, mas uma das participantes disse que não estava afim de começar um relacionamento no programa. Então, se for pensar assim, não vai dar certo.
    Continuei olhando o Roninho descendo as escadas. Ele descia devagar e virando a cabeça em minha direção com cara de preocupação. Qualquer um com um pouco de noção diria que ele estava fazendo algo suspeito. Mas como eu não queria sair do planejado, só esperei ele sair da minha vista para seguir meu rumo. Quando isso aconteceu, fui até o elevador.
    Cheguei ao restaurante e vi que Anne ainda não tinha chegado. Então fui até uma mesa da área comum pra esperar. Nosso disfarce era que nós seríamos um casal tentando fortalecer o relacionamento com uma viagem. Ela havia me dito que o restaurante contratou um profissional que sabe falar português excepcionalmente pra recepcionar o pessoal da emissora. Menos mal que eu não vou precisar falar em outras línguas de novo.
    Enquanto esperava Anne, vi a influencer Jessy Lins entrando na área VIP. Dez minutos depois, Roninho também entrou, parecia bem mais tranquilo do que parecia quando estava no hotel. Nenhum deles passou por mim, mas, ainda assim, isso não é muito legal, pode estragar o disfarce.
    Alguns minutos depois, Anne apareceu. Ela estava... radiante. Os cabelos pretos dela estavam soltos pela primeira vez desde quando a conheci, ela andava com mais leveza, e o vestido vermelho dela chamava a atenção, não por revelar demais, que não era o caso, mas pela beleza dele e como ele se encaixava perfeitamente nela. Ela me localizou logo e foi até a mesa onde eu estava.
    – E aí, detetive? Pronto pra colocar o plano em ação?
    – Hum... Acho melhor esperar um pouco.
    – Ah, por quê?
    – Aquela influencer e o Roninho estão lá dentro.
    – E o que é que tem?
    – Se você está disfarçado, não é bom encontrar gente que te conhece.
    – É, faz sentido. Mas, e aí? Vamos simplesmente esperar eles irem embora?
    – Bom, não dá pra ficar muito tempo aqui, né? Vamos esperar um pouco e torcer pra eles saírem. Se não saírem, acho que vamos ter que tentar.
    Anne se sentou à minha frente um pouco contrariada. Parece que ela estava bem ansiosa para dar continuidade à investigação. Eu já havia reparado isso nela, a investigação parecia despertar nela uma empolgação. Então, eu resolvi perguntar:
    – Anne, pode me esclarecer uma coisa?
    – Sim, o quê?
    – Você não parece gostar muito do seu trabalho atual, por que continua então?
    Anne me encarou por alguns instantes e resolveu responder:
    – Ah, detetive! De fato, não é o trabalho dos meus sonhos.
    – Pode me chamar de Jerry mesmo. Já somos parceiros nesse caso.
    – Tá bom então, Jerry. Como eu ia dizendo, não é o trabalho dos meus sonhos, mas eu preciso passar por isso pra conseguir um destaque na carreira.
    – Mas você quer mesmo essa carreira?
    – Quero! Eu gosto de trabalhar com o audiovisual. Só não é bem isso. Essa futilidade, essa superficialidade desses realities e programas de celebridades, ter que lidar com gente que não está disposta a ideias novas, só o mais do mesmo, nada disso nunca me conquistou. Mas é como eu te falei, é um degrau que eu tenho que subir. Você nunca teve que passar por isso?
    – Bom, não sei se você sabe, mas eu já fui da Polícia. Eu gosto de ser investigador, sempre foi meu sonho. Mas, quando entrei pra Polícia, vi que não era bem como eu imaginava. Aqueles protocolos, formulários, arquivos... Eles me engessavam, acabavam com a minha criatividade. Então eu pedi pra sair de lá pra me tornar detetive particular.
    – Nossa! Você nunca pensou em subir na sua carreira? Se tornar um tenente, um delegado, um capitão?
    – Quando eu entrei sim, mas eu percebi que eu teria que me submeter a muita coisa que não gosto e abrir mão de muita coisa que eu gosto pra isso. E eu iria subir pra quê? Pra continuar subindo? Pra mim não faz sentido. Tem uma coisa que eu falo pra todo mundo: eu só tento conquistar um prêmio se esse prêmio também me conquistar.
    – Olha, eu acho que não teria essa coragem de desistir da minha carreira por mera convicção pessoal.
    – Mas eu não desisti dela. Você falou de subir degrau, não é mesmo? Então, eu só resolvi subir outra escada. Uma que não tenha paredes dos lados que me forçam a olhar só pra cima, entende? Uma que me deixe aproveitar cada subida de degrau, podendo olhar dos lados também pra apreciar a paisagem.
    Após essa minha última fala, Anne ficou apenas calada, me encarando por alguns instantes. Talvez eu deva ter dito algo que ela não tenha gostado, ou algo que a deixou pensativa, não sei. Confesso que fiquei um pouco desconfortável com a situação, não estou acostumado a receber esse tipo de olhar. Só que, por algum motivo, eu não conseguia pensar em nada pra falar também, minha mente parecia que tinha entrado no modo de descanso de tela. Então, eu fiquei apenas olhando pra ela de volta.
    O cenário ficou desse jeito até que eu ouvi algo na porta da área VIP. O nome Enzo Klozowicz havia sido citado. Enzo Klozowicz era o representante do patrocinador com quem eu queria falar. Segundo as informações passadas por Anne, ele é CEO da empresa de tecnologia Bytex. Essa empresa cria e distribui aplicativos de smartphones, dentre eles, tem aplicativo de namoro e rede social, isso explica a conexão entre um reality de namoro (se é que pode ser chamado assim) e uma influencer de cultura pop.
    Olhei para a porta e vi ele entrando na área VIP, ou seja, ele havia acabado de chegar. Anne também viu ele e me chamou a atenção:
    – Jerry, olha! É o patrocinador!
    – Eu sei, eu também vi. Será que isso dá mais tempo para esperar os outros dois saírem?
    – Não sei. E se eles estiverem lá justamente pra falar com ele?
    – Ai, caramba! Então eu acho melhor a gente entrar pra poder olhar.
    Ela concordou e nos levantamos. Anne segurou meu braço direito, entrelaçando o meu e o dela, como se fossemos um casal, e fomos até o funcionário na porta da área VIP. Chegando até ele, fiz a minha cara de rico que tanto funciona nessas horas.
    – Boa tarde, senhor. Eu gostaria de uma mesa para dois, por favor.
    – Pois não, qual é seu nome?
    – Meu nome é Ricardo Boladazzo.
    Se você quiser se passar por alguém rico, não fique dando detalhes de sua profissão ou suas propriedades etc. Ricos não precisam fazer isso, só o nome com uma palavra parecida com alguma língua europeia e confiança e firmeza na hora de falar. Sempre funciona.
    – Não tem o seu nome na lista, senhor Boladazzo.
    – Hehe! Como não? Eu sou aceito em várias áreas VIP, por que nesse restaurante não?
    – Me desculpe, mas é norma da casa.
    – Como assim, "norma da casa"?
    – Se não tem o nome na lista, não posso deixar entrar. Muitas pessoas gostam de se fingir de rico pra tentar entrar aqui. Fãs, paparazzi, investigadores...
    – Ora, mas que insulto! O senhor, por acaso, sabe quem eu sou?
    Beleza, reconheço que joguei a falsa carteirada nessa. Mas é porque eu fiquei desesperado com a irredutibilidade do funcionário. Só que antes de continuar, a Anne resolveu intervir:
    – Ricardo, não me diga que você esqueceu de fazer as reservas!
    Ela estava entrando no personagem. Resposta rápida, muito bom! Não entendi onde ela queria chegar, então só fui aceitando a proposta:
    – Querida... É... Não é bem assim!
    – Não é bem assim nada, Ricardo! Você nunca faz nada direito mesmo!
    – É que eu não sabia!
    – Ah! Eu devia ter ouvido a minha mãe!
    Foi então que o funcionário se assustou e tentou intervir:
    – Escute, senhora, não se exalte, por favor!
    – Não me exaltar? Já fazem quatro anos que eu estou casada com ele e esse elemento nunca faz nada direito! Ele já esqueceu duas vezes o nosso aniversário de casamento. Teve um aniversário da minha mãe que ele deu um aparelho TV Box!
    – Mas o pessoal da empresa disse que pegava todos os canais.
    – Você fica quieto aí! Vamos voltar pro hotel, de lá, eu vou ligar pro meu advogado.
    – Senhor e Senhora Boladazzo, esperem, por favor! Eu achei o nome de vocês aqui na lista.
    – Sério?
    – Sério? Digo... É sério mesmo! Hehehe! Foi uma brincadeira que eu combinei com ele, Rita! Eu combinei essa cena aqui com o nosso amigo, o...
    – Juan.
    – Juan!
    – Ah, Ricardo! Você e suas brincadeiras! Sempre tentando me fazer rir.
    – Me acompanhem, por favor. Vou levá-los até a mesa.
    Olha, a ideia da Anne deu certo mesmo! Ela tem talento, rapaz! O funcionário nos levou até a mesa, ajeitou a cadeira para Anne se sentar e, enquanto ia ajeitando a minha, ele disse ao meu ouvido:
    – Te entendo, Senhor Boladazzo, também já passei por isso. Vai dar tudo certo!
    O funcionário foi chamar o garçom para nós atender e saiu. Enquanto isso, eu fui reparando no lugar. A área VIP é bem diferente da área comum. Pra se ter uma ideia, tem uma parte coberta com algumas mesas para casais e algumas para grupos. Um bar bem extenso do lado esquerdo de onde ficam as mesas com alguns bartenders que ficam fazendo malabarismo com os drinks. E na frente um portão de vidro ornamentado com uma estrutura de metal bem grande que dá para o lado de fora, a parte descoberta, que tem até uma fonte.
    Eu comecei a vasculhar com os olhos em todo o lugar, mas não achei Enzo Klozowicz. Será que ele havia saído? Anne, pelo visto, percebeu a mesma coisa.
    – Jerry, você está vendo o Enzo Klozowicz por aí?
    – Não.
    – Eu também não estou vendo o Roninho. Será que eles estão na parte descoberta?
    – Não consigo ver tudo daqui. Acho melhor a gente ir até lá.
    Nós dois passamos pela porta de acesso à parte descoberta. Também não encontramos ele lá. Só que nós também vimos que tem uma outra saída do lado descoberto da área VIP. Só faltava eles já terem saído por lá.
    Quando estávamos voltando para nossos lugares, ouvi alguém chamando o meu nome. Era a Jessy Lins. Olhei para trás e vi ela correndo em nossa direção.
    – Detetive! Que coincidência você por aqui! Você está um gato desse jeito, hein? E a Anne também veio... Espera! Vocês estão... Num encontro?
    Anne e eu falamos um "não" sincronizado. Após isso, nos entreolhamos.
    – Não, Jessy Lins, a gente está assim pra conseguir entrar aqui.
    – Ai, detetive, pode me chamar só de Jessy mesmo. Não precisa ser formal comigo.
    – Tudo bem então. A gente só queria... Atchim! Atchim! Ai, tem alguém fumando cigarro aqui?
    – Cigarro, não. Tem só um pessoal com um narguilé alí do lado. Eu estava com eles.
    – Puts, então eu também sou alérgico a... Atchim! Fumaça de narguilé.
    – Jerry, você nunca falou dessa alergia. Tá tudo bem? – Perguntou Anne, parecendo preocupada.
    – Atchim! Tá tudo bem Anne! É só uma rinite mesmo. Eu só preciso pegar meu... Atchim! Antialérgico lá no quarto do hotel.
    – Hum, ela te chama de Jerry, né?
    – Qual é o problema? Olha, eu preciso levar ele de volta pro hotel antes que a reação dele piore.
    – Eu vou com vocês! Eu já estava indo pra lá mesmo.
    Fomos, então, para o carro em direção ao hotel. Eu estava na constrangedora situação de ficar entre as duas, Jessy e Anne, com um lenço tampando o nariz pra evitar cenas mais embaraçosas. Foi quando Jessy continuou a pergunta que fez no restaurante:
    – Então, se vocês não estavam num encontro, o que queriam lá?
    Anne vendo minha situação, resolveu responder:
    – Nós queríamos falar com o patrocinador. O Enzo Klozowicz.
    – Eu também fui lá pra falar com ele. Só que, enquanto eu começava a conversar, o Roninho apareceu e saiu com ele.
    Então foi isso mesmo o que aconteceu: os dois foram embora antes de nós chegamos. Só que uma dúvida surgiu, então fui perguntar, mesmo com o lenço no nariz:
    – O que você foi falar com ele?
    – Eu queria pedir pra sair do reality. Estou meio desconfortável em me imaginar num reality de pegação. Além disso, essa investigação está atrasando o início e eu preciso voltar a fazer conteúdo pros meus seguidores, já que o contrato não deixa eu fazer isso aqui... Quer dizer, não que eu esteja criticando seu trabalho... Jerry.
    – Desde a primeira conversa que a gente teve, você demonstrava que já não estava muito afim de participar, por que aceitou no começo então?
    – Ah, uma mistura de várias coisas: eu estava com raiva do meu ex-namorado, o patrocinador me indicou e eu achei que ia ajudar a me divulgar mais. Além disso, o Roninho é um dos membros do meu fã clube. Eu achei que ele ia me dar uma ajuda.
    – O Roninho é seu fã?
    – É! Mundo pequeno, né? Ele ficou bem surpreso quando eu apareci.
    Foquei na pessoa errada. Era melhor perguntar mais algumas coisas para o Roninho. O modo como ele agiu estranho hoje, bem evasivo, juntamente com essas informações me faz crer que ele tem algo por aí.
    Quando chegamos ao hotel, eu fui subir e Anne veio comigo, ainda um pouco preocupada. Eu tentei tranqulizá-la, mas sem muito efeito. Jessy veio subindo junto, parecia que ela estava nos inspecionando.
    Abri a porta do meu quarto, entrei e tomei meu antialérgico que eu deixei no gaveteiro ao lado da cama. Virei para as duas, que ficaram na porta e elas estavam paralisadas, assustadas por algum motivo.
    – Anne, Jessy, podem se acalmar, é só uma rinite.
    Elas me ignoraram e continuaram olhando assustadas para trás de mim, quando me virei, vi que tinha uma frase escrita em vermelho com letras enormes na parede do quarto: "Jerry Bocchio, caia fora!"
    Que droga, cara! Agora eu também sou o alvo da ameaça. Significa que quem ameaçou está por perto e sabe o que estamos fazendo. Ou seja, ele sabe mais sobre eu do que eu sobre ele. É hora de eu começar a me preparar para ser mais efetivo na minha investigação.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e A Ameaça no Reality - Capitulo V: Colocando o Caderno em Prática

    Então agora tem uma ameaça para mim na parede do quarto do hotel onde eu estou hospedado em Aruba. O pretendente a assassino está junto com a produção, ou fazendo parte dela, ou disfarçado entre eles.
    Eu fui em direção à parede onde estava escrita a ameaça e cheguei mais perto para ver. Passei o dedo em uma parte e a tinta pegou no meu dedo. O que quer dizer que a tinta está fresca ainda. O que quer dizer que o sujeito ainda está por perto. Uma coisa que achei estranha é que a tinta tinha um cheiro doce.
    Virei de novo para Anne e Jessy, que estavam na porta do quarto e pedi pra elas entrarem e fechar a porta. Anne fechou tremendo. Ela estava aflita. Eu não aguentei ver o estado dela e fui tentar acalmá-la. Fui até ela, segurei seus ombros e disse, olhando de frente pra ela:
    – Anne, senta um pouco.
    – Jerry, eu esqueci que a gente está investigando um crime. Eu fiquei empolgada em participar, achei esse negócio de investigação e de disfarce legal, mas esqueci que as nossas vidas estão correndo perigo!
    – Não, Anne! Olha, a ameaça tá só citando o meu nome. Sou só eu quem sou o alvo.
    – Mesmo assim, eu também não quero que nada aconteça com você. É melhor eu chamar a Polícia.
    – Se você acha melhor, tudo bem, só tenta se acalmar antes.
    Enquanto Anne e eu conversávamos, eu ouvi a Jessy me chamando:
    – Jerry, isso aqui é batom.
    – Olha, Jessy, a situação agora não é boa pra vender cosméticos.
    – Não, Jerry! Quem escreveu isso aqui usou batom pra escrever. É o batom que eu uso, inclusive... Bom, parece ser o mesmo por causa do cheiro dele.
    Por isso que o cheiro estava doce então. Virei para ela e ela estava na parede olhando a mensagem. Só que tem uma coisa, Jessy disse ser o mesmo que ela usava. Não poderia ter sido ela a ter escrito, não?
    – Jessy, você disse que esse é o mesmo batom que você usa?
    – É, parece, a marca que eu uso é a única que tem perfume de rosas. Eu também faço publis dessa marca nas minhas postagens.
    – Que estranho!
    Jessy desconfiou das minhas perguntas e ficou assustada. Puxou o batom dela de dentro da bolsa, me mostrou e disse:
    – Jerry, não fui eu quem escreveu isso. Olha o meu batom está inteiro aqui comigo. Eu estava no restaurante esse tempo todo, vocês me viram lá.
    Bom, com relação a ela estar com o batom dela na bolsa, só isso não comprova, ela poderia muito bem usar outro, mas não falei nada. Afinal, tinha algo desconexo se fosse Jessy a pessoa que escreveu. Ela não parecia tão burra a ponto de se incriminar desse jeito, muito pelo contrário. Ela também não pediria pra me acompanhar até o quarto e não daria essa informação sobre o batom. Será que alguém estaria tentando incriminar ela?
    Foi então que eu comecei a me lembrar do Roninho. Ele estava extremamente apreensivo na parte da manhã, perto do meu quarto. Quando eu vi ele entrando no restaurante, ele já estava tranquilo, numa questão de meia hora. Além disso, Roninho fazia parte do fã clube da Jessy e... Opa! Foi aí que eu me lembrei que, em nenhum momento, eu interroguei ele.
    – Anne, não ligue pra Polícia ainda!
    – Mas, Jerry...
    – Eu só quero ter mais uma conversa antes.
    Uma hora depois, Roninho apareceu na porta do meu quarto um pouco apreensivo e com as mãos nos bolsos. A porta estava quase toda aberta, então, ele entrou. O quarto estava só com a Jessy chorando sentada na cama. Ele olhou a escrita na parede, olhou a Jessy chorando, chegou até ela e disse:
    – Poxa vida! Isso tá ficando cada vez mais perigoso!
    Jessy, ainda chorando, respondeu:
    – Você não sabe do pior, Roninho. Quem fez isso tá tentando me incriminar!
    – Incriminar? Como assim?
    – Quem escreveu isso usou o mesmo batom que o meu, até a cor é igual.
    – Deve ser só coincidência, Jessynha! Onde está o detetive?
    – Ele e a Anne foram chamar a Polícia pra vir aqui me prender.
    Foi então que Roninho perdeu toda a pinta dele. Ele se sentou do lado de Jessy e começou a falar mais alto:
    – O que você tá fazendo aqui ainda, Jessynha! Dá o fora daqui!
    – Não! Eu vou provar que sou inocente! Foi por isso que eu pedi pra você vir aqui. Você me acompanha direto na internet, você pode servir de testemunha. Me ajuda, por favor!
    – Não, Jessynha! Aquele detetive é burro demais, isso não vai adiantar. Vem comigo, vamos fugir daqui!
    – Não!
    – Vem! Eu te abrigo na minha casa, no Brasil, até isso passar.
    – Não! Eu sou inocente! Eu não vou fugir!
    – Aquele detetive é burro demais! Onde já se viu chegar numa conclusão dessas? Só porque o batom é o mesmo, significa que você é culpada?
    – Pois é, Roninho! Estão tentando me incriminar!
    – Não! Também não é isso! Quem escreveu isso, na verdade, está querendo fazer outra coisa.
    Foi então que eu saí de trás da porta, fechei ela e tranquei. Então eu falei, assustando o Roninho, que deu um salto da cama:
    – É mesmo, Roninho? O que ele queria?
    – Detetive!
    Roninho, que já tinha perdido a pinta de bonzão dele, agora começa a se sentir acuado. Ele encosta na parede como um dos personagens secundários dos filmes de terror prestes a terminar seu papel. Então, eu vou continuando:
    – Me ajuda aí, cara! Eu sou burro demais, não sou bom em suposições.
    – Detetive! Eu... Não... Queria dizer isso. Eu tava nervoso.
    – Bom, talvez a intenção não seja mesmo de incriminar a Jessy, mas de levar ela embora fazendo ela acreditar que tem alguém tentando incriminá-la, só pra fazer o papel de herói.
    – Espera aí, você tá desconfiando de mim?
    – Como você tem tanta certeza do que o mensageiro aí queria?
    Então Roninho começa a forçar um riso malicioso, tira as mãos dos bolsos e as levanta, me mostrando os dedos.
    – Ah, detetive! Você não pensa direito mesmo, né? Olha só, minhas mãos não têm marca de batom! Você não tem provas de que fui eu.
    Ah, como eu amo quando o interrogado vai direto pro "você não tem provas"! É quase uma confissão. Me facilita muito o trabalho. Isso colaria se eu ainda estivesse na Polícia, com todos aqueles protocolos, mas agora não. Eu olhei pra Jessy, que trocou o choro por um sorriso confiante e perguntei:
    – Jessy, em algum momento eu cravei que quem escreveu isso estaria com as mãos sujas?
    – Não, Jerry!
    – Pois é, né? Até porque, depois de todo esse tempo, ele teria muitas oportunidades de lavar as mãos, no hotel, no restaurante, etc. Né não?
    – É! Se ele não lavasse as mãos, ele sim seria burro, hahaha!
    – Além do mais, eu nem sugeri que ele sujou as mãos ao escrever, o que significa que, se foi o Roninho quem escreveu, ele tá quase me dizendo que ele sujou as mãos no processo e lavou durante o tempo.
    Roninho se irrita com o meu deboche e começa a gritar:
    – Qual é, detetive! Eu já disse que você não tem nada contra mim! Você tá tirando essa teoria do seu...
    – Opa, opa! Então vou te dar uma chance de limpar o seu nome, tá? Você ficou o dia inteiro com as mãos nos bolsos, né? Sabe como é a relação entre batom e roupa, só um toque já deixa manchado. Desvira eles aí, se estiverem limpos, pode ir.
    Ele andou até eu, apontou o dedo na minha cara e começou a falar:
    – Eu não vou obedecer um detetivezinho idiota que investiga casos de velhos cornos. Eu sou o diretor dessa emissora, eu faço o que eu quiser! Se você quiser ver meus bolsos, vai ter que pegar um mandato!
    – Eu não sou da Polícia, não tenho que me meter com essa papelada.
    – Então, passar bem! Abra essa porta, agora!
    O problema é que Roninho estava tão nervoso que não percebeu que, enquanto ele passava pela cama pra me dar essa encarada, Jessy desvirou um dos bolsos dele e... Batata! Todo manchado de vermelho. Eu só sorri e apontei para baixo. Ele olhou e virou para Jessy, todo decepcionado:
    – Jessynha, eu achei que a gente estava no mesmo time!
    – Ah, se toca! Você tem a idade do meu pai! Até parece que eu ia querer ficar com um mimado de meia idade!
    Agora era hora de eu finalizar:
    – Então, acho que você deve explicações, Ronald.
    Então, Roninho fica revoltado com os acontecimentos, e acaba respondendo agressivamente:
    – Então tá! Você quer a verdade? Foi eu quem mandou as duas ameaças. Eu não queria que a Jéssica participasse dessa temporada. Era eu quem deveria ser o próximo namorado dela. Mas, não! Aquele patrocinador idiota insistiu na participação dela e a produção aceitou, então eu mandei a primeira ameaça pensando que iam desistir da gravação. Mas, não, de novo! Mandaram um detetive de araque pra investigar. E o que é pior, a Jessica ficou se engraçando com ele!
    – Se engraçando comigo? Mas eu não lembro dela contando nenhuma piada.
    – Cala essa sua boca! Como ousam dizer não para o Roninho? Minha família construiu essa emissora! Ninguém diz não pra mim!
    – OK! Acho que agora é uma boa hora pra chamar a Polícia.
    – Hahahahaha! E com base em quê, detetivezinho? Eu posso me livrar dessa prova agora e negar tudo o que eu disse. Eu tenho advogados. É, isso mesmo! Advogados, no plural. E a única coisa que você tem é uma calça manchada e uma confissão com só uma testemunha suspeita.
    – É verdade isso, Anne?
    Foi então que Anne surgiu de debaixo da cama segurando o celular e mostrando que tinha gravado tudo. Bom, ficou bem claro que a gente combinou isso tudo, né?
    O problema é que isso ativou o lado primitivo de Roninho, ele tentou fugir. Ele me empurrou contra a porta, me pegando de surpresa, o impacto machucou minhas costas. Enquanto eu estava caído no chão, Roninho ficava tentando colocar a mão no bolso onde eu tinha guardado a chave para roubá-la.
    Mas, como Jessy disse, ele é um homem de meia idade filhinho de papai, então eu consegui me recuperar e segurei os braços dele pra não deixar ele roubar a chave. Dei uma rasteira nele e consegui derrubá-lo no chão com facilidade. Então, coloquei algemas nele só pra evitar dele fazer mais besteira. Como foi ele quem veio descontrolado pra cima de mim, eu posso usar as algemas.
    Enfim, a Polícia veio e levou ele embora. Ele seria mandado para o Brasil. Anne, Jessy e eu tivemos de ir também para prestar depoimento. Anne deixou as instruções para a diretora substituta e saiu com o reality em gravação. Eu, sinceramente, não tive a mínima vontade de assistir.
    Roninho responde na justiça por ameaça e lesão corporal dolosa, eu acho que ele vai se safar, mas que ele virou notícia no Brasil inteiro, ah, isso ele virou. Ele foi desligado da Glamour TV e está sendo processado pela Jessy Lins.
    E junto com isso eu também virei notícia! Só que dessa vez, não era mais em sites de fofoca! Tomara que as coisas melhorem a partir de agora.
    Só que eu sentia que faltava alguma coisa, fiquei sem saber o que era por alguns momentos quando me veio as lembranças de quando Anne e eu trabalhamos juntos na investigação. Foi aí que percebi uma coisa: eu meio que me apaixonei pela Anne. Sabe como é, né?
    Eu tentei ligar no contato dela que ela me passou quando veio me contratar. Era o contato do trabalho, mas eu não tinha outro. Porém, ela não atendia. O assistente dela dizia que ela não apareceu lá desde quando voltou.
    Na noite após o meu depoimento, estava eu, tomando meu café em uma das mesas na Padaria Nova Caledônia, um pouco chateado, sabendo que não iria mais ver a Anne, quando eu ouvi o meu nome sendo chamado. Olhei para trás e era a Jessy.
    – Jessy, que mundo pequeno!
    – Oi, Jerry! Eu vim aqui me despedir de você. O seu amigo policial, Tom, me disse que você gosta de tomar café aqui.
    – Esse Tom! Uma hora ele vai falar meu paradeiro pra um inimigo.
    – Hahaha! Enfim, obrigada por me ajudar e por me deixar ajudar, Jerry! Aquela jogada foi muito inteligente.
    – Foi uma que eu tinha anotada na página 115 do meu caderno. Tem anotações de como montar uma armadilha pro investigado escorregar. Tá vendo como ele é útil?
    – É mesmo! Vou começar a fazer um também. Tchau, Jerry! Que você e a Anne sejam felizes!
    – Eu não estou com a Anne.
    – Não? Mas eu vi como vocês dois combinam. O modo como vocês falaram no quarto do hotel, parecia que vocês estavam namorando já.
    – É, acontece, né?
    Jessy abriu um sorriso, puxou uma cadeira da mesa e se sentou à minha frente.
    – Esquece ela! Deixa eu tomar um café com você aqui pra te ajudar a animar.
    Nós ficamos conversando durante umas horas, quer dizer, quando ela não estava verificando o celular. Como ela é influencer, talvez ela precise mesmo ficar mexendo direto, né? Ela falava bastante de festas e se eu gostaria de participar com ela. Eu disse que pensaria, mas na verdade, não sou muito do tipo festeiro. Prefiro ir em festas dos meus amigos mesmo. Além disso, o objetivo dela não foi conquistado, eu não consegui esquecer a Anne nesse tempo.
    No dia seguinte, eu fui até a sede da Glamour TV pra receber o Pix. Quando saí da sala do responsável, olhei para o lado e vi a Anne andando em minha direção. Ela estava com as roupas que costuma usar no trabalho, só que com os cabelos soltos, dessa vez. Ela estava tirando o cordão com o crachá dela e jogando na lixeira. Eu, meio desengonçado, chamei ela:
    – Anne!
    Ela não estava olhando em minha direção. Quando ouviu eu chamando, parou e me olhou na hora.
    – Jerry!
    Eu fui andando até ela.
    – Anne... Eu... Tentei te ligar esses dias e diziam que você não estava.
    – Eu saí da cidade um pouco pra começar um projeto. Você está aqui por quê?
    – Eu vim receber meu dinheiro pela investigação.
    – Já está saindo?
    – Sim.
    – Então vamos, eu te explico no caminho.
    Fomos andando pelos corredores em direção ao elevador. Anne foi me falando:
    – Eu acabei de pedir demissão da Glamour TV.
    – Por quê?
    – Aquele negócio que você me falou das escadas, aquilo meio que me pegou. Eu vi que eu estava aceitando coisas que não gostaria a troco de só continuar subindo.
    – Mas, e aí, você vai fazer o que?
    – Eu saí da cidade pra conversar com uma jornalista amiga minha. Nós vamos começar um podcast true crime.
    – Um o quê?
    – Podcast true crime. É um podcast que a gente expõe crimes que deram o que falar ou que estão sem solução até hoje.
    – Rapaz, pra que esse nome em inglês?
    Chegamos ao elevador e Anne continuou:
    – Eu vou ficar uns tempos fora da cidade pra ajudar a alavancar o projeto. Foi o estúdio que a gente conseguiu por enquanto.
    Ai, caramba! Essa notícia me deixou triste.
    – Você vai embora?
    – É, até a gente conseguir um estúdio aqui na cidade. Pode demorar mas...
    O elevador chegou, nós entramos e Anne reparou na minha expressão.
    – Tá tudo bem, Jerry?
    – Tá, tudo bem. Eu estou feliz por você. Só... Acho que... Vou sentir sua falta.
    Anne se espantou com a minha fala. Ela virou repentinamente pra mim e disse:
    – Jerry! Como assim?
    Nesse momento, as palavras saíam automaticamente da minha boca e eu estava todo desengonçado:
    – Eu gostei de trabalhar com você. Bom... Pra falar a verdade... Eu gostei de você. É...
    – Jerry, eu pensei que você ia ficar com a Jessy.
    – A Jessy? Não! Ela não faz o meu tipo. Eu fui vendo... Na verdade... Que eu gostava de você mesmo.
    – Jerry, eu... Eu também gostei de você.
    Depois que ela me disse isso, eu não conseguia mais falar, apenas fiquei olhando pra ela, que fazia o mesmo. O silêncio tomou conta do elevador e nós fomos chegando cada vez mais perto até que... O toque do elevador apareceu indicando que tínhamos chegado ao térreo, fazendo nós dois voltarmos.
    Saímos do elevador, fomos até a saída e então eu disse:
    – Bom, boa sorte pra você no seu podcast. Me passa o nome que eu indico pro pessoal.
    – Obrigada, Jerry! Tomara que a gente pegue o mesmo caso mais pra frente pra trabalhar junto de novo.
    – É, isso ia ser legal.
    Anne me deu um beijo no rosto e saiu. Eu fiquei parado vendo ela ir embora torcendo pra gente se ver de novo.
  • Jerry Bocchio e A Ameaça no Reality – Capitulo I: O Tédio da Vida Nova

    Meu nome é Jerry Bocchio, trabalho como detetive particular. Costumo pegar casos que a Polícia despreza porque, pra mim, não existe caso sem importância.
    No meu último caso, quando investiguei a rica Alice Harback, as coisas não acabaram tão bem quanto eu imaginava. Afinal, eu expus meu cliente e acabei sem uma boa parte do dinheiro prometido.
    Só que esse caso me deu visibilidade. Um belo dia, perto de chegar no meu escritório, ouvi a voz de uma mulher gritando meu nome do outro lado da rua. Quando olhei, vi que era uma repórter com um câmera ao seu lado. Logo lembrei da minha promessa feita ao Seu Rogério, dono da Padaria Nova Caledônia, de que se alguém fosse me entrevistar sobre o caso, eu iria dar a entrevista na fachada da padaria. Então saí correndo em direção à padaria fingindo que não queria falar, mas com passos não muito rápidos a ponto da repórter não desistir de me alcançar.
    Durante todo o percurso, eu ouvia da repórter a frase "Jerry, só uma palavrinha pra ARTV". Quando estava chegando na padaria, mandei uma mensagem para o Seu Rogério dizendo apenas "É agora". Ao chegar lá, vi o Seu Rogério na porta e parei de correr. Aí começou a minha atuação:
    – Está bem, está bem! Mas vocês da ARTV têm sorte de eu estar com bom humor hoje.
    – Ah, que ótimo, detetive! Eu sou Daniela Malta, da ARTV. Fala aqui pro pessoal de casa sobre o caso da Alice Harback.
    Um jeito meio alegre de abordar uma entrevista num jornal, né? Eu esperava uma pergunta mais formal.
    – É, não posso falar muito sobre o caso, mas consegui descobrir que Ivan Harback ainda está vivo e...
    – Tá, mas e o caso dela com o empresário Allan Tresekos? Teve foto?
    – Por que você está me perguntando isso? Essa é a parte secundária do caso.
    – Nããão, detetive! O pessoal de casa tá doidinho pra saber sobre o romance dos dois.
    – Desde quando o "Alerta Já" se preocupa com isso?
    – Ah, detetive, desculpa! Tá tendo um mal entendido aqui. Eu sou repórter do "Famosos em Foco". Mas conta aí, foi a Renata Tresekos quem contratou você pra investigar o romance deles?
    Que droga, cara! Eu virei notícia de programa de fofoca! Ainda por cima, quando eu voltei pro escritório, liguei meu computador pra procurar meu nome na internet e vi minha foto em um monte de portais de notícias de famosos. Eu detesto programa de fofoca!
    Sabe o que é pior dessa situação? Isso afetou o meu trabalho. Os casos que começaram a aparecer nos dias seguintes eram, em sua grande maioria, de maridos inseguros pedindo pra eu investigar se a mulher estava traindo eles. A maioria deles eram homens ricos bem mais velhos que as esposas, tem até termo pra isso, acho que é "suggar daddy". Eu nunca entendi essa cobrança deles por amor de suas esposas. Como você vai exigir amor numa relação iniciada por meio de um contrato? Aliás, eu desconfio que o sentimento que eles tinham por elas também não era amor.
    E eu vou falar uma coisa pra você, nas vezes que eu descobria que a mulher não estava traindo, não adiantava nada eu mostrar fotos, registros, testemunhas, nada! A paranóia e a insegurança desses caras não deixavam eles acreditar em mim e eu ficava sem receber algumas vezes.
    E assim foi indo durante longos seis meses, eu ficava direto indo atrás de mulheres completamente superficiais em festas, restaurantes, shoppings, bares, academias, salões de beleza... Eu nem precisava variar meus disfarces. A superficialidade dessas pessoas é tão alta que não precisava ser muito criativo nas conversas.
    Como eu sentia falta dos meus casos antigos. Tentar descobrir de qual poste partia o fio do gato de luz, me infiltrar numa empresa pra saber quem estava desviando produtos, saber qual era o sujeito que ficava pichando o prédio, descobrir quem roubou o material esportivo da aula de educação física... Aquela entrevista pra dona fofoqueira me fez muito mal.
    Isso tudo até esse dia. Lá estava eu, sentado, sozinho no meu escritório depois de ter tomado mais um esporro de um senhor de 56 anos que não tinha acreditado que sua mulher, de 32 anos, não estava tendo um caso com o enólogo. A minha mesa estava com várias fotos dela espalhadas e eu, apoiado sobre a mesa com o meu braço esquerdo segurando a minha cabeça, apenas esperando a hora de ir embora. Aí ouvi uma batida na porta. Eu, completamente amoado, soltei pra pessoa:
    – Entra!
    Era uma moça vestindo um blazer e roupa social feminina. Ela aparentava ter mais ou menos a minha idade. Suas roupas, o rabo de cavalo e a maquiagem discreta me davam a impressão de que ela era uma mulher séria. Fiquei um pouco aliviado com a variação do tipo que apareceu no meu escritório. Agora só me falta ela ser a esposa que tá desconfiada do marido mais velho. Conforme ela foi chegando perto da minha mesa eu fui me ajeitando. Ela se sentou e perguntou:
    – Você é Jerry Bocchio?
    – Quem pergunta?
    – Meu nome é Anne Gonzalo, eu sou produtora de TV do canal Glamour TV.
    Ah, pronto! O Glamour TV é um canal de TV a cabo que só passa programas sobre celebridades e realities de gente rica se pegando. Não consegui esconder minha frustração:
    – Ah, não! Programa de fofoca de novo? Eu quero investigar crimes, poxa!
    – Então não se preocupe sobre isso, detetive. Tenho algo aqui que você vai querer.
    Ela puxou o celular da bolsa, abriu o aplicativo de mensagens e deu o play em uma mensagem de áudio. O sujeito da mensagem de áudio falava com uma voz bem grossa, parecia o Darth Vader. Ele dizia o seguinte:
    "Atenção aos produtores da Glamour TV: Não gravem mais o programa "Jantando Com o Ex". Caso contrário, haverá sangue em suas mãos"
    Eu não sabia se ficava com medo ou animado. Era um caso diferente de suspeita de traição aparecendo pra mim, mas era uma ameaça de morte pra uma emissora de TV.
    – Caraca! A Polícia não quis atender vocês por quê?
    – Na verdade, nós decidimos não chamar a Polícia ainda pra evitar tumulto com o público. Aí nós vimos seu trabalho no caso do General Ivan Harback e vimos que você pode nos ajudar a identificar o autor da ameaça antes de começarmos as gravações do programa.
    Opa! Ela disse "caso do General Ivan Harback"! Significa que eles focaram na parte importante do caso antes de me procurar! Me animei, voltei à minha postura de detetive e comecei a mostrar minhas habilidades pra ela:
    – Interessante, muito interessante! Você veio ao lugar certo, moça! Eu, só de ouvir essa gravação, já consigo traçar parte do perfil do suspeito.
    – Sério? O que você notou sobre ele?
    – Nota-se, claramente, que ele é um vocalista de uma banda de death metal.
    – Como você sabe disso?
    – Ora, Anne. Olha a voz gutural que ele está usando na gravação. Só alguém que canta death metal consegue fazer a voz ficar assim.
    – Você sabe que ele está usando um recurso de áudio pra mudar a voz dele, né?
    – Ué, dá pra fazer isso?
    – Sim, hoje tem até aplicativo de celular que faz isso!
    – Aaaah! Nossa, que legal! Acho que vou baixar um desses! Deixa eu pegar aqui meu celular...
    – Ai, detetive! Você aceita o trabalho ou não?
    – Sim, aceito!
    – Ótimo! Então amanhã eu vou mandar um motorista te buscar às 8:00 pra te levar até o aeroporto onde você vai me encontrar...
    – Opa, opa, pera aí! Aeroporto?
    – Sim, você vai comigo no jato da emissora pro Caribe, que é onde vai ser gravada essa temporada. Então faça as suas malas e não aceite mais nenhum outro caso por enquanto. O nosso pagamento vai cobrir sua exclusividade.
    Caraca, eu vou pro Caribe! Eu voltei a ficar empolgado de um jeito que parecia quando eu tinha sido promovido pra ser investigador. Fui correndo pra casa pra me preparar pra viagem. E ainda baixei o aplicativo pra mudar de voz. É muito legal mesmo, tem até voz de esquilo nele.
    Mas tenho que manter o foco! Tem um cara mandando uma ameaça pra uma emissora de TV e eu não sei nem de onde veio e nem a motivação dele. Tenho que ser sério! Mas também o fato de não ser mais suspeita de traição me deixa ainda mais empolgado. Então, vai ser difícil segurar tanta empolgação.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e a Ameaça no Reality – Capitulo II: O Programa

    No dia em que Anne Gonzalo, produtora da Glamour TV, me contratou para investigar uma ameaça a uma emissora de TV a cabo, fiquei muito empolgado. Confesso que foi até difícil pegar no sono, o que me ajudou foi o aplicativo que altera vozes que eu baixei no meu celular. Eu ficava dizendo frases e mandando o aplicativo alterar minha voz nas gravações. Eu achei bem engraçado, ajudou a aliviar minha ansiedade.
    No dia seguinte, estava eu, em meu escritório, aguardando o motorista da emissora. Ele chegou na hora combinada. Se apresentou, provou para mim que era mesmo da emissora, pegou minhas malas para guardar no porta malas do carro e me levou até o aeroporto. Durante a viagem ele não falava nada. Geralmente, motoristas particulares são assim mesmo. Deve ser coisa de gente rica, não gostar de conversa, então só contratam gente calada.
    Chegando ao aeroporto, não precisei passar por todos aqueles trâmites comuns que um eu passo quando compro uma viagem parcelada. Foi bem mais rápido. Perto do embarque estava Anne me esperando conforme o combinado. Embarcamos no avião e ela também ficou calada. Só mexendo do tablet dela. Só que eu precisava de algumas informações, eu nunca assisti esse reality show. Então, tentei puxar assunto:
    – Escuta, Anne. Esse programa "Jantando Com o Ex", do que se trata?
    Sem tirar os olhos do tablet, ela foi respondendo:
    – Você nunca assistiu, detetive?
    – Não. Não sou muito fã de realities. Nem de fofoca, celebridades etc.
    – Não é fã de fofoca, mas ficou famoso por causa delas. Bastante irônico, não?
    – Olha, acho que vai ser mais fácil se me falar como funciona. Talvez tenha alguma relação com a ameaça.
    – Nós convidamos homens e mulheres que saíram recentemente de relacionamentos. Eles passam um tempo num lugar turístico se conhecendo pra tentar uma nova relação. Aí, se der indícios de que os casais estão se formando, eles vão para um encontro final num jantar pra saber se vai ser definitivo. Durante os jantares no restaurante os ex deles aparecem lá.
    – Pra que isso?
    – Pra dar conflito.
    – Caramba, isso é um pouco sádico, não? Por que alguém aceitaria participar disso?
    – Tudo é show business, detetive.
    Essa última frase meio atravessada de Anne, junto com sua postura de que não tava muito afim de assunto, me convenceram a terminar a conversa. Mas daí pode ser o começo da minha linha de investigação.
    O avião chegou ao local. Eu disse que ia pro Caribe, mas não especifiquei o local, né? Nós desembarcamos em Aruba. Anne me disse que lá é onde ocorreriam as gravações. Eu não detalhei porque sempre pensei que o Caribe fosse um lugar só, não vários países e ilhas juntos. Eu deveria mesmo ter estudado geografia na infância.
    Nós fomos ao restaurante onde ocorreriam os tais "conflitos" que o programa tanto busca. Anne me disse que o diretor do programa nos encontraria lá porque queria me conhecer. Quando entrei lá, vi um ambiente um pouco descolado pra ser chamado de restaurante chique. Tinha um bar com alguns barmans fazendo drinks, umas mesas com temas praianos espalhadas pelo salão, garçons andando pra lá e pra cá e uma porta grande com um segurança ao lado indicando ser um espaço VIP.
    Anne me disse que o diretor não estava lá no momento, mas que iria chegar em instantes, então ele reservou uma mesa para que aguardássemos ele. Anne falou com um garçom que nos acompanhou até a mesa e logo foi puxando a maquininha pra anotar algum pedido. Anne ia dispensá-lo, mas eu estava com sede durante toda a viagem, além disso, eu também queria mostrar minhas habilidades como poliglota. Puxei minha apostila do curso de espanhol que precisei fazer pra investigar um caso e falei:
    – Holá... mesero... Yo quiero una... Cueca Cuela con pedritas de hielo... Por favor.
    Depois disso, o garçom ficou olhando pra mim igual aquele rapaz do meme que não entende nada. Aí Anne interveio:
    – A Coke with ice, please.
    Aí o garçom foi embora e eu é quem não estava entendendo mais nada:
    – Eles falam em inglês aqui, é? Caramba, eu trouxe a apostila errada!
    – Não, eles também falam em espanhol aqui. Acontece que isso que você falou não era nada! "Cueca Cuela"? Que negócio foi esse?
    – Aaaah! Nossa, será que era por isso que aquela moça mexicana que eu precisei investigar mês retrasado dizia que me achava engraçado? Eu achei que meu disfarce tava indo bem, olha só! E pensar que eu fiz um curso intensivo de dois meses de espanhol pra investigar esse caso!
    – É sério que você achou que ia aprender espanhol em dois meses?
    – Era o que eles prometiam, ué! E era um curso intensivo. Como eu vi "intensivo" na propaganda do Google, eu pensei que estava aí a minha solução. Tá certo que eu não vi todo o material, mas...
    – Olha lá, detetive, ele vem vindo.
    Olhei para trás e vi um homem um tanto excêntrico andando em direção à nossa mesa. Ele andava com passos ritmados, como se estivesse num videoclipe, só que sem música. Talvez na cabeça dele devia estar tocando alguma. Não julgo, às vezes acontece comigo também, só que com músicas muito chatas. Ele é aquele típico homem de meia idade que não aceita a chegada do tempo: cabelos tingidos, um topete chamativo, óculos escuros dentro de um ambiente e uma roupa parecida com as daqueles figurões de Las Vegas. Quando chegou perto, já foi falando num tom muito alto, quase gritando:
    – Ah, Anne! Está aí com o nosso detetive! Por que não me apresenta?
    Com uma feição um pouco contrariada, Anne se levantou e disse:
    – Ronald, esse é o detetive que eu comentei, Jerry Bocchio. Jerry, esse é o diretor do programa, Ronald Barros Junior.
    – Jerry Bocchio, muito prazer! Pode me chamar de Roninho. Eu vi muito sobre o senhor quando investigou o romance entre Alice Harback e Allan Tresekos. Foi um trabalho excepcional!
    Ai, que droga! O pessoal só me conhece por isso?
    – O prazer é meu, Ronald.
    – Roninho, por favor. Faço questão.
    – OK então. Roninho, o prazer é meu. Só que é o seguinte, nesse caso eu também descobri que o General Ivan Harback está vivo. A parte do romance é a parte secundária do caso.
    – Ah, detetive! Isso o que você chama de "secundário" é o que o público gosta de verdade. O público gosta de ver casais em crise logo depois de começar um relacionamento, briga com gente alcoolizada por motivos passionais, talvez até com agressão física, descobertas de traição, tudo isso. Eu até queria te perguntar se você não tem mais casos assim, detetive. Quem sabe a gente não faz um programa novo com isso, não é mesmo?
    Foi então que Anne interveio de novo:
    – Na verdade, Roninho, eu trouxe ele aqui pra investigar a ameaça que a gente recebeu.
    – Poxa vida, Anne! Você está mesmo querendo continuar com a produção do programa? A gente recebeu uma ameaça, é melhor cancelarmos essa temporada. Pessoas aqui correm perigo!
    Que estranho! O mesmo cara que, instantes atrás, disse que não liga de expor vidas e humilhar pessoas em prol da audiência agora fala de proteger vidas? Tem uma dualidade aí.
    – Então, Roninho, eu já tinha te dito na última reunião que não depende só de você. A emissora quer o dinheiro do patrocinador, que quer essa temporada. Então eu trouxe o Jerry Bocchio aqui por enquanto. Caso ele descubra algo, a gente chama a polícia.
    – Ai, ai, viu? Eu estou com um mal pressentimento sobre isso! Ainda acho melhor cancelarmos essa temporada. Bom, de qualquer modo, foi um prazer conhecê-lo, detetive. Eu preciso conversar com o dono do restaurante pra combinar como tudo vai ser gravado. Até mais!
    Roninho saiu e eu não aguentei ficar sem falar nada:
    – Que sujeito excêntrico, hein Anne?
    – Ai, detetive, a gente não escolhe o patrão. Mas, enfim, você já tem algum plano em mente?
    – Bom, nesses últimos seis meses que eu fiquei trabalhando só com casos de supostas traições, porque não apareciam outros, eu vi que esse negócio de ex aí pode dar muito problema. Acho bom dar uma olhada nesses ex aí. Se eu der sorte, já mato a charada logo de cara, se não, já tiro isso da frente, pelo menos.
    – Então, detetive, temos um problema. Os ex ainda não estão aqui e só o pessoal do casting sabe quem são eles. E os participantes.
    – Bom, então me deixa falar com os participantes. Eu posso conseguir informações sobre o relacionamento anterior deles.
    – Está bem então. Mas eu vou com você.
    – Ué, por quê?
    – Depois daquela do "vocalista de death metal", é melhor eu estar junto pra ajudar. Tome, aqui está a chave do seu quarto do hotel. É o mesmo de onde a equipe toda está instalada. Amanhã eu junto os participantes para você conversar com eles.
    – É um caso envolvendo ameaça, pode não ser seguro.
    – Não se preocupa comigo não, detetive. Agora termina aí sua "Cueca Cuela" pra gente ir pro hotel.
    Eita, que coisa, viu? Tá parecendo o Capitão Gregade comigo. Ela parece bem chateada com o trabalho dela também, aquela conversa com o diretor deu pra perceber um toque de insatisfação.
    Agora é se preparar pra amanhã, quando vou interrogar os participantes do reality. A minha intuição diz que tem coisa quente aí. E vou tentar convencer a Anne a não se envolver muito para a própria segurança dela. Ela parece ser firme na decisão dela, mas eu tenho que tentar.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e a Ameaça no Reality – Capitulo III: Os Participantes

    Cá estou eu, no Caribe, mais precisamente em Aruba. O dia mal amanheceu e eu já estou acordado no quarto do hotel me preparando para os interrogatórios que vou ter com os participantes do reality. O reality se trata de romances, mais especificamente, romances que deram errado. Então preciso ser cuidadoso com minhas abordagens.
    Para isso, eu estava dando uma repassada no meu caderno de como fazer interrogatórios, com anotações pessoais que fui fazendo durante minha experiência como investigador da polícia e particular. Tá, e também tem algumas anotações baseadas em filmes e séries que eu assisto... OK, eu confesso, tem mais anotações referentes a filmes do que da minha experiência. Enfim, eu estava dando uma olhada nesse caderno quando meu celular tocou. Era Anne Gonzalo. Ela pedia para eu encontrá-la na recepção do hotel para irmos até o estúdio de gravação onde eu conversarei com os participantes.
    Peguei meu caderno, minhas coisas, e pensei em pegar minha jaqueta. O problema é que em Aruba faz muito calor e eu não aguento ficar com uma jaqueta num calor desses. Eu não gosto de ficar sem a minha jaqueta porque isso atrapalha minha imagem de detetive. Aliás, quando eu me tornei detetive particular, minha intenção não era nem comprar uma jaqueta esportiva, era comprar um sobretudo mesmo. Poxa, todos os detetives na TV usam algo desse tipo e andam com as mãos nos bolsos dos casacos, o Kojak, o Columbo, o John Constantine, o Sherlock Holmes em algumas adaptações... Mas o clima no Brasil não deixa eu ter estilo.
    Desci na recepção do hotel e Anne estava me esperando lá com o motorista. Ela estava com a cara menos amarrada do que das outras vezes que conversei com ela. Um indício de que ela possa estar com um bom humor. Talvez agora eu consiga fazer ela entender que não deve se envolver muito no caso, para a segurança dela mesma.
    – Bom dia, detetive! Preparado para conhecer os participantes?
    – Bom dia, Anne! Sim, tenho tudo o que preciso aqui no meu caderno.
    – Não vai me fazer sentir vergonha alheia de novo, hein?
    – É, então... Sobre isso... Esse é um caso de ameaça que a gente não faz ideia de quem mandou. Pode ser qualquer um. Pode ser um fã, um ex dos participantes, pode ser da produção, da emissora, pode ser até o motorista aí...
    Então, percebi que o motorista me olhou assustado.
    – Não que eu esteja desconfiando de você, hehehe. É só uma suposição, fica tranquilo. Então, Anne...
    – Ah, já sei! Você quer que eu fique de fora pra minha segurança, não é?
    – É... Pelo visto você entendeu, né? Pode ser perigoso.
    – Olha, detetive, não se preocupa comigo não que eu sei me virar, tá bom? Além do mais, seu sucesso nesse caso garante o meu também, já que fui eu quem te indicou pra diretoria da emissora. Eu vi como você descobriu sobre o general que assumiu a identidade da mulher dele. Então, acho que a gente tá nessa juntos.
    Uma coisa que eu não tinha reparado: Anne foi a única que prestou atenção na parte certa do meu outro caso. Além disso, ela me parecia empolgada. Parecia com a mesma empolgação que eu sentia quando ia investigar meus primeiros casos após ser promovido na Polícia. Um outro indício disso era que era ela quem me fazia as perguntas durante a viagem até o estúdio.
    – E então? Como você procede?
    – Ué? Como assim?
    – Você tem algum tipo de método pra saber se a pessoa é suscetível, se está mentindo, etcetera?
    – Não, eu só pergunto o que a pessoa sabe. A única coisa que eu mudo é a abordagem.
    – Mas e se ela estiver tentando te ludibriar? Eu vejo em vídeos que as pessoas dão sinais quando estão mentindo, você não detecta nenhum?
    – Nah! Eu não me concentro muito nisso não. Se você fica muito preocupado com isso, acaba se perdendo. Só se for algo bem escancarado. Além disso, as provas falam mais do que os investigados.
    – Nossa! Achei que era diferente. Bom, como já estamos chegando, deixa eu te adiantar: os participantes homens e as mulheres não podem se ver antes das gravações. Então, na parte da manhã você falará com os homens e depois do almoço falará com as mulheres.
    – Quantos participantes são?
    – Três homens e três mulheres.
    – Bom, tenho muita conversa pra hoje.
    Quando chegamos ao estúdio, nos encontramos com Roninho, o diretor do reality. Ele disse que faria questão de acompanhar também os interrogatórios. Eu acho um pouco limitador tanta gente observando. Mas, como o trabalho deles envolve ficar acompanhando pessoas por vinte e quatro horas, vou ter que aguentar isso.
    Eu me sentei em uma mesa posta no meio do estúdio e Anne, sem falar nada, se sentou ao meu lado. Eu pedi para Roninho chamar o primeiro participante. Ele chamou e logo entrou na sala um homem com pinta de modelo ou astro de Hollywood. Ele andava de forma nada discreta, como se estivesse naquelas propagandas de perfume para homem. Ele se sentou à minha frente e eu logo comecei:
    – Nome e profissão, por favor.
    – Meu nome é Marco Polo Alfinco. Sou empresário. Você é que é o cara que vai investigar a ameaça, é?
    – Então, você também está sabendo.
    – Tá todo mundo sabendo. Notícia como essa espalha fácil, cara!. Mas não se preocupa que não fui eu.
    – Na verdade, Marco, eu queria saber mais sobre sua relação com a ex. Vocês eram o quê? Namorados, casados ou outro tipo?
    – Haha! Você tá achando que foi ela? Por minha causa?
    – Olha, vai ficar mais fácil se você responder minhas perguntas, Marco.
    – Eita! Um detetive linha dura! Beleza então! Ela é minha ex-noiva.
    – Ex-noiva? Por que terminaram? Quem terminou?
    – É, desgaste na relação. Foi um rompimento mútuo.
    Quando um cara desses fala que foi "mútuo" é porque foi ela quem terminou, pode apostar. Além do mais, chegou a ser noiva. Pra ter um rompimento num noivado, muito provavelmente, algo aconteceu, não só "desgaste na relação". Mas, sabendo como é complicado esse negócio de romance, não vou descartar totalmente por enquanto.
    Roninho mandou entrar o segundo. Achei curioso quando ele entrou. Era um senhor de idade usando roupas de turista. Eu não aguentei e perguntei para Anne:
    – Não são apenas os jovens que participam?
    – É que nessa temporada a emissora quis apostar em um homem com sabedoria. Eles estão vendo a tendência de professores e palestrantes virando influenciadores e acharam que seria bom colocar um para participar.
    Diferente, não? Pensei que eles davam valor só pra pegação. Ou será que eles teriam... É melhor eu não terminar a pergunta.
    – Quer dizer que o senhor é professor? Qual é seu nome?
    – Professor, historiador e filósofo. Meu nome é Augusto Cyran
    – Certo, Professor Cyran. Como era sua última relação e como terminou?
    – Era uma relação maravilhosa que eu tive com minha esposa. Foram 40 anos de casados. Infelizmente acabou porque ela faleceu.
    Ué? Como? Se o programa tenta criar conflito com ex, como vai fazer isso com um viúvo? O espírito dela vai aparecer? Esse pessoal do show business não sabe o que inventar mesmo.
    Eu até poderia detalhar a conversa com o terceiro participante, mas ele era exatamente igual ao primeiro. Presunçoso, superficial, andava como se estivesse num filme de ação, ostentava suas roupas. Até o jeito de falar era igual. Na hora do almoço eu falei sobre isso com a Anne:
    – Vocês selecionaram dois caras completamente iguais pra participar.
    – Ai, detetive, nem me fala! Eu tive que participar da seleção e vi mais dez iguais a eles.
    – Não dá muita diversidade pras mulheres escolherem, né?
    – Calma que você ainda vai falar com elas. Aí depois você me fala.
    Então começaram as conversas com as participantes mulheres. E mais uma chuva de superficialidade, presunção e ostentação com as duas primeiras. Meio que como uma fosse a outra depois de trocar de corpo. Depois que a segunda saiu eu olhei para Anne que me olhou fazendo uma expressão como quem diz: "Eu não disse?" Eu, simplesmente, não entendo como ela aceita esse trabalho que faz ela passar por isso. Ela passa a nítida impressão de que não gosta daquilo.
    Roninho mandou entrar a terceira participante. Uma moça que parecia um pouco mais jovem que as outras duas. O braço direito dela tinha uma tatuagem que ela fazia questão de deixar à mostra. Parecia ser um pouco diferente das outras duas, um pouco mais enérgica. Os cabelos vermelhos dela chamariam a atenção até mesmo no meio de uma torcida do Internacional. Ela se sentou à minha frente e foi ela quem começou:
    – Uau! Jerry Bocchio! Você é quem é o detetive?
    Opa, Ela me conhece! Um começo diferente como esses merece uma abordagem diferente. Então consultei meu caderno e respondi:
    – Sou eu quem faz as perguntas aqui, mocinha! Ah, não, pera... Abordagem errada, desculpa o grito. Deixa eu ver a página certa do meu caderno aqui... Hum, deixa ver... Ah, achei! Sim, cara testemunha, eu sou um detetive... Ah, não eu acho que ainda tá errado.
    – Gente, eu tô confusa. O que tá acontecendo aqui?
    – Liga não Jéssica, esse detetive sempre dá uma dessas. Mas ele o detetive sim. – Disse Anne, se metendo no meio da conversa.
    – Quer saber? Vou deixar meu caderno de lado e vou voltar pra abordagem padrão. Nome e profissão, por favor.
    – Nossa! Você não me reconhece? Eu sou a Jessy Lins!
    – Não tô lembrando de você não, desculpa. De onde nos conhecemos?
    – Não é isso! Eu sou influencer de cultura pop! Nunca viu meus vídeos nas redes sociais?
    – Aaaah! Eu não sou muito de ficar em redes sociais. Esse negócio de ficar rolando a tela pra cima me dá tontura.
    – Você devia ver mais, então. Você está bem famoso nelas por causa do caso do empresário com a velha rica que está morta.
    – Ah, não! Que saco! Essa não era a parte principal do caso, gente!
    – Pelo visto você não queria essa fama, né? A internet é assim mesmo. Por que você está aqui então?
    – Bom, como todo mundo aqui já sabe, eu vou falar: alguém enviou uma ameaça para a produção do programa e eu fui chamado pra investigar.
    – Uau! Eu vou fazer parte de uma investigação que nem aquelas dos filmes? E com você como detetive? Então eu vou ajudar. Voltando do começo: Meu nome é Jéssica Lins e eu sou influenciadora digital.
    A decisão repentina de colaboração dela me deu ânimo pra continuar:
    – Eu queria saber sobre sua última relação. Vocês eram namorados, casados ou outra coisa?
    – Namorados.
    – Quem terminou a relação e por quê?
    – Ah, nem gosto de falar. Aquele babaca! Eu mal terminei com ele e ele já está com outra.
    – Pelo visto, teve problema então. Você acha que ele seria capaz de se vingar caso te visse com outra pessoa?
    – Ele? Pfff! Ele tem só pose! Que nem um baiacu. Além disso eu não vim aqui pra encontrar outro relacionamento, só vim porque o meu patrocinador é o mesmo do programa.
    Por algum motivo, Roninho achou que iria poder se meter na conversa, aí, enquanto ele falava, eu fui dando uma olhada no meu caderno pra saber se eu tinha alguma anotação sobre essa situação.
    – Jessy, você já veio com essa ideia pro programa?
    – Ai, Roninho! Cansei desse tipo! Eles não valem nada! Eu estou começando a ver um pouco de valor mais em alguns lobos solitários, mais especificamente, alguns que evitam até redes sociais.
    – Ah, mas esse tipo também não...
    – Sou eu quem faz as perguntas aqui, rapaz! A-ha! Agora eu acertei a abordagem! Então, Jessy Lins, como ele ia falando, esse negócio de sair com lobos pode ser perigoso mesmo, além do que, pra adotar animais selvagens precisa de umas autorizações especiais. Não sou especialista nisso.
    – Detetive, você entendeu o que ela...
    – Olha, Roninho... Quer que eu passe pra página 90 do meu caderno?
    – Hahahahaha! Você é engraçado, Jerry! Quando acabar esse caso, você não quer dar uma entrevista no meu canal? Eu posso te ajudar a mudar a sua imagem.
    Então, foi a vez de Anne interromper de novo:
    – Na verdade, a emissora não pretende passar isso pra imprensa... Coisas dos bastidores.
    – Não vai gritar com ela que nem você fez comigo, detetive?
    – Gente! Isso aqui já tá parecendo o Superpop já, com tanta gente interrompendo. Quer saber? Jessy Lins, pode ir, está dispensada. Qualquer coisa eu te chamo de novo, beleza?
    Depois de todas essas conversas, estava eu tentando tomar meu café com um pão na chapa, que nem eu faço na Padaria Nova Caledônia, pra tentar organizar meus pensamentos. O problema é que, no Caribe, eles não sabem fazer isso. Então estava tentando reproduzir o ambiente com um expresso mesmo. E eu vou te falar: que café ralo!
    Enfim, estava eu lá quando Anne apareceu e se sentou à mesa junto comigo.
    – E aí, detetive? Já tem algum palpite?
    – É, foi difícil tirar alguma informação relevante desse pessoal. Mas, eu tenho a impressão de que Jessy Lins tem algo interessante para nós.
    – Por que ela?
    – O relacionamento dela foi o único que acabou em problema, quer dizer, problema passional, né? Já que um deles virou viúvo. Mas, como eu não acredito que o espírito da mulher dele tenha amaldiçoado o programa, eu acho que Jessy Lins é a que tem mais chance.
    – Então, você crava que o motivo é passional.
    – É, então, ainda estou no começo. Talvez possa não ser esse motivo. Pra dar continuidade, eu queria mais informações sobre o patrocinador. Você disse pro Roninho que o patrocinador quer a temporada desse programa independente de ameaça ou não. Por que ele tem tanta confiança que vai dar certo? Eu conseguiria falar com ele?
    – Vai ser difícil, ele só fica na área VIP do restaurante. Poucas pessoas têm acesso.
    – Então, vou bolar um disfarce para nós tentarmos entrar amanhã.
    – Nós, detetive?
    – Sim. Você não disse que a gente está junto nessa?
    Anne se empolgou com a minha decisão. Parecia que ela estava gostando de trabalhar como investigadora. Ela pediu um café também para ir combinando comigo como nós iríamos fazer para entrar na área VIP do restaurante.
    Então, agora eu tenho uma parceira para investigar o caso. Espero que nós sejamos uma dupla entrosada para que o trabalho flua melhor.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capítulo I: Tudo Bem (ou Quase)

    Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capítulo I: Tudo Bem (ou Quase)
    Meu nome é Jerry Bocchio. Eu sei que já falei isso aqui antes, mas, se essa é a primeira vez que você vê uma história minha, eu sou um detetive particular. Costumo pegar casos que a Polícia não dá importância. Brigas de vizinhos, gatos de água, luz e internet, pichadores, árbitros de futebol envolvidos em esquemas de apostas, coachs quânticos etc.
    Meu nome começou a ficar mais em evidência depois que eu descobri e ajudei a expor um diretor de TV que queria sabotar o próprio programa. Eu comecei a ser chamado para casos cada vez mais interessantes, mais desafiadores, e não apenas casos de suspeita de traição. O problema é que, juntamente com essa alavancagem do meu nome, veio também uma paixão.
    E por que isso seria um problema? Porque, mesmo parecendo ser correspondido, ela teve que se mudar para outra cidade para alavancar a carreira dela. Como ela é uma pessoa tão espírito livre quanto eu, não tentei impedí-la. Talvez dois espíritos livres não sirvam pra viver juntos mesmo. Enquanto isso, fico apenas eu aqui, com a minha rotina de detetive.
    Todo dia, antes de ir para meu escritório, eu dou uma passada na Padaria Nova Caledônia para tomar meu café da manhã: um copo de café com leite e um pão com manteiga na chapa. Um café da manhã com todos os nutrientes necessários para um dia de investigação. O dono da padaria, o Seu Rogério, me atende com toda camaradagem que só um dono de padaria tem pelos seus clientes.
    Um belo dia, fui seguir a minha rotina matinal normal. Cheguei na padaria e vi que o lugar estava cheio. Seu Rogério veio até mim para atender, já com o meu pedido na ponta da língua. Eu, vendo toda a movimentação da padaria, comentei com o Seu Rogério:
    – Olha, até que a padaria vai bem mesmo depois daquela gafe que eu cometi com o programa de fofoca.
    – Que isso, J.B.! Aquilo ajudou a padaria a atrair ainda mais clientes.
    – Como?
    – Agora tem muito paparazzi e fã de fofoca consumindo aqui. Eu até coloco nesses programas matinais de TV, ao invés de noticiários.
    – Que legal, hein, Seu Rogério? Pelo menos pra alguma coisa aquela aparição em programa de fofoca serviu.
    – É, mas não foi só isso não. Quando aquela sua amiga influenciadora veio aqui atrás de você, ela atraiu seguidores pra cá também. Eu tive até que deixar duas mesas do lado da janela arrumadas pra parecer mesas de novela só pra eles tirarem fotos pro tal do Instagram.
    Seu Rogério apontou para as mesas ao lado da janela. Acima da janela havia um aviso escrito "mesas instagramáveis". Ele voltou a dizer, dando risada:
    – Quem deu essa ideia foi a Renatinha, do caixa. Essa molecada inventa cada coisa, né?
    Nós dois estávamos conversando enquanto eu ia tomando café. Eu contava para ele as descobertas do meu último caso quando uma senhora chegou ao meu lado. Era uma senhora de idade já, parecia ter uns 60 anos, tinha o cabelo curto ao estilo Joãozinho, tingido de loiro, meio gordinha e andava com um ar de autoridade forçada, como se ela fosse um personagem do programa "Vai Que Cola". Eu estava reconhecendo ela, ela parecia ser aquela vidente que viralizou na internet pelo modo ranzinza como ela fala com as pessoas que ligam na rádio onde ela trabalha pra pedir conselhos. O nome dela é Solange Maria, mas a rádio a apresenta como a Vidente Solange.
    Ela chegou cortando o assunto entre o Seu Rogério e eu querendo falar com o Seu Rogério:
    – O senhor é o dono do estabelecimento?
    – Vidente Solange! Que prazer recebê-la! Sou eu sim!
    – Tá, tá, tá bom! Olha, deixa eu ir direto ao assunto. Eu recebi uma mensagem dos espíritos falando que você tem uma oportunidade de ganhar dinheiro em vista.
    – Eles estão afiados, hein? Só que pra isso eu teria que abrir mão da padaria, então eu não aceitei.
    – Você é idiota, é? Esse lugar aqui é cheio de encosto! Sai daqui antes que a oportunidade vai embora.
    Rapaz, essa mulher é ranzinza mesmo! Pensei que era só uma personagem. Eu acabei entrando na conversa pra ver se a mulher se acalmava:
    – Olha, dona vidente, talvez esse negócio de encosto não seja tão ruim.
    – Como não? Você é lesado, é?
    – Bom, aqui tem bastante encosto nas cadeiras pras pessoas não curvarem tanto as costas. Já é um alívio.
    A Vidente Solange me olhou no fundo dos olhos como uma professora dos anos 80 que acabou de pegar o aluno colando na prova, pronta pra dar a reguada, e o Seu Rogério caiu na gargalhada. Depois de se recuperar do riso, o Seu Rogério disse para a vidente:
    – Não se preocupa com isso não, o único encosto que eu tenho aqui é o Zé Maria. Né não, Zé Maria?
    Zé Maria, o chapeiro da padaria, solta um riso meio constrangido. A Vidente Solange volta a falar:
    – Você foi avisado.
    Ela simplesmente pegou as coisas e saiu. Essa cena ligou o meu alerta. Durante meus anos de experiência como investigador, eu já vi muita cena parecida que se tratava de uma ameaça disfarçada. Então, pra tirar a dúvida, eu perguntei para o Seu Rogério:
    – Seu Rogério, do que se tratava esse aviso dela?
    – Olha, J.B., eu vou te falar porque você é amigo aqui, mas não espalha pra ninguém, beleza?
    – Tudo bem!
    – Um cara veio aqui semana passada me fazendo uma proposta pra comprar a padaria. Ele me ofereceu trezentos mil.
    – Rapaz! E você fez o que?
    – Eu recusei, lógico! Primeiro, porque o valor que ele me ofereceu foi muito abaixo do que a padaria vale. Segundo, porque eu não quero me livrar da padaria, aqui é a minha vida. E terceiro, se eu mandar todo mundo aqui embora, do nada, como eles ficam?
    – Que estranho! Como que essa vidente sabia disso?
    – Ué, J.B., ela é vidente! Ela deve ter mesmo esse negócio de paranormal aí, senão, não tava na rádio.
    – Não, Seu Rogério! Esse negócio de paranormal aí não existe. Ela só está na rádio porque as pessoas gostam de acreditar que a vida pode ser resolvida simplesmente escrevendo o nome de uma pessoa amada num pedacinho de papel, ou bebendo água com limão, ou esperando o dia onde os astros se alinham etc. Quer saber? Me dá a conta aí! Vou dar uma pesquisada sobre ela no meu escritório.
    – Eita! Esquenta com isso não, J.B.!
    – Não, não, Seu Rogério! Essa mulher ligou um alerta na minha cabeça.
    Voltei para o meu escritório para procurar algo sobre essa Vidente Solange. Durante o dia não deu tempo, pois eu trabalhava em mais dois outros casos: Um músico frustrado que desconfiava que sua música foi plagiada por uma outra banda, também não tão conhecida assim, e um vendedor ambulante que desconfiava que seus aparelhos TV Box estavam sendo furtados.
    No final do expediente foi onde eu consegui tirar tempo pra fazer a pesquisa. A pesquisa levou mais tempo do que eu esperava, eu demorei uns dois dias para ajuntar todas as informações que consegui. Mas eu descobri algumas coisas interessantes.
    Nos anos 90, a Vidente Solange havia sido desmascarada ao vivo, em um programa de auditório de domingo, no horário nobre. Levaram ela para um suposto presídio desativado onde ela dizia ver coisas horríveis. Ela fazia caras e bocas, gritava, babava e suplicava como num filme de terror. No final, o dono do local disse que aquilo não era um presídio desativado, era um shopping center desativado.
    Após esse episódio, ela sumiu por um bom tempo, mas, por incrível que pareça, tinha alguns seguidores de suas dicas astrais que a tratavam como o novo Messias. Aí, com a chegada das redes sociais, ela começou a fazer vídeos, fazer mais seguidores que, ou se esqueceram do episódio nos anos 90, ou inventavam desculpas esfarrapadas pra justificar o mico. Depois de um tempo, foi contratada pela Rádio Aurora Brasil, onde trabalha atualmente.
    Aqueles tais "encostos" que ela se referia seriam espíritos maus que gostam de atrapalhar a vida das pessoas. Só que nunca fica claro quem seriam esses "encostos". Seriam almas de pessoas ruins durante a vida? Ela sempre deixa ambíguo.
    A linha de raciocínio dela também é bem ambígua: Uma gororoba de astrologia, com psicologia positiva, com aliens, com rituais de várias religiões diferentes. Algo muito parecido com o que faziam na serie "Supernatural". A diferença é que "Supernatural" se vende como ficção e não fica mandando o público seguir seus conselhos.
    Eu acho que já ficou bem claro aqui que eu não acredito nisso, certo? Não que eu tenha algo contra quem acredita, mas não gosto quando quem acredita fica obrigando as pessoas ao redor dela a agirem de acordo com a crença dela. Se existe mesmo alguma força cósmica superior, isso sim seria algo que a irritaria.
    Porém, parece que as pessoas que usam as redes sociais dessa Vidente Solange agem exatamente assim. Vi depoimentos de pessoas que terminaram relacionamentos, terminaram amizades, demitiram funcionários ou pediram demissão da empresa, mudaram seus filhos de escola, alguns até mesmo diziam ter expulsado familiares por causa das crenças no tal do "encosto".
    Vi até mesmo um divulgador científico, que também era influenciador, que fazia vídeos refutando muitas coisas que a Vidente Solange divulgava. Só que ele tinha poucos vídeos e sumiu depois de um tempo. E ele era muito odiado pelos seguidores da Vidente Solange, diziam que ele fazia os vídeos com a ajuda do "encosto". Esse ser, pelo visto, é onipotente.
    Depois de anotar tudo isso, deixei para ir falar com o Seu Rogério. Esperei o dia amanhecer e fui na Padaria Nova Caledônia no horário de sempre. Só que, quando eu cheguei lá, uma surpresa desanimadora: a padaria estava fechada! E na porta havia um aviso que ela foi fechada pela Vigilância Sanitária.
    Não pude acreditar de primeira, então, fui até uma das janelas para olhar se havia acontecido algo dentro da padaria. As luzes estavam quase todas apagadas e o Seu Rogério estava no balcão, cabisbaixo, conversando com um homem de terno e gravata.
    Eu gritei o nome do Seu Rogério. Ele disse que não queria falar comigo no momento, mas eu insisti. Seu Rogério é meu amigo e eu não queria deixar ele sozinho nessa situação. Depois de muita insistência, Seu Rogério abriu a porta de trás para eu entrar. Enquanto ele ia me levando até o balcão, eu perguntei o que aconteceu e o Seu Rogério, após dar um grande suspiro, me respondeu:
    – Um cliente chamou a Vigilância Sanitária falando que ingeriu pelo de rato na comida e pegou uma infecção alimentar.
    – Nossa, Seu Rogério! Como isso aconteceu? Eu vejo você ligando pra dedetização frequentemente.
    – Sim, semana passada mesmo eu contratei, mas, por algum motivo, a Vigilância Sanitária achou um ninho de ratos dentro do meu estoque, onde eu guardo a farinha de trigo.
    Seu Rogério e eu chegamos ao balcão, onde o homem engravatado aguardava. Ele era um homem alto, com o cabelo raspado, um cavanhaque e segurava uma maleta. Na frente dele, em cima do balcão, um calhamaço de papéis que parecia ser um contrato. O homem me reconheceu por algum motivo e foi se apresentando:
    – Detetive Jerry Bocchio! Que prazer em conhecê-lo pessoalmente! Meu nome é Jorge Abílio, sou corretor de imóveis.
    Ele me deu a mão e eu o cumprimentei, mas depois me toquei de uma coisa:
    – Seu Rogério, você vai vender a padaria?
    Seu Rogério viu minha cara de preocupação e respondeu:
    – Sinto muito, J.B., eu não tenho muito o que fazer nessa situação. A família do rapaz está processando a padaria.
    – Mas você disse que trezentos mil é muito abaixo do valor real da padaria.
    Então, o corretor se intrometeu na conversa todo pomposo:
    – Não é mais trezentos mil. A gente está comprando por cem mil agora. Economia é assim, né?
    Seu Rogério, tentando tirar graça da situação, e falhando por causa de falta de forças pra isso, respondeu:
    – É, J.B., bem que a Vidente Solange me avisou, né?
    Nesse momento, vendo o Seu Rogério abatido e o corretorzinho de meia tigela dando risada, juntamente com a menção àquela picareta, que eu já odeio só pelo fato de tudo resultar nisso, eu fiquei irritado. Eu precisava fazer algo para impedir isso. Eu olhei no fundo dos olhos do Seu Rogério e disse:
    – Seu Rogério, não venda a padaria!
    – Mas, J.B.! Como não?
    – Eu vou livrar você dessa. Eu tô sentindo cheiro de coisa errada no ar, e não é esse perfume de cara metido a macho que o corretor tá usando não.
    O corretorzinho se meteu de novo:
    – Qualé, detetive! Eu sei que você é bom no que faz, mas não tem o que investigar aqui não. A Vigilância Sanitária achou o ninho dos ratos e o cliente fez o exame que detectou os pêlos de rato. Pelo que eu ouvi da história que o Seu Rogério me contou, a Vidente Solange acertou de novo. Você deveria ouvir o programa dela, te ajudaria a alavancar sua carreira de detetive.
    – Eu não estou dizendo que ela errou não, Jorge. Ela havia dito que tem encosto nessa padaria. Ela só não contava que o encosto sou eu.
    – Hahahaha! Você é muito engraçado, detetive! Só toma cuidado que os encostos não gostam de ser desafiados.
    – Você, pelo visto, conhece bastante do assunto, Jorge.
    – Claro! Eu sigo as recomendações dela e estou aqui agora.
    – Destruindo sonhos dos outros? Os astros, ou espíritos ou os sei-lá-o-quê devem sentir muito orgulho de você.
    – Olha, eu não destruí sonho de ninguém. Foi dado um aviso a ele e ele não ouviu. Eu sou só o executor, não tenho culpa nessa. E então, Seu Rogério? Falta só a sua assinatura.
    Essa última fala do corretorzinho irritou o Seu Rogério. Ele pegou o contrato de cima do balcão e o rasgou no meio.
    – Dá o fora da minha padaria, seu moleque!
    Num tom meio debochado, o corretorzinho se virou e foi embora.
    Seu Rogério e eu ficamos um tempo sozinhos na Padaria Nova Caledônia. Pra agradecer a minha ajuda, ele pediu um café da manhã por delivery para entregar lá para nós dois. Quando chegou, nós sentamos em uma das mesas para tomar e o Seu Rogério, um pouco mais em si, começou a falar:
    – J.B., e agora? Você acha mesmo que consegue? O julgamento é daqui a algumas semanas.
    – Tem algo muito errado aí, Seu Rogério. Você dedetizou a padaria na semana passada e já apareceram ratos com ninho feito e tudo? Além disso, o tal do corretor aí é seguidor da vidente, é muita coincidência.
    – Ah, mas ela tem muitos seguidores.
    – Seu Rogério, eu não acredito nessa papagaiada. Tem coisa errada aí e eu vou descobrir.
    Seu Rogério abriu um sorriso amigável e respondeu:
    – Muito obrigado, J.B.! O que eu puder fazer pra te ajudar, é só me falar.
    Eis aí meu novo caso. Alguém quer prejudicar meu amigo e eu preciso saber quem.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capitulo II: Uma Visita Não Tão Inesperada

    Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capitulo II: Uma Visita Não Tão Inesperada
    Quando eu saí da Padaria Nova Caledônia, fui até meu escritório já pensando em uma estratégia de investigação no meio do caminho mesmo. Seu Rogério estava quase desistindo do que ele considera ser a sua vida ideal e é meu dever ajudá-lo.
    Eu já vi alguns casos que envolvem pessoas com supostos poderes sensitivos e, sinceramente, nunca me convenceram. Essas pessoas mais atrapalham do que ajudam, pois, quando metem essa explicação metafísica, as outras pessoas simplesmente desistem de continuar procurando.
    Quando cheguei ao escritório, comecei a pensar em cenários para o acontecido. Lembrando que, uma semana antes dos ratos aparecerem, Seu Rogério havia mandado dedetizar a padaria. Então, como esse ninho de ratos apareceu lá? Tentando imaginar cenários para esse acontecimento, escolhi começar por investigar conversando com os funcionários da padaria. Talvez eles teriam algo a dizer, testemunhado algo etc.
    Falar com aquele cliente que ingeriu os pêlos de rato e ficou com infecção alimentar também seria uma boa.
    Liguei para o Seu Rogério e pedi para ele tentar chamar seus funcionários para conversar, mas ele não estava atendendo na hora. Quando o Seu Rogério retornou a ligação, uma meia hora depois, ele estava empolgado pra saber se eu já tinha algo:
    – Alô.
    – Alô, J.B.? Aqui é o Rogério. Você tinha me ligado. Já tem novidades?
    – Ainda não, Seu Rogério. Eu estou só no começo da investigação.
    – Então por que me ligou?
    – Eu queria começar falando com os seus funcionários. Será que o senhor poderia reunir eles pra eu fazer umas perguntas?
    – Xiiii, depois de tudo o que aconteceu, acho difícil. Alguns já estão até tentando arrumar um novo emprego. Você acha que foi um deles?
    – Não! Só pra saber se alguém notou algo estranho ou testemunhou alguma coisa.
    – Tá bom, então. Vou ver o que consigo fazer. Venha pra padaria daqui umas duas horas.
    Ótimo! Agora já tenho por onde começar. Além do Seu Rogério, trabalham também na padaria o chapeiro, Zé Maria, a recepcionista de caixa, Renatinha, o garçom, Rodolfo, as duas atendentes do balcão, Valéria e Marisa, e os auxiliares da cozinha que ajudam o Seu Rogério, Tião e Caçula.
    Enquanto preparava minhas coisas, ouvi uma batida na porta. Poderia ser um cliente, mas, como já me comprometi a ajudar o Seu Rogério nessa, fui abrir a porta para dispensar a pessoa. No momento que eu abri a porta, uma surpresa: era a Vidente Solange.
    Ela agora estava com um ar menos agressivo do que a primeira vez que eu a vi na padaria. Porém, ainda de um jeito muito intrusivo, apenas me deu um "boa tarde" e foi entrando sem minha autorização. Passou pela porta, sentou-se à minha mesa, ficando de costas para mim, que estava na porta, e começou a falar:
    – Detetive Jerry Bocchio, você está investigando o que aconteceu na Padaria Nova Caledônia, não?
    Eu não fui até a mesa, fiquei parado na porta pra ver se ela entendia que eu estava de saída. Falei pra ela de lá mesmo:
    – Sim, senhora Solange. Inclusive eu estou indo até lá agora mesmo.
    – Suas habilidades são inúteis para esse caso, detetive. Estou aqui para te alertar para não dar prosseguimento à investigação.
    – Olha, eu sei que muita gente gosta do que a senhora fala e tudo mais. Só que eu não acredito nessas coisas de encosto aí não.
    – Pois não adianta nada você não acreditar. Eles agem do mesmo jeito.
    Esse pessoal é estranho. Quando é pra acontecer coisas boas, tipo ganhar dinheiro, arrumar um romance, melhorar a saúde, dormir oito horas por dia ou poder comer besteira todo dia sem sofrer consequências, aí você tem que acreditar direito. Se você tiver um pingo de dúvida, não acontece. Agora, pra acontecer coisas ruins, aí nem precisa acreditar que acontece. O Deus dessas pessoas deve ser um vilão de novela, só pode.
    – Posso saber o que esses tais "encostos" farão?
    A minha pergunta fez a Vidente Solange se levantar e virar de novo para mim, com o pescoço curvado para frente, fazendo uma posição de corcunda. Ela começou a falar mais agressivamente, parecendo que queria me impor medo. Foi de um modo tão brusco que acabou me assustando:
    – Nossa! Um deles te possuiu agora?
    – Detetive, não caçoe da situação! Os encostos são ardilosos! Não se pode saber o que passa na cabeça deles!
    – Aaaah! Eles têm cabeça?
    – Sim, oras! Eles são espíritos maus.
    Não entendi a relação entre ser espírito mau e ter cabeça. Mas ela disse de um modo tão convincente que, na hora, parecia ter lógica. Aí eu fiz mais uma pergunta que eu julgava importante:
    – Ué, então porque não chama eles de "espíritos maus" logo? Esse negócio de "encosto" deixa um pouco confuso.
    – Eu que costumo chamar eles de "encosto".
    – Mas por quê?
    – É porque... Porque... Ah, não interessa! O que interessa é que se você prosseguir nessa investigação, eles vão entender como desafio.
    – Olha, dona Solange...
    – Vidente Solange!
    Pera aí! Ela faz questão que chamem ela de "Vidente Solange"? Vidente virou coisa tipo doutor, professor, juíz etc.? Ai, fazer o quê, né?
    – Tá, tá bom! Vidente Solange! Há alguns segundos você me falou que não dá pra saber o que se passa na cabeça deles. Agora você me diz que eles vão entender como desafio? Agora eu estou entendendo menos ainda.
    A Vidente Solange parou por uns instantes com o dedo indicador no queixo, como se estivesse tentando lembrar de algo. Quando ela voltou pra conversa, só foi pegando a bolsa dela e disse, ou melhor, gritou, do mesmo jeito que ela faz com os ouvintes da rádio:
    – Ah, pare de fazer perguntas! Que saco! Você quer saber de tudo, é? Me dá licença que eu preciso... Preciso... Ir pra rádio.
    – Ué, seu programa só passa de noite.
    – Pare de fazer perguntas!
    – Mas isso não foi uma pergunta.
    – Chega! Olha só, você me irritou tanto com as suas perguntas que eu quase esqueci uma coisa.
    A Vidente Solange olhou no fundo dos meus olhos com um olhar sério e disse de forma dramática, como se fosse um apresentador de um programa de mistérios, tipo "O Homem do Sapato Branco":
    – Você foi avisado!
    Após isso, ela foi embora, batendo com força a porta do escritório. Confesso que o modo como ela falou me assustou um pouco. Ela é bem convincente no modo de falar essas coisas, afinal, já são vários anos trabalhando com isso, não é mesmo?
    Mas eu não me importei. Nem ela parecia direito saber o que são esses tais "encostos". E pra ser bem sincero mesmo, eu já estava meio que esperando essa visita da Vidente Solange no meu escritório. Não sei especificar direito o porquê disso, talvez seja porque ela quer garantir que acertou a previsão dela na padaria não deixando ninguém investigar. Além disso, ela já foi desmascarada ao vivo anteriormente, talvez um investigador cause um certo trauma nela... Ou será que eu também tenho "poderes sensitivos"? Uuuhh! Mirei no Sherlock Holmes e acertei no John Constantine!
    Brincadeiras à parte, olhei no meu celular que já estava quase na hora de eu sair. Peguei meu caderno, não peguei minha jaqueta porque estava um calor infernal (já falei que o clima do Brasil não deixa eu ter estilo?) e fui em direção à Padaria Nova Caledônia.
    Continua...
  • Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capitulo III: Confissão Cedo

    Eu fui até a Padaria Nova Caledônia depois daquela visita estranha da Vidente Solange. Aquela visita dela me deixou assustado na hora, mas no meio do caminho fui pensando sobre aquilo e me pareceu mais uma ameaça do que um aviso.
    Enfim, quando cheguei na padaria, Seu Rogério estava me esperando na porta, do lado de fora, ao lado de um homem de um terno grafite, gravata azul, cabelo penteado pra trás, uma pasta marrom na mão e um sorriso típico de advogado. Se você não reconhece sorrisos advocatícios, eu não posso ensinar, somente detetives experientes, como eu, conseguem identificar um de longe. Quando encontrei com o Seu Rogério, ele me apresentou o homem:
    – E aí, J.B.! Que bom que você veio! Esse aqui é o doutor Maurício Porteau, ele é o advogado da padaria.
    – Boa tarde, detetive! É um prazer conhecê-lo. O Seu Rogério me falou muito bem de você.
    Advogados! Eu não gosto de fazer meu trabalho com um deles por perto. Eles ficam toda hora me censurando. "Ain, não pode pressionar tanto o interrogado"; "Ain, isso é fazer ele criar provas contra si mesmo"; "Ain, você é uma pessoa só, não tem como fazer a estratégia do 'tira bom e tira mau'". Mesmo com a tentativa de lisonja e a mão estendida do advogado, não aguentei e falei para o Seu Rogério:
    – Poxa vida, Seu Rogério! Você trouxe um advogado?
    – Ele me disse que seria melhor pra não cometermos excessos com os funcionários.
    – Era justamente isso o que eu temia.
    – Mas ele tá certo, J.B.! Agora cumprimenta ele aí pra não ser mal educado!
    – Ah, tá bom! Igualmente.
    – Cumprimenta direito!
    Acabei tendo que apertar a mão do advogado.
    – O prazer é todo meu.
    O advogado só deu uma risada e disse:
    – Não se preocupa que eu não vou te atrapalhar.
    – Hum... Isso é o que veremos.
    Nós três entramos na padaria. O lugar estava apenas com algumas luzes acesas na área das mesas, onde estavam todos os funcionários lá. Zé Maria, Renatinha, Rodolfo, Valéria, Marisa, Tião e Caçula, todos sentados às mesas da padaria, conversando entre si. Todos eles me pareciam preocupados. Com o quê? Aí eu já não consigo dizer.
    Seu Rogério parou à frente de todos e chamou a atenção deles, que se silenciaram quase que instantâneamente. Foi então que ele começou a explicar a situação:
    – Pessoal, olha aqui. Eu sei que todo mundo aqui conhece o J.B., ele é um detetive particular que está investigando sobre o incidente com os ratos. Ele tem dúvidas sobre o que aconteceu e quer falar com vocês se vocês viram algo estranho no dia.
    Logo após as palavras do Seu Rogério, a Renatinha, a caixa da padaria, falou para mim num tom de conformismo:
    – Olha, Jerry, eu sei que você é amigo do Seu Rogério e quer ajudar, mas isso só aconteceu porque o Seu Rogério não deu ouvidos pra Vidente Solange. Isso é coisa dos encostos.
    A fala da Renatinha foi a deixa pra eu começar:
    – Renatinha, você é fã da Vidente Solange?
    – Sim, sigo ela em todas as redes sociais. Você nunca viu o que eu compartilho dela?
    – É, eu evito ficar nas redes sociais porque a rolagem da tela me dá tontura. Enfim, isso o que a Vidente Solange fala é só mídia e...
    Então, o advogado Maurício, dando uma de advogado, me interrompeu:
    – Detetive, desculpa interromper, mas não é bom ficar duvidando da fé das pessoas, hehehe. Pelo menos não agora.
    Ah, mas como esses advogados são enxeridos! Eu não aguentei a interrupção e acabei respondendo:
    – Eu sabia que uma hora ou outra você ia acabar fazendo isso.
    – Não, detetive! É que pode dar mais problemas pra padaria.
    – Então se eu vejo ela sendo ludibriada por alguém eu fico impedido de avisar?
    – O senhor não tem provas da enganação.
    – Como não tenho provas? É só olhar o passado dessa vidente. Ela foi desmascarada ao vivo na TV aberta. Além disso, ela foi no meu escritório hoje, antes de eu vir pra cá e tentou usar essa mesma história pra cima de mim.
    A Renatinha deu um grito, assustada com o que eu disse:
    – Ai, meu Deus! Os encostos estão atacando todo mundo! Eu preciso me benzer!
    Eu precisei voltar pra falar com a Renatinha, pra tentar acalmá-la:
    – Não, Renatinha! Não cai na conversa dessa mulher! Nem ela sabe explicar o que é um encosto. Quando você pergunta algo, ela se irrita e sai correndo.
    Então o advogado interrompeu de novo:
    – Detetive, você suspeita que a Vidente Solange está envolvida com isso tudo?
    – Sim! É muita coincidência isso tudo acontecer assim, não?
    Foi então que Rodolfo, o garçom, tomou a palavra:
    – Eu acho que você tá desconfiando da pessoa errada, Jerry. Eu ficaria de olho é naquele moço que estava tentando comprar a padaria.
    – Por quê?
    – Uns dias antes dele fazer a primeira proposta pro Seu Rogério, ele veio aqui, pediu só um refrigerante e ficou uma hora inteira só com o refrigerante. Ninguém bebe um refrigerante em uma hora inteira. Então eu vi que ele ficava só sentado, tirando fotos com o celular.
    Seu Rogério falou logo em seguida:
    – Poxa vida, Rodolfo! Você viu o cara tirando foto aqui e não me disse nada!
    – Ele estava no cantinho instagramável. Não falei porque tem um monte de gente que tem mania de fazer isso lá. Se eu soubesse que ia terminar nisso, teria falado.
    A revelação de Rodolfo me deixou um pouco frustrado. Não sei, algo em mim queria que a Vidente Solange fosse a culpada. Aí eu iria desmascará-la mais uma vez. Mas enfim, pra ter mais certeza, perguntei a Rodolfo:
    – E por que você acha que devemos suspeitar dele?
    – É que teve mais gente que viu ele depois. Eu vi o Zé Maria conversando com ele depois de sair do trabalho outro dia.
    Caçula, um dos ajudantes de cozinha, tomou a palavra também:
    – É! Agora que eu me lembrei, ele tentou me abordar pra falar comigo também, mas eu estava com o fone de ouvido e o ônibus tinha acabado de chegar no ponto. Então eu só ignorei e fui embora.
    Zé Maria, o chapeiro, estava encolhido. Parecia que não queria falar nada. Como Rodolfo disse que ele falou com o corretor imobiliário, eu precisei chamá-lo pra conversa:
    – Zé Maria, o que o tal corretor disse pra você?
    Zé Maria, relutante, respondeu:
    – Nada, eu não dei atenção pra ele.
    Bom, parece que eu estava errado. Depois de perguntar se mais alguém tinha algo a dizer e não obter resposta, chamei o Seu Rogério e o advogado pra falar. Seu Rogério dispensou os funcionários e agradeceu pela ajuda.
    Todos foram se levantando e saindo, menos o Zé Maria. Parecia que ele ainda queria dizer algo. Ele esperou todos os outros funcionários saírem e depois veio até nós três, Seu Rogério, o advogado e eu. Ele parecia muito acanhado e com cara de arrependimento. Seu Rogério percebeu o modo como ele estava e perguntou:
    – Zé Maria, está tudo bem?
    – Não, Seu Rogério. Na verdade, eu queria falar sobre a minha conversa com o corretor. Só que eu queria que o senhor me escute até o fim antes de qualquer coisa.
    – OK, sem problemas.
    Zé Maria deu um suspiro e começou a falar:
    – O corretor veio falar comigo dizendo que percebeu que eu ficava irritado com as piadas que você ficava fazendo comigo. Eu tentei falar que não ligava muito, mas ele insistiu. Falou pra mim que entendia de psicologia e mais umas outras coisas. Ele acabou me convencendo a querer dar o troco. Então ele me deu uma caixa e mais quinhentos reais e disse pra eu deixar ela aberta na cozinha. Eu não aceitei de primeira, mas ele ficou insistindo de novo, falando que era só uma brincadeira e coisa e tal. E eu acabei aceitando. Eu coloquei a caixa aberta e só depois que eu vi que saíram dois ratos de dentro dela.
    Então Zé Maria juntou as mãos em forma de prece e olhou de um modo dramático para o Seu Rogério:
    – Eu não sabia que ia acabar nisso! Desculpa aí, por favor!
    Seu Rogério pareceu chocado com a confissão de Zé Maria. O silêncio de Seu Rogério induziu o advogado a perguntar:
    – Zé Maria, quando isso aconteceu?
    – Foi dois dias antes da Vigilância Sanitária aparecer. Eu juro que não sabia o que tinha na caixa!
    Esses advogados são muito frios! Num momento desses esse cara vai perguntar sobre data? Seu Rogério só se sentou numa cadeira e disse:
    – Zé Maria, é melhor você ir pra casa agora. Depois eu te chamo pra conversar.
    Zé Maria só foi embora deixando nós três na padaria. Foi então que o advogado tentou começar o assunto:
    – Olha, Seu Rogério, isso não é tão ruim quanto parece. O detetive Jerry Bocchio, no final está certo, alguém veio sabotar a padaria. É só termos como provar e eu consigo convencer o rapaz a cancelar o processo. Foi bom o detetive ter pedido isso.
    Eu precisei dar a minha opinião sobre o assunto:
    – Não sei não, doutor Maurício! Isso ainda está estranho, parece que está faltando algo.
    – Você ainda está desconfiado da vidente, detetive?
    – Não sei, eu só não consigo enxergar uma motivação pro corretor fazer isso do nada.
    – Como não? Ele queria baratear o preço da padaria porque o Seu Rogério não quis vender. Isso aí é uma coisa que alguns corretores imobiliários desonestos, pra não dizer criminosos, têm costume de fazer.
    – Sim, eu sei. Só que eles fazem isso a mando de alguém, alguém que talvez esteja de olho na padaria.
    – Hum... Acho que eu sei o que está acontecendo. Você está frustrado porque a solução foi fácil demais. Bom, eu não tenho tempo pra discutir teoria da conspiração. Eu vou correndo pro meu escritório pra encomendar uma reunião com os representantes do rapaz que está processando a padaria.
    Então o advogado pegou a pasta dele e foi embora. Eu só fiquei vendo o Seu Rogério sentado, com cara de decepção com o que havia ouvido. Achei melhor acompanhar o Seu Rogério até sua casa e encerrar o dia por ali mesmo.
    Durante a ida até a casa do Seu Rogério, ele me disse que não sabia o que fazer em relação ao Zé Maria. De um lado, ele entendeu sobre as piadas irritarem ele. Mas por outro, ele disse que o Zé Maria além de ser um funcionário um pouco displicente, ainda ter aceitado aquilo deixou o Seu Rogério irritado.
    Eu só fui para o escritório no dia seguinte. Eu ainda estava com aquela sensação de que estava faltando algo no caso. Parecia que tinha uma conexão que eu estava deixando de lado. Mas, como sugeriu o doutor Maurício, talvez fosse só um desejo de que tenha algo mais mesmo, devido a tudo ter se resolvido muito fácil.
    Eu estava matutando sobre isso no meu escritório quando, lá pelas dez da manhã, ouvi um batido forte na minha porta. Fui atender e era o doutor Maurício, com uma expressão mais séria. Eu me espantei com a presença dele.
    – Doutor Maurício! Deu tudo certo lá?
    – Eu preciso falar com você, detetive!
    – Eita, que cara é essa? Eu não fiz nada não, só levei o Seu Rogério pra casa.
    – Acho que você está certo, tem algo mais nessa história.
    Depois que ele disse isso, eu deixei ele entrar. Nós fomos até minha mesa, ele pôs a pasta dele em cima e puxou um papel de dentro.
    – Eu fui falar com os representantes do rapaz que está processando a padaria. Eles disseram que não iriam retirar o processo. Então eu pedi as provas que eles teriam e eles me deram uma cópia do exame que ele fez.
    – Aquele que dizia que ele ingeriu pêlos de rato?
    – Esse mesmo! O exame não detalha muita coisa, mas olha o responsável pelo exame.
    – Nossa! Ele tem um número no lugar do nome!
    – Não! Esse é o número do registro no Conselho de Medicina dele!
    – Aaaah! E isso quer dizer o quê?
    – Eu pesquisei esse número e vi que é o Doutor Álvaro Boa Morte. Ele já teve problemas na justiça anteriormente.
    – Também, com um nome desses! Quem vai confiar num médico que se dá o nome de "Boa Morte"?
    – "Boa Morte" é um sobrenome real. Tem origem portuguesa.
    – Sério? Caraca, que família é essa? Devem ser a inspiração da Família Addams.
    – Olha, detetive, concentra aqui! Esse médico tem problema com a justiça por falsificação de atestados.
    Opa! Quer dizer que o documento tem chance de ser falso? Isso me mostrou um novo caminho para continuar a investigação.
    – Bom saber! Eu vou dar um jeito de falar com esse médico. Onde ele atende?
    – Numa clínica no centro da cidade. Mas eles não devem ser muito receptivos com detetives particulares ou policiais.
    – Ah, não se preocupe, doutor Maurício! Eu sou um mestre dos disfarces.
    O doutor Maurício ficou um pouco em silêncio e respondeu depois.
    – Olha, talvez seja melhor eu ir junto.
    Ai, que saco! Acho melhor tentar convencê-lo do contrário:
    – Doutor Maurício, não que eu tenha algo contra você, mas eu não gosto de trabalhar com advogados do lado.
    – Não se preocupa que eu não vou te atrapalhar.
    Ele já disse isso antes. Enfim, agora eu tenho uma nova pista e isso me deu um ânimo. Vamos ver se esse médico ainda está bom em falsificação. A visita não vai ser do jeito que eu queria, mas é melhor do que nada.
    Continua...
  • La Luna em Beleza e Graça

    Meu Amor!

    Há uma beleza audível e invisível que imerge no íntimo dos puros de coração

    E como a luz da lua cheia em que sua aureola prateada a envolve de encanto místico sagrado… a canção emerge do mais profundo do ser, espiralando no corpo uma aura de graça e áurea de benção

    A uma inocente beleza de pureza e graça iluminada em sua doce voz feminina…

    Voz de pureza musical que penetra arrepiando os fios dos corpos em graça

    Cada tom… cada acorde… cada timbre… cada sopro do teu ser é gracioso em sua voz em graça

    Calmamente vou seguindo os seus passos sonoros no Bendito Amor em beleza e graça

    Tua força audível dança descontroladamente em meu coração

    Tua voz graciosa me arrasta para a Morada da Beleza

    O Sagrado lá me espera…

    A Beleza em tua doce graça penetra meu coração

    Apenas um eco no vento de uma doce voz feminina me embala

    Trançando meus cabelos com pequenos galhos de flores e coloridas folhas, arrastados no sopro íntimo dos teus acordes sonoros em graça

    Como és graciosa Querida!

    Em tua voz fui levado ao divino do meu SER

    Proclamou-se em mim uma semente do Sagrado e Eterno Contínuo ecoando em sua voz em beleza e graça

    Os empecilhos e agregados de minha falsa personalidade evaporaram pelo sopro gracioso do teu iluminado coração, em cura, beleza e graça

    Cante escrevendo para mim Meu Amor, no silencioso do meu ser agora em graça… sopre o teu vento em ondas sonoras, acompanhado pelos acordes percussivos dos grilos, pelos efeitos do rasgar da garganta da coruja em um misterioso grito supersônico, e pela beleza secreta e mística da melodia dos lobos uivantes ao te venerar em luz prateada no céu noturno

    Sento-me solitário na beira do rio Meu Amor… me leve em teus passos sonoros… reflita em minha pele a luz dos teus acordes em brilho e graça… fecho meus olhos com a cabeça erguida voltada para tua face lunar… cruzo minhas mãos abertas em reverência uma sobre a outra, levando-as calmamente ao meu peito, no lado do meu palpitante coração… na sinfonia noturna das pequenas criaturas… em um divino concerto místico onde toda natureza te acompanhava em beleza e graça… tua voz luz em ondas escritas me penetrou… e sozinho, sentado me ergui no doce luminoso bailado… e fui levado pelas cores do invisível sonhar… e na minha singela silhueta, em que fui ofuscado em seu canto de luminosidade coloridamente graciosa, me despi por completo de minha singular, pluralista e dualística personalidade masculina

    Tua mística voz foi jogada ao vento como o sopro no dente-de-leão

    Uma dessas sementes luminosas repousou em meu coração

    E lá nasceu a tua graça… divina… escrita… cantada

    No palco lunar de inefável beleza e bondade mística iluminada

    Assim, Meu Amor… sua voz cantou em graça meu coração

    Beijando com sua luz o meu masculino negro corpo terra, numa voz feminina branca e graciosa lunar canção

  • Labirinto

    O sonho era bonito. Estava deitado na praia e sentia o sol bater na face direita do seu rosto. Já ardia de tão quente, mas não era uma ardência ruim ou angustiante. Trazia prazer sentir aquilo e o barulho das ondas do mar se quebrando trazia a tão querida paz. Porém, como é por diversas vezes costumeiro nessa vida, o sonho acabou e tudo se tornou um pesadelo. O despertador tocou as 05:30 da manhã, sinal de que ele tinha que sair da sua sonhada praia e começar a se arrumar para ir ao seu odioso trabalho.
    Tudo ocorria exatamente como ele detestava nos inícios da manhã. O seu café estava velho e ele colocou o número errado de colheradas de açúcar. O pão já estava duro, mas não o suficiente para que fosse impossível de comer. A programação da televisão era um lixo e, mesmo que achasse algo bom, não daria tempo de assistir tudo. Era assim todas as manhãs, mas o horário já avisava que não tinha como ser melhor.
    O cotidiano dos seus tormentos se modificou assim que abriu a porta. Tudo estava escuro. Somente por causa de uma luz, que estava distante dele uns 50 metros, era possível perceber que o que levava até ela era um corredor. Ele continuava na beira da porta com a sua chave na mão. Tentava entender o que estava acontecendo. Tentando achar alguma explicação lógica para aquilo. Tentando se convencer de que tudo não passava de um sonho. Tentando não se frustrar. E tentando criar coragem para ir até aquela luz.
    Os seus primeiros passos foram feitos sem muita convicção, mas a curiosidade de saber o que tinha lá fez com que a coragem viesse lentamente e seus passos foram se tornando mais firmes. Chegando lá, percebeu que tinha algo escrito na parede iluminada. “Bem-vindo ao meu labirinto! Direita ou esquerda? Direita.”. O que já era confuso para a sua mente se tornou ainda mais depois dessa frase. A única coisa que tinha convicção de que sabia era o que era um labirinto, mas não sabia de quem era ou de que maneira tinha parado ali já que sabia que não existia nenhum na porta de sua casa quando foi dormir. De qualquer maneira, seguiu para a direita com calma e sem nenhuma coragem.
    As paredes eram brancas e feitas com grandes tijolos de concreto, mas já estavam sujas e com trepadeiras crescendo nelas. Via a sua sombra o acompanhando apressadamente enquanto andava. Não havia luz o suficiente para que uma sombra fosse gerada. Percebeu isso quando um rato passou correndo por ele e nem sequer gerou uma imagem borrada. Quando chegou em uma bifurcação, continuou para a direita assim como ordenara o aviso. Finalmente, viu uma luz no final do corredor em que estava. Seguiu apressadamente, ansioso para saber o que estava escrito. Enquanto andava pensava somente em coisas boas, acreditando que podia ser uma saída ou pelo menos uma explicação do que estava acontecendo.
    O branco da parede começou a ter respingos de vermelho. Os respingos viraram manchas. A sua sombra se ajoelhou em prantos, ele não. Os seus passos estavam mais lentos como se quisessem impedir que os seus olhos vissem uma desgraça. Como se pudessem ver o futuro. E como se antecipassem a dor.
    Antes de ler o que estava escrito, viu o seu gato de estimação, chamado Simão, caído no chão. Ele repousava sobre o próprio sangue retirado por meio de uma degolação. Ainda dava para perceber o rabo com os pelos todos eriçados, mostrando que ele sofreu e sentiu medo em seus últimos minutos de vida. Assim que a sua ficha caiu, o que demorou poucos segundos, sentiu como se uma adaga tivesse sido fincada no peito. Não acreditava que, depois de passar doze anos ao lado do seu gato, ele teria que o perder dessa maneira, sem conseguir entender nem onde está e o porquê de estar lá.
    Quando finalmente conseguiu fazer com que as lágrimas saíssem da frente dos seus olhos, leu o que estava escrito na parede. “Eu disse direita? Esse nunca é um bom caminho, mas fique com esse presente. O reencontro com um animal de estimação é sempre emocionante. Siga ao norte e depois vá para a esquerda.”. Ele decidiu ir para o norte já que essa era a única opção além de voltar, mas viraria a primeira a direita que visse.
    Assim que começou a seguir pelo caminho planejado, viu que a sua sombra estava indo para trás. A sua mente estava perplexa com aquilo que via e isso só aumentou quando viu uma outra passar pela parede logo em seguida. Olhou para os lados e viu mais umas outras três sombras fazendo o caminho contrário. Decidiu ignorá-las, acreditando que esse seria somente outro truque do labirinto para desviá-lo do verdadeiro caminho.
    Como prometeu para si mesmo, virou a primeira a direita. O caminho parecia ser longo já que caminhava durante horas e não chegava a nenhuma parede que o impedisse de continuar. A sua mão já estava muita arranhada por ter que andar encostando na parede uma vez que a iluminação ia diminuindo lentamente e quase imperceptivelmente. Para ele, o labirinto insistia em tentar o convencer a seguir o outro caminho. Via diversas sombras voltando ou entrando em diversas bifurcações que levavam ao norte ou a noroeste, mas continuava firme em sua promessa.
    Finalmente chegou no terceiro aviso. A luz estava fraca e tremula. A escuridão a sua volta não o permitia ler direito. Quando olhou para a sua esquerda, viu diversas sombras parando uma atrás da outra. Não conseguia ter um bom pressentimento daquilo. Assim que a última sombra parou, todas passaram a correr em círculos. As sombras começaram a sair das paredes. Ele sentia o vento delas correndo em volta dele e o impedindo de respirar fundo. O seu coração disparou enquanto gritos estridentes de sofrimento começavam a ensurdecê-lo. Os seus olhos latejavam com o som e suas mãos foram instintivamente para os seus ouvidos, mas os sons já estavam dentro da sua cabeça. A dor que as sombras pareciam sentir invadiram o seu corpo e se concentravam em seu peito. Parecia que todas as angústias, sofrimentos, medos e dores, tanto físicas como emocionais, que as sombras sentiam estavam sendo transferidas para ele. A sua mente não aguentava aquilo e ele implorava para que a morte chegasse logo. O seu sofrimento deve ter durado horas ou pelo menos era isso que o seu cérebro estimava.
    A dor não cessou instantaneamente, mas foi reduzindo aos poucos, igual aconteceu com as luzes enquanto caminhava. No momento em que tudo se tornou suportável, viu que a luz presa na parede estava mais forte e com brilho firme. Leu cada palavra muito lentamente para tentar driblar a dor e impedir que ela não o faça entender a mensagem corretamente. “Você é retardado ou só não passou do maternal quando ensinaram direções? Eu falei esquerda e é melhor seguir as minhas ordens.”. Quando leu a palavra “ordens”, uma raiva subiu a sua cabeça que foi o suficiente para ignorar todo o resto da dor que sentia. Ele adorava desafiar autoridades e achava que, se continuasse para a direita, conseguiria a liberdade, então assim foi como ele fez.
    Ele foi um pouco para o norte e logo virou à direita. A dor misturada com a raiva o deixou com um aspecto de maluco. Às vezes, enquanto caminhava, sorria do nada com algum xingamento aleatório ao labirinto e seu criador como se estivesse prestes a ganhar uma luta difícil. Os seus passos agora eram inegavelmente firmes e sem nenhuma hesitação. Não havia muitas sombras a sua volta, somente três.
    A caminhada até o outro aviso não durou tanto como a anterior, mas ainda assim foi longa. Os seus pés já doíam, principalmente porque os sapatos que usava não eram feitos nem mesmo para caminhadas curtas. Mesmo assim conseguiu chegar ao quarto aviso e, no momento em que estava perto o suficiente para ler, se ajoelhou para que conseguisse descansar um pouco. Na parede estava escrito: “Você está saindo da área de influência dos meus poderes. Parabéns,”. Depois de ter sentido medo, tristeza e dor, esse foi o primeiro aviso que trouxe alguma felicidade e esperança. Pelo menos foi isso o que ele sentiu na primeira parte, mas a vírgula no final da frase o deixou apreensivo. Queria acreditar que era só um descuido numa pichação apressada. E, como quis acreditar dessa forma, assim acreditou e decidiu continuar o seu caminho para direita.
    Não demorou muito para encontrar outra bifurcação na sua tão querida direção. Depois de ter dado uns vinte passos, o caminho que estava atrás dele se fechou e o chão cedeu até a metade dos seus passos. A luz que iluminava aquelas áreas só durava o bastante para que ele visse toda o chão ceder com um estrondo aterrorizador e sumir diante dos seus olhos, se tornando nada além de escuridão. A cada passo que dava para frente, um pouco mais de chão era perdido atrás. Não tinha percebido antes, mas agora só tinha uma única sombra o seguindo, somente a sua.
    Os seus passos estavam tão lentos como os de um velho de noventa anos. Queria correr até o aviso, mas os seus joelhos estavam travados de medo. Queria acreditar que continuava no caminho da saída, porém não conseguia se convencer de que a liberdade tinha um caminho tão amedrontador. Os seus sorrisos desafiadores agora não passavam de um rosto que se segurava para não chorar com as suas pálpebras e lábios tremendo. Toda a força que fazia não foi o suficiente para segurar as suas lágrimas enquanto lia o aviso. “, você cavou a sua própria cova, então agora aceite a sua morte. Nos vemos no inferno.”. No exato segundo em que os seus olhos viram o ponto final, todo o ar a sua volta sumiu. Não havia mais luz no labirinto enquanto ele sufocava até a morte. Em seu sofrimento, os seus olhos pareciam vazios, embora seu coração estivesse cheio de decepção.
  • Lua de Meu Existir

    Minha Amada que fertiliza o meu existir.

    Em plena beleza me perco em teu reflexo deitado sobre as águas escuras de minha alma.

    Mesmo com toda calma e mansidão de tua noite em que te revelas nua, cheia e completa.

    Teu reflexo iluminador é tremulo, desconexo e vibrante, intercalado por linhas negras que desconfiguram em saudades meu pobre e solitário coração de poeta.

    Ao subir lentamente cheia, contemplo a tua chegada no meu inabitado lago interior.

    Ao passo que te levantas se abre vagarosamente uma estrada de luz ‘brancamente’ prateada em meu encontro.

    Ó! Doce fonte de luz que me intensifica… ainda que eu possa ser tocado por tua energia iluminada, estás tão ‘lusitaneamente’ longe de mim…

    De súbito me imagino a caminhar em tua prateada e tremula estrada, então, poder ao menos abraçá-la calorosamente, enquanto ainda não flutuastes em mágica para o mais alto dos céus estrelados… tua influência elementar do Sagrado Feminino em mim, desperta a Consciência Mística da intuição emotiva do meu ser, quebrando os meus viciantes padrões interiores em ciclos de transformações ascendentes e decadentes de toda uma existência apaixonada.

    Como eu te amo, Meu Amor!

    Ó! Fruto do meu desejo insaciável…

    Sobes agora livremente… e tua estrada de luz desaparece nas águas de minha emoção, e agora debaixo de tua luz prateada, volto a minha singularidade pequenina e frágil, onde realizo o meu ritual de amor à tua Lua Cheia embelezada em sua aureola majestosa repleta de teu amor.

    Nisso, me vejo sendo irradiado pela luz azul de sua aureola… meu corpo negro encandece inflamado pela sua onda radiativa, tornando-se fosforescente, atraindo toda espécie de pequeninos seres noturnos em divindade graciosa. Pela tua dádiva amorosa, tornei-me um ser luminescente, e… quem me dera ser carregado pelos pequenos vaga-lumes que agora me cercam, no único amoroso objetivo de poder pousar em teu grandioso ventre oculto nos teus misteriosos segredos noturnos.

    Tua pele branca me seduz, teus cabelos de nuvens negras a flutuar me enfeitiçam. Como és bela! Como sou teu!

    Embora possa, eu, ser um diurno ser flamejante, de que me vale toda essa potência… se em minha forte luz te ofusco, ao ponto de nem eu mesmo poder contemplar a tua clara beleza? Estou preso na majestade de mim mesmo, e nisso, sigo meu solitário baile diário.

    Ó! Meu Amor, meu doce Amor… Meu Encanto! Como te imagino e me imagino juntos… ao te contemplar no silêncio de uma tarde em que apareces repentinamente no reflexo espelhado no limpo céu azul… mas, esta linda visão que tenho no dia, bela e cheia de graça… apenas se faz ecoar, ecoando a ecoar… a ecoar.

    Em tua face clara, lusa e juvenil me vejo iluminar. Abrindo meus olhos… retirando de mim as impregnações infrutíferas e residuárias de meu sofrido passado e presente agoniante tedioso.

    No meu mágico ritual… derramo as águas de aquários em uma bacia de prata e deixo exposta à luz de tua Lua Cheia, para que parte de Ti possa se desprender e lá habitar. Ponho minhas mãos sobre as águas e o recipiente, e faço riscos imaginários mágicos escrevendo palavras místicas de amor… em oração Celta na alta voz… dizendo:

    — Ó! Sagrada Mística Sabedoria Lunar… que tua luz fêmea caia sobre essas águas, envolvida na Magia da Prata e, de suas perenes divindades noturnas do Argentum branco e brilhante. Invoco sua áurea iluminada que reflete o poder divino de tua purificação e amor. Ser gigantesco feminino que controla todas as forças ocultas das águas naturais, que constitui todos os seres orgânicos e abarca os seres inorgânicos… se faça aqui fluidamente presente no Sagrado Agora… vem, e me Ilumina!

    Ao terminar meu mágico culto de oração… vi sua luz em forma feminina descer em baile e encanto, se deleitando nas águas… transformando-as em plasma prateado. Ali mesmo sob a luz de tua magnífica e sagrada presença me despi de minhas rudimentares vestes, assim como, também, estavas despida dos teus véus de nuvens negras. Derramei o teu leite prateado em meu corpo nu… pude te sentir me tocando todo e por completo, onde me acariciava com beijos de uma paixão apaixonadamente purificante… a este tocante… me perdi em fluxos energéticos de amor que me fazia flutuar e ecoar… ecoando a ecoar.

    Quando regressei a mim… já tinhas desaparecido, restando apenas a lembrança do teu beijo, teu calor, tua sensação purificadora e teu carinhoso amor, e teu céu noturno no vazio estrelado.

    Minha Amada… silenciosamente fechei meus olhos em reverência, e, de mim, restou lhe dizer:

    — Te amo… Te amo… e Te amo!
  • Lua Escura

    Querida minha

    Hoje passeio em devaneios pela noite escura a sua procura
    Hoje não me contemplaste com tua bela face iluminada, e triste caminho por essa trilha incerta do existir sem ti

    Apenas um vazio em meu coração palpita reclamando a sua presença
    Na tua ausência percebi que o céu era vasto e imenso de estrelas a cintilar
    Porém, vazio do mistério e do segredo de te amar

    Minha Querida
    Onde foste que não me levaste
    Por que de mim te ocultaste
    Sabes que te amo, e sem ti, sou cego em meu solitário noturno caminhar

    Triste, sento-me novamente na beira do meu interno lago, fecho os meus olhos no escuro do infinito abismo de escuridão… de que me importa os olhos abertos se não posso te contemplar fora… volto-me para morada do coração, e lá te imagino a me iluminar com teu claro sorriso.

    Te vejo nos meus amorosos pensamentos deitada sobre o teu céu escuro na cama ilustrada de planetas errantes e estrelas, em pequenos passos lentos e silenciosos vou ao teu encontro, e vejo que dormes encoberta pela sombra da terra. Apenas silenciosamente te contemplo, admirando o teu sono profundo… estou aqui contigo Meu Amor

    Em minha meditação adentro em teus mágicos sonhos… como estás bela a dançar com tuas guirlandas de estrelas. De repente, nossos olhos se encontraram, e não entendi porque ficaste estagnada com minha sutil presença, e lágrimas vi cair em seu lindo rosto que se evaporaram em uma cortina de serenos noturnos… de súbito repentino, me vejo te abraçando… e novamente nada entendi, porque evaporaste súbita e repentinamente dos meus braços como uma gota d’água a tocar uma superfície aquecida… e solitário me vejo, também, chorando, culpado por interferir em sua intimidade.

    Ó! Meu Amor… que maldição é essa que nos prende ao estar separado e nos separa ao estar preso?

    Te vi triste Meu Amor, e em tristezas doloridas estamos
    Dançamos juntos de mãos dadas ao som dessa música melodiosamente triste
    Nossos corpos chorando se juntam embalados por essa solidão
    Que segredos o seu coração guarda?
    Que mistérios esconde a tua face oculta?
    Do que sabes que não sei!?
    Por que tamanho silêncio?
    Não percebes que estou aqui para ti!
    Por que me abandonaste hoje?

    Somos tocados pela dor da separação…, mas, haveria tanta beleza se estivéssemos agora juntos?
    O que separa o Criativo do Receptivo senão a beleza do caminhar separado, ao se unir no imaginário! Então, caminhemos eternamente juntos com nossas mãos dadas na doce solidão a imaginar

    Quero te ouvir, que tristeza melodiosa canta seu coração
    Neste céu silenciosamente noturno, em que ansiosa volta tua face iluminada para baixo… o que pensas?
    Quero te compreender… me fale de tua tristeza, pois sei que a oculta quando enxuga suas lágrimas rapidamente em gotículas de sereno

    Por que só te revelas para mim em parte, se para você sou o todo de tudo em toda face?

    Te vi sentada no trono da noite
    Suas mãos acariciavam o rio do Nilo celeste
    E sentada sobre os seus calcanhares na taça da flor de lótus, o rio luminoso em que tocas arrasta infinitas flores estrelares
    Estás festivamente adornada de luminescências e cintilantes aureolas Meu Amor

    Vi uma beleza sobrenatural no seu amável rosto…, e, uma tristeza oculta… um mistério!
    Em sua majestade vejo que rege a Estrela Mágica, e oito vezes com sua foice crescente a decepaste do noturno céu enviando-a para mim, como a linda Estrela da Manhã. Porém, oito vezes com sua foice minguante, novamente decepaste do céu agora diurno, tomando-a de volta para si, como a linda Estrela Vésper… Essa Estrela é a nossa Mensageira do Amor… de nosso solitário Amor

    Dorme tranquila Meu Amor
    Em sua luz encoberta de encantamento na paz de tua força interior

    Sinto seu amor… Meu Amor… pleno de força plena
    Sua atmosfera mágica me envolve no frescor de seu sereno carinhoso pelo qual solitário me condena

    Hoje! No breu da noite
    Estudarei em meditação as tuas leis celestes
    Na sombra terráquea em que dorme te vestes

    E, nesse céu em que hoje de mim te ocultas
    Esperarei no amanhã a sua doce poesia
    Pelo qual me revela a sua face oculta
    Na companheira doce tristeza do meu amargo solitário alegre dia

  • LUNA .

    Olá,meu nome é Kieran Luna Bellini. 
    Tenho a sensação de que te conheço...bom ,preciso te avisar que minha história não é sobre como eu queria morrer nem como foi a minha vida mas como eu te encontro nela.
    Não prometo romance nem acasos,tudo aqui é preciso e real muito real,o mundo que você conhece nunca mais será visto com os mesmos olhos.
     
     
    " -  Apagar as luzes para mim não é uma 
    escolha e sim minha realidade."
     
                               

    PRÓLOGO

     


    Rio de Janeiro,2001

    Apagar as luzes para mim não é uma escolha e sim minha realidade.
    Abri os olhos e vi somente uma imensa escuridão,sem saber ao certo o que tinha acontecido só sentindo meu corpo inerte,frio e molhado ,mas tenho que te contar o que aconteceu antes de você me conhecer aqui.
     
    - Kieran ! Acorda que preciso adiantar as coisas para amanhã . - Camila ,gritou.
     

    Meu nome é Kieran,tenho 8 anos e nesse exato momento te digo que minha melhor parte da vida é quando venho para a casa da minha irmã Camila .
    Na manhã seguinte será o aniversário da nossa tia então era correr contra o tempo para ajeitar tudo e eu amo essa parte!

    - A Triz vai dormir aqui pra nos ajudar ,e os meninos estão te chamando lá fora . - Minha irmã disse,como sempre tudo pra última hora.
    Comecei a organizar as coisas quando vi Tiago e Jean chegando.
    A amizade é uma coisa muito louca,por exemplo, minha amizade com o Tiago começou no alto de um monte de barro em frente a casa da minha irmã,ele me empurrou,me sujei e amizade feita. Desde então nunca mais nos desgrudamos,já o irmão dele Jean foi diferente...não sei se existe amor a primeira vista mas se existe ele foi meu primeiro amor porém meus pés são bem no chão e me contentei com a sua amizade.
    Final da tarde chegou e a fome bateu como sempre,me despedi dos meninos e fui correndo lanchar e esperar a minha prima Triz chegar.
    30 minutos depois ela chegou, era muito bonita,alta,13 anos e cabelos levemente ondulados e que eu saiba já tem lá seus namoradinhos e desde que chegou aqui não desgruda do celular.
    - Oi prima! Você está enorme,uma mocinha! Estava com saudade. - E eu super animada pra brincar e aprender crochê que ela prometeu me ensinar.
    Estava aqui na casa da minha irmã mas meus pensamentos estavam na minha casa,meus pais brigam muito e eu fico muito preocupada,vir pra casa da minha irmã é uma válvula de escape.
    - Ky ,vem jantar e depois disso as duas podem arrumar a cama de vocês na sala,aqui estão os lençóis,travesseiro e passa o repelente que tem muito mosquito- Gritou ,Camila.Ela arrumou tudo e foi deitar.
    Esperei a Triz terminar de tagarelar no celular,eu quando tiver meu namorado acho que não vou falar tanto assim no celular,que tanto papo é esse,prefiro minha tv globinho. Enfim ela desligou o celular,arrumamos as camas e eu só queria uma boa noite de sono e aproveitar o dia seguinte.
    - Boa noite Triz . - me virei e fechei os olhos esperando o sono vir ,quando estava quase pegando no sono senti uma mão passeando no meu corpo e na hora parasilei. A mão foi descendo até chegar no meu bumbum e eu queria gritar a irmã mas não saia nada ,e comecei a sentir muito medo.
    - Você gosta disso?. - Triz! mas porque ela está fazendo isso? Eu quero correr daqui mas não consigo fazer nada a não ser esperar ela terminar e ir dormir.
    Fiquei ali parada de olhos fechados suando frio esperando que ela iria parar mas não,ela continuou,me virou de frente pra ela deitada e tocou minha parte íntima,muito rapidamente apalpava os meus seios como se fosse algo normal e eu permanecia ali travada sem saber o que fazer mas eu sabia que aquilo que ela estava fazendo era errado.
    - Agora não se mexe ,eu já vou terminar- Ela falou e subiu em cima de mim esfregando sua virilha na minha muito rápido segurando meus seios,senti muita ânsia de vômito mas fechei os olhos,senti sua boca encostar na minha e tranquei a boca para não receber beijo,que nojo! Porque ela fez isso?.
    Não sei quanto tempo passou mas eu só pedia muito que terminasse ou que minha irmã escutasse os grunidos dela e viesse me ajudar mas isso não aconteceu ela terminou e eu só consegui falar .
    - Amanhã eu vou contar tudo a minha irmã.
    - E você acha que ela vai acreditar em você? Todos não vão acreditar,minha mãe amanhã vai chegar é a sua também! Acha que a minha tia vai acreditar? Vai ser maior escândalo,alguém pode até morrer! Você quer que sua mãe passe mal?
    O que eu fiz foi porque te amo muito mas não vou fazer de novo,amanhã você vai ficar quieta senão eu vou contar do meu jeito e você quem vai apanhar
    Chorei em silêncio tentando entender o que tinha acontecido e me sentindo muito culpada. Não consegui dormir,apenas cochilei querendo muito que tivesse sido um pesadelo.
    Amanheceu,ela levantou como se nada tivesse acontecido,arrumei os lençóis da cama improvisada,lavei o rosto e tentei encarar a minha irmã pra tentar dizer tudo que tinha acontecido mas não consegui. Todos chegaram,o povo aqui de casa é animado,tudo é churrasco! Segui aquele dia como se não houvesse acontecido nada.
    Tudo correu bem e todos se divertiram,eu brinquei e não consegui dizer nada. A partir desse dia eu nunca mais fui a mesma.

     
    1∆
    SOLAR

    Cansada. Me debrucei na mesa e apoiei a testa no pulso,não tinha dormido direito a noite inteira pensando em como iniciar esse ano.
    Já fazia 3 anos que eu havia me mudado para Portland,minha mãe decidiu vir pra cá já que minhas tias moravam aqui..depois que meu pai faleceu não havia mais motivos para ficar no Brasil.
    Até agora estava em modo automático tentando processar os fatos,a proposta de trabalho da mamãe,o falecimento do papai...esse segundo fato de alguma forma me trazia um certo alívio ,depois de tudo que aconteceu seria um descanso pra todo mundo e particularmente não sentia falta dele. Ele já não morava mais com a gente depois de tentar matar mamãe,vamos dizer que Alexsander precisava urgentemente de um psiquiatra mas  dizia não precisar,acabava que eu e mamãe pagamos o pato juntas e isso me irritava ao ponto de não querer mais ficar na mesma casa ,então fiquei morando em um quartinho nos fundos.
    Observando como ainda não tinha conseguido sair do poço,não me sentia muito eu e me sentia tão só mesmo com pessoas a minha volta,isso me fez lembrar quando conheci Skylar,sorri e voltei a me escorar na mesa pra acompanhar a minha lembrança.
    Eu estava chegando na cidade e não conhecia ninguém,respirei fundo e caminhei até o pátio da escola olhando toda aquela muvuca que me causava fobia,passei por todo mundo o mais rápido que eu pude quando alguém me jogou na parede.
    - Ei! Não olha por anda?. - Falei esfregando meu braço inconscientemente  como se a dor fosse passar. Quando me virei pra ver quem era a maluca que quase arrancou meu braço,me deparo com uma menina de cabelo preto e curto na altura dos ombros,fui descendo o olhar e  cheguei no seu rosto que exibia um sorriso debochado juntamente com uma maquiagem elaborada demais pra ser usada de dia...
    - Não? E tá me olhando assim por que? Vai me beijar? Sei que sou linda e etc mas te manca!
    Fiz um "O" com a boca enquanto a metade do colégio nos observava,ela falou tantas palavras ao mesmo tempo! Como alguém conseguia falar tanto em tão pouco tempo? Não queria confusão logo no meu primeiro dia então resolvi deixar pra lá tratando logo de me resolver com essa estranha.
    - Tudo bem, não está doendo mesmo. A propósito meu nome é Kieran Luna e não,não quero beijar você. - Torci o nariz e fiz uma careta pra tentar descontrair.
    A observei e vi sua carranca imitando algo como uma vilã,ela parecia ser muito teatral. Fiz sinal de que iria continuar meu caminho já que ela não se identificou,quando sinto um catucão.
    - E o meu é Skylar Kanda e sobre me beijar realmente  não deveria,é um vício. Sinto que vamos ser melhores amigas,garota! Unha e carne com toda a certeza,mas sou vegetariana só pra constar.
    Sai rindo da minha lembrança e vendo que a vida não tinha sido tão ingrata pra mim ,de alguma forma pelo menos Skye eu consegui ter na minha vida.
    - Cara,você devia relaxar. - Skyie falou baixinho para o professor não escutar. Tomei um susto saindo dos meus devaneios .
    - Skylar Catherine Kanda se você me assustar mais uma vez eu juro que te mato. -falei dando pequenos tapas no rosto pra tentar acordar.
    - E se você me chamar meu nome todo de novo eu te enterro nos fundos do Forest Park.
    Revirei meus olhos por causa da ameaça da Skyie e tentei me concentrar na aula do Professor Hall ,quem sabe não esqueceria toda aquela história.
    Hoje o dia se arrastou, não pensei que iria fazer tantas amizades mas devo ter um ímã pra gente maluca porque Skylar ,Evrett ,Deon e Mayo não eram normais . Em uma semana estavam me colocando em cada furada...vivendo perigosamente em Seattle. Skye era a pior mas suas intenções eram sinceras porque queria me animar então relevava.
    Estudava em casa e minha mãe achou que seria melhor interação humana para Ky,assim ela disse dando pulinhos pela casa.

    Minha cabeça estava muito pesada então resolvi ir pedalando ao Cook Park,mandei mensagem para mamãe e no grupo de amigos.
    Cheguei ao parque e estranhamente estava vazio então deixei minha bicicleta encostada na árvore e andei até o lago.
    - Você tem sérios problemas ,sabia?. - Disse Skye quase me fazendo cair dentro do lago.
    - E você é outra que tem uns bem gigantes,quer me matar de susto? Por pouco não tomei um banho de graça agora. - Peguei uma pedrinha e joguei no pé dela .
    - Ai! Eu não quero te matar mas você pelo visto...quando vi sua mensagem corri o máximo que eu pude, veio fazer o que aqui nesse breu?
    Cheguei mais perto do lago novamente,na verdade nem sei o que fui fazer ali... então algo na minha cabeça começou a apitar, será que ela tinha razão? Eu estava pensando em me matar?Olhei para a Skyie que estava me olhando preocupada.
    - Eu não sei,acho que só queria ficar pouco sozinha pra pensar. - Balancei os ombros como quem não quer nada,mas não sentia muita segurança no que estava falando.
    - Então dá próxima vez pense no seu quarto amada! Eu não sei se você percebeu mas eu não sou atleta pra ficar correndo a cidade inteira atrás de você,sossega esse seu bumbum senão eu espeto ele. - Falou colocando a mão na cintura e quase me engolindo viva.
    Ri,ela é definitivamente a melhor amiga que tenho nesse momento mas o sorriso não durou muito tempo,tinha que dar um jeito nisso.
    - Você vem? Eu marquei com os meninos na lanchonete Bar da Darla.
    - Pode ir,daqui a pouco chego lá. - Não muito animada pra ir mas se não fosse eles iriam me encher a semana inteira.
    - Ok , então...eu apostei uma cerveja que você iria então não me decepcione.
    - Não acho que você deveria beber , não está cedo demais?. - Levantei a sobrancelha ,não sei como alguém consegue engolir isso.
    - Abri aqui minha mochila por favor?
    - Pra que?. - Abri achando que era algo urgente .
    - Pra saber aonde eu coloquei aqui " Preciso da opinião da Kieran".
    - HA HA HA,nossa você é muito engraçada. - Joguei a mochila longe.
    - Eu sou mesmo e você deveria me valorizar mais,te espero lá. - Ela pegou a mochila e saiu correndo em direção a estrada.
    Esperei ela sumir do meu raio de visão e continuei olhando na direção do lago,algo me chamou atenção...será que estava ficando louca? Eu juro que vi alguma coisa girando no meio do lago. Cheguei mais perto ,era como um imã que puxava cada vez mais pra perto.
    - Oi ,Luna. - dei um pulo correndo pra longe da margem tropeçando em uma pedra.
    - Quem é você?. - Ok! Eu estava falando com...o que era aquilo mesmo?.
    De repente começou passar o filme da minha vida inteira sobre os meus olhos,quando parou exatamente na parte que mais me machucava .
    - Já chega!. -Gritei com todas as minhas forças,senti as lágrimas queimando sobre as minhas bochechas e muita raiva.
    - Eu preciso que você esteja preparada para o que vai acontecer,aliás já está acontecendo só você ainda não percebeu criança,abra os olhos pra saber quem realmente é seu destino.
    Da mesma forma que a voz apareceu ,sumiu e eu fiquei ali no chão tentando decifrar o que tinha acontecido. Tirei a sujeira da roupa em vão e comecei a sair da floresta ,meus amigos devem estar preocupados.


    2∆
    PERSEGUIÇÃO

    Ainda estava atordoada com o que tinha acontecido, não sabia de quem era a voz , aliás queria me internar e usar uma camisa de força urgente. Caminhava em passos lentos até o bar aonde meus amigos me esperavam, entrei já me sentando e pedindo um copo com água bem gelada .
    - Kieran ?. - Deon me chamou com os olhos arregalados.
    - Ky? Mulher ! parece que você viu Pennywise!. - Skyie falou praticamente gritando chamando atenção do bar inteiro.
    Eu deveria ter ido pra casa,minha cabeça está latejando,coloco a mão na testa esfregando tentando me livrar em vão da dor chata que ficou morando ali.
    - Oi Deon e Oi pra você também Skyie, alguém pode pedir um saco de gelo por favor?. - Olhei para a mesa e vi faltando alguém.
    - Bellini está achando que isso aqui é o delivery do McDonald's? Gelo a vontade? Isso é um bar mas vou quebrar esse gelo pra você...nossa essa foi péssima. - Skylar pediu o gelo rindo do trocadilho péssimo que fez ,Skylar sendo Skylar.
    Olhei em volta e vi as pessoas animadas,algumas no canto solitário bebendo sua cerveja outros cantando no karaokê ,hoje definitivamente o clima estava estranho.
    - Aqui,gelo saindo para a garota da Floresta. - Skylar e sua língua grande.
    - Floresta?. - Deon falou virando pra mim preocupado.
    - Sim...eu resolvi dar uma volta no Forest Park.
    - Sozinha? Poderia ter nos chamado, até poderíamos ter ido a praia. - Assenti colocando o saco de gelo na testa .
    - Deon não se preocupe,eu estou bem. - Falei sem ter realmente certeza de que estava bem.
    - Esse papo tá muito down pelo amor,vamos! Estou aqui pra me divertir,anda logo Ky!. - Sky já levantou me puxando para o mini espaço para dança.
    Estávamos dançando,eu tentando dançar. Mayo e Deon já tinham encontrado um par pra dançar enquanto Skye se divertia dançando com Evreet e eu me vi dando passos soltos na pista sozinha quando vi uma menina entrando e então a observei.
    Os cabelos longos e cacheados ,o rosto sereno foi o que pude observar na iluminação do ambiente,tive uma sensação de dejavú...dei mais umas esticadas com as mãos e resolvi ir ao banheiro,quem sabe um pouco de água gelada no roso ajudasse,o dia estava sendo difícil.
    Entrei no banheiro que estava vazio...estranho,fui direto para a torneira lavei o rosto e quando abri os olhos vi uma menina me olhando,continuei o que estava fazendo tentando a ignorar.
    - Oi,sou nova na cidade...estou procurando a casa da minha tia e acabei me perdendo,poderia me ajudar?
    Olhei o rosto dela que me parecia familiar,de repente começou a crescer um sentimento de amizade mas ignorei ,pisquei os olhos sem entender nada mas a respondi.
    - Ah...claro,meu nome é Kieran...e o seu é?
    - Samantha Tala,mas pode me chamar de Samy.
    Ela estava sorrindo pra mim? E porque eu estava com esse sorriso idiota no rosto também?
    - Entendi...meus amigos estão lá fora ,quer me acompanhar? É bom que você já se enturma.
    Saímos do banheiro indo em direção a mesa esperando o pessoal voltar.
    Todo mundo voltou pra mesa desconfiados e curiosos com a garota do meu lado mas não fizeram nenhuma pergunta creio que eu que esperando alguma explicação educadamente...
    - E então? Quem é você?. - Skye falou dando uma golada na décima caneca de cerveja.Olhei pra ela emitindo um sinal de aviso com olhos,mesmo assim ela me ignorou e assentiu para a Samantha se explicar. Respirei fundo e cutuquei a garota pra falar logo.
    - Meu nome é Samantha,estou procurando a casa da minha tia...sou nova na cidade e meio que entrei aqui primeiro porque estou morrendo de fome e também preciso de informações.
    - E aonde entra a gente nessa história?
    - Skye!. - Todos falaram juntos.
    - O que? Só estou perguntando o óbvio. - Quando isso tudo terminasse eu iria dar uns cascudos nessa moça.
    Todos pararam para analisar com muita atenção Samantha que agora estava devorando um hambúrguer com um copo imenso de refrigerante. Esperamos ela terminar de comer pacientemente.
    - Como eu disse, preciso de ajuda para encontrar a casa da minha tia e a Kieran disse que vocês iriam me ajudar.
    Coloquei a mão no rosto já esperando a revolta de todos juntos,realmente procurar casas pela vizinhança não era o melhor programa da tarde.
    - Por mim tudo bem. -Mayo foi o primeiro a se voluntariar,claro que com as suas segundas intenções.
    - Nós também. - Deon e Evreet juntos concordaram só restando uma pessoa...
    - Bom ,não é o meu programa preferido mas se todos vão eu tenho que ir. - Skylar falou como se estivesse sendo levada para a guerra.
    Pagamos a conta,nos despedimos do Alfred o dono do bar e seguimos em direção a rua. Eu estava no automático até agora,não digerindo o que tinha ocorrido mais cedo. Coloquei na minha cabeça que aquilo foi fruto da minha imaginação misturado com meu desgaste emocional.
     - Kieran eu preciso falar com você urgente. - Samy me puxou pra perto da calçada enquanto os outros  do outro lado da rua tentavam descobrir aonde era a casa da tia Haven.

    Olhei de soslaio e vi Mayo,Deon e Evreet concentrados em achar o endereço por meio do gps ,mais a frente observei uma Skylar revoltada dando "pequenos" socos no celular e xingando palavras nada educadas então retornei meu olhar para a Samy. Não ignorando o que passei mais cedo,essa semana estava sendo complicada pra mim e com toda certeza quando colocasse meus pés em casa seria banho e cama.
    - Sim?. - Perguntei desinteressada,estava cansada.
    - Não existe tia Haven. - Ela disse mas eu só consegui arregalar os olhos e comecei a pensar se isso tinha alguma ligação com o que aconteceu mais cedo. Dei dois passados para trás e fechei os punhos involuntariamente.
    - Espera! Me deixa explicar primeiro. - Samy estendeu as mãos em sinal de rendição,então eu decidi manter aquela pequena distância para escutar.
    - Eu juro que quero entender e que seja rápido. - Olhei rapidamente de lado e vi que Skye nos observava mas estava dividida entre ver o que eu fazia e o celular ainda que parecia estar travado.
    - Me expressei errado,ela existe mas eu sei aonde ela mora. Inventei essa história porque eu precisava de um tempo pra falar com você,é sobre mais cedo..lembra?
    - Não do que você está falando,aconteceu exatamente nada. - Sai correndo em direção aos meus amigos deixando ela para trás e nem me atrevi a olhar.
     
  • Luz

    Boa parte das crianças tem medo do escuro e a grande solução para isso é uma luzinha pequena feita em diferentes cores para plugar na tomada. Assim era possível ter uma noite inteira de sono sem achar que tem algum monstro perdido na escuridão. Agora, no auge dos seus 29 anos, Manu não vê mais necessidade de ter essa luzinha já faz tempo, mas em uma noite observou o seu novo repelente elétrico de mosquitos e o pequeno LED vermelho que tinha para indicar que estava ligado. Ele projetava a sua luz para o teto e ela o encarava enquanto se lembrava da sua infância.
    Essa luz formava um círculo vermelho no teto, mas com o interior escuro como se fosse um eclipse solar dentro de sua casa, totalmente privativo. Aquela projeção de uns 30 centímetros de diâmetro era hipnotizante e ela o encarava com fascinação. Era lindo, embora um pouco assustador. Ao mesmo tempo que queria dormir e descansar do longo dia de trabalho, queria ficar ali olhando para cima enquanto viajava em sua mente. Talvez tenha se passado uns dez, vinte minutos ou talvez uma ou duas horas quando ela viu algo na escuridão do interior do halo vermelho. Eram pequenos círculos ovalados de um vermelho bem mais intenso. O topo deles foi lentamente se achatando, se transformando em olhos zangados, e logo abaixo um sorriso com dentes brancos e afiados começou a surgir como se a desejassem. Ela prendeu a respiração durante alguns segundos sem perceber e fechou os olhos com força, espremendo uma pálpebra contra a outra, para não ver aquilo que a sua mente implorava para não ser real. Enquanto isso o seu corpo foi lentamente deixando de sentir a sua cama e as suas mãos foram se fechando para tentar conter o medo. Se não bastasse o frio subindo pela espinha, ela sentia o frio se aproximar como se tivesse algo o empurrando para perto dela. Não aguentando o terror, o seu corpo se virou de lado, os joelhos começaram a ir em direção aos seus seios enquanto os seus braços abraçavam firmemente as pernas. De olhos fechados e em posição fetal, ouviu uma voz velha, que era aguda como unhas arranhando um quadro negro, sussurrando em seus ouvidos.
    — Esqueça o medo e venha brincaar! Não sabe brincaar? Fique traanquila, eu ditarei as regras antes de caada fase começar! A morte pode ser o prêmio ou a punição, vocÊ decide! — e a cada palavra e sílaba arrastada os seus olhos se apertavam mais e os seus braços abraçavam as pernas com mais força — Vaaamos, abra os seus olhos! Eu juuro que você não irá me ver!
    Ela queria acreditar que estava sonhando e que tudo não passava de um pesadelo produzido pelo seu doente subconsciente, mas não importava o quanto se esforçava em seus argumentos, a sua mente sabia que era real. E, por saber que era real, se obrigou a ter coragem e abrir os olhos, mas não sem relutância, é claro. Afinal, se visse uma sombra de algo assustador, a sua reação provavelmente seria fechá-los novamente. Mas não viu nada. Estava tudo completamente escuro, então foi se levantando aos poucos, tomando muito cuidado. Quando finalmente estava totalmente erguida, uma luz apareceu a uns dez metros de distância iluminando um grande pedaço de pedra de cor barrosa. Por não ver onde estava pisando, cada passo é tomado com um enorme cuidado, mas o destino era certo: a grande pedra. A uns três metros de distância, percebeu que tinha algo escrito nela como se garras tivessem arranhado a pedra em uns dois centímetros de profundidade, dando um aspecto sombrio a cada letra. Quando chegou perto o suficiente, percebeu que eram as regras do jogo que a criatura falou no início. Estava escrito: “Caminhe rápido porque na escuridão estarei lá, mas, se quieta ficar, viva continuará!”. Havia um X bem grande cruzando a palavra viva o que gerou um frio na espinha de Manu. Mas não teve tempo para refletir sobre isso porque, no momento em que terminou de ler, a luz que antes iluminava a pedra tinha sumido e a voz da criatura voltou a aparecer.
    — A primeeira faase começou! Siiga o vento, miinha criaança! — a sua voz ia engrossando à medida que falava, chegando a parecer um trovão no final — BOA SORTE! —  Com a explosão da última palavra, duas enormes bolas de fogo, parecendo uma mistura de pássaros com olhos gigantes, passaram dando um rasante em Manu que se lembrou a tempo das regras e se impediu de gritar de medo colocando as mãos na boca enquanto caia de costas no chão.
    Com a respiração acelerada, ficou encarando a direção em que foi o fogo alado, lutando para que o seu medo não enchesse os seus olhos de lágrimas. Quando conseguiu se acalmar um pouco, se levantou e começou a seguir o caminho da bola de fogo, mas, depois de apenas três passos, ela se lembrou das grandes asas do fogo batendo e se deu conta de que o vento delas era direcionado para trás. Já que a regra era seguir o vento, tinha que dar as costas para as imensas bolas de fogo que iluminavam o horizonte e seguir a escuridão.
    Não tinha nada para ver a sua direita, a sua esquerda e nem na sua frente. A sua única alternativa era se afastar silenciosamente da sua única, e ainda assim temida, fonte de luz. Quando até essa luz não era mais visível, começou a ouvir um zumbido distante. Era um ou mais insetos voando em sua direção, ela sabia disso. O zumbido era um som grosso que não se lembrava de ter ouvido em lugar algum, mas que indicava que não eram insetos pequenos. Ela não gostava de insetos, principalmente daqueles que voavam e eram totalmente imprevisíveis em seus movimentos. Sempre que via um perdido em sua casa, tentava matar o mais rápido possível mesmo que sentisse que não era o correto. Era o jeito que ela encontrava de se livrar desse problema, mas que agora não poderia fazer já que matar, seja lá o que estivesse vindo, poderia fazer barulho e violar as regras. Pelo mesmo motivo, teria que evitar correr ou se desesperar, então, nesse meio tempo em que os insetos estavam se aproximando, tentaria se acalmar o máximo possível.
    No momento em que o primeiro zumbido passou pelo seu ouvido, a sua respiração acelerou e teve que segurar a sua mão para que não soltasse um frustrado tapa em seu pescoço tentando acertar o bicho. Ao mesmo tempo, uma outra rocha passou a ser iluminada indicando o destino final dessa fase e as regras da outra. Mas essa pequena fonte de luz repentina também servia para ver como eram os insetos. O monstro que a atormentava queria que ela os visse. E ela viu. Eram aranhas de diferentes tipos, mas a maioria parecia com peludas tarântulas com dois pares de asas de cada lado e um afiado ferrão na sua parte traseira que soltava uma gosma nojenta e verde. Parecia uma junção de abelhas com aranhas que vinham para cima dela como se fosse uma presa fácil. Ao ver o que enfrentava, Manu só conseguiu colocar as mãos ao redor do rosto para diminuir o seu campo de visão enquanto os seus olhos lutam para não ficarem fechados, franzindo todos os músculos da testa.
    Mesmo sentindo uma mistura de medo de ser machucada e nojo daqueles insetos, continuou a caminhar no mesmo ritmo. Reto e constante, os seus passos pareciam ignorar os insetos. Pelo menos até o primeiro pousar em seu ombro, fazendo com ela sentisse todas as oito patas em sua pele e a luta delas para ficarem estáveis enquanto Manu mexia os seus ombros para frente e para trás se esforçando para que aquele monstro minúsculo voltasse para o ar. Mas esse monstro decidiu que não sairia de lá tão fácil e rapidamente fincou o seu ferrão traseiro no ombro dela enquanto as presas da frente mordiam o seu pescoço, causando uma dor causticante. A primeira reação de Manu foi olhar para cima como reflexo da dor e soltar alguns xingamentos em sua mente, mas logo pegou o inseto com a mão e o jogou longe, retirando a força suas presas dela e causando mais dor. O local agora latejava e ardia, dificultando o seu raciocínio. Os seus pés pareciam fazer mais esforço para dar cada passo como se estivesse entrando em um lamaçal, a obrigando a diminuir o ritmo de caminhada. Por causa disso, mais e mais insetos começaram a pousar nela, a ferroando e mordendo incessantemente. Os seus dentes estavam quase se quebrando com a força que fazia para manter a boca fechada e não emitir nem sequer um “aí”. Ela até tentava retirar algumas das aranhas com as mãos, mas eram muitas e os seus músculos se contraíam a cada nova picada. Em uma dessas, não conseguiu se aguentar e caiu no chão, continuando a sua jornada engatinhando enquanto as suas costas se cobriam de aranhas. A sua visão já não condizia com a realidade, vendo a pedra se aproximando e afastando sucessivamente. Ela lutava para continuar se movimentando, levando cada músculo ao seu esforço máximo. Até que a sua panturrilha não aguentou mais e causou uma dolorosa cãibra. Com a sucessão de dores latejantes que pareciam emanar de todo o corpo e subir até a sua mente já tonta, não aguentou mais engatinhar e caiu no chão. Ficou deitada no chão por alguns segundos, talvez tenha até desmaiado, e os insetos começaram a cobrir cada parte do seu corpo, inclusive o rosto. Em um certo momento, quando uma das aranhas mordeu a sua língua, ganhou um pequeno lampejo de força que a permitiu começar a se arrastar, se impulsionando com o braço esquerdo. Ela não sentia mais nada em seu corpo e nem sabia se os insetos continuavam em cima dela, só tentava continuar enquanto ainda estava consciente. E, logo quando estava com a visão completamente turva e sentindo a sua cabeça caindo no chão, levantou o braço direito, encostou em uma rocha e desmaiou.
    — Acoorde, minha querida dama! — sussurrou a criatura despertando pequenos reflexos nas pálpebras de Manu — Você aiinda está viva, mas só por sorte do deestino. Mais alguuns segundos e vocÊ seria minha. Minha, minha, minha, vocÊ será miinha! MAS não sou cruel, vejo que está debiliitada, então deixarei você repousar... Você ficará bem quietinha, sem se mover enquaanto o caminho vem até vocÊ! — Manu, que ainda estava zonza e dolorida, já tinha conseguido ficar de joelhos em meio a escuridão e percebeu que mais uma fase tinha começado quando viu um ponto de luz brilhante no horizonte.
    Ainda respirando com dificuldade, tentando assimilar tudo o que aconteceu e tudo o que ainda irá acontecer, Manu ficou parada enquanto encarava aquele ponto de luz que parecia uma estrela distante, piscando e oscilando. Ela queria coçar os olhos para ver se enxergava melhor, mas entendeu as regras dessa fase. Podia não estar entendendo tudo, mas sabia que não podia se mover muito nem mesmo com sabe se lá qual armadilha a criatura colocar. Alguma coisa iria vir, tinha certeza disso, embora não quisesse pensar muito para não sofrer por antecipação mais do que já estava sofrendo fisicamente. Ia aproveitar esse tempo para se recuperar, mesmo que fosse bem pouco, então fechou os olhos para adiar ao máximo o momento de sofrimento.
    Ela continuava tentando adiar e ignorar tudo quando algo peludo passou pela lateral da sua perna direita. Ela fechou os olhos com mais força quando sentiu algo rápido e pequeno subir em sua coxa com as suas seis pequenas pernas. Mas não conseguiu mantê-los assim quando ouviu um forte bater de asas e, pensando que podia ser novamente as aranhas, teve que ver o que tinha a sua volta. A sua primeira visão foi do chão e teve que segurar o seu corpo para não ter nenhum reflexo. O chão era um tapete de baratas e ratos, não dando pra ver nem sequer um milímetro de terra, piso ou seja lá que estivesse embaixo dela. Os ratos tinham tufos de pelo cinza encardido espalhados pelo seu grande corpo e os seus olhos vermelhos iluminavam os seus enormes dentes. Já as baratas eram marrons, beirando ao preto, com uns 10 centímetros de corpo e que não paravam de mexer as suas antenas enquanto as suas asas ficavam ameaçando voar. Quando finalmente percebeu que algumas lágrimas pareciam estar presas na parte de trás dos seus olhos e que não iriam cair, teve coragem de parar de encarar o movimento aleatório dos ratos e baratas. Então Manu olhou para cima sem movimentar a cabeça e viu a criatura que batia as asas. Era um majestoso e nada assustador beija-flor extremamente colorido, tendo penas que iam do roxo, passavam pelo azul e terminavam no verde. Ela encarava os seus olhos e ele os dela, a deixando imersa nesse pequeno campo de visão como se a hipnotizasse, mas as suas poderosas asas começaram a levá-lo para a direita até sair do campo de visão de Manu. Agora ela só conseguia ouvir o som alto de suas asas batendo bem próximas ao seu ouvido e o seu coração parecia tentar igualar os seus batimentos com a impossível velocidade daquelas asas. A sua respiração ficou curta e acelerada, temendo o que vinha pela frente. E o seu temor se confirmou quando começou a sentir algo longo, fino e levemente úmido entrando e saindo de seu ouvido em uma velocidade assustadora como se estivesse escavando, procurando alguma coisa enquanto causava uma agonia dolorosa. Com as lágrimas caindo dos seus olhos e lutando contra as contrações involuntárias de seu abdómen, forçou os seus olhos a ficarem abertos para tentar se concentrar em alguma outra coisa. Mas, assim que olhou para baixo, começou a ouvir um zumbido agudo em seu ouvido que causava uma forte dor em sua cabeça, tendo que se esforçar para não entrar em posição fetal. No mesmo momento, viu as baratas subindo em seu corpo até a sua cabeça, tentando forçar uma passagem pela sua boca, nariz e olhos. Seu corpo tremia com a dor e agonia quando os ratos começaram a roer as suas pernas, mas Manu continuava sem se mexer mesmo não conseguindo mais ver a que distância estava a luz. O tempo parecia uma eternidade e cada segundo demorava a se passar em meio ao sofrimento. Ela só queria que tudo acabasse e não estar mais nesse pesadelo. Ela só queria...
    — PARABÉNS, vocÊ passou por maais uma fase! Pode se mexer agora! — nesse momento ela simplesmente desabou no chão como se tivesse sem forças enquanto dava longas puxadas de ar — agora só resta mais uuma fase e ela é beem simples! Você não está vendo, maas tem uma porta a sua frente. NÃO abra ela em hipótese alguma! Até loguiinho, minha você!
    Demorou um pouco até que Manu conseguisse sentar e depois finalmente levantar. O seu corpo inteiro doía, as articulações pareciam estar inchadas, o seu ouvido zumbia de maneira incessante e havia sangue escorrendo por todo o seu corpo. O cansaço era grande, mas a curiosidade pela prova ser só uma porta era ainda maior. Por ser a última prova, tinha dúvidas se deveria seguir as regras ou não. Mesmo agora podendo fazer barulho e se mover à vontade, ela ficou olhando para a porta até conseguir se decidir. Durante o seu raciocínio, começou a ouvir em meios aos zumbidos o barulho de alguma coisa correndo a alguns metros de distância. A sua respiração voltou a acelerar e começou a ouvir os seus próprios batimentos quando o som de um rosnado se espalhou pelo ar.
    Podia sentir a criatura se aproximando e a cercando quando se lembrou de que, segundo o monstro que a atormentava, a morte poderia ser o prêmio ou a punição. Talvez por causa disso ou somente por puro instinto, deu uma pequena corrida cambaleante até a porta e começou a puxá-la com toda a sua força, mas não havia nenhum movimento. Os rosnados aumentaram em volume e proximidade, aumentando também o seu desespero. Talvez pela adrenalina que continuava a inundar o seu corpo, outro pensamento pairou sobre a sua cabeça: “não estou dentro, estou fora”. Por isso parou de puxar a porta e colocou o peso todo do seu corpo para empurrá-la. Quase todo o seu corpo passou por ela, mas, quando as suas pernas estavam suspensas no ar, a criatura mordeu a parte interna da coxa direita. A violência do choque fez com que ela girasse no ar enquanto gritava de dor. Tudo ficou em silêncio quando a cabeça de Manu bateu em alguma coisa na escuridão e a fez desmaiar.
    Já era de manhã quando acordou em sua cama. Sentindo todo o seu corpo dolorido, tentou se levantar e ir até um espelho, mas a dor na sua perna direita não permitiu e a levou até o chão. Lá mesmo tirou a sua calça de pijama e viu uma grande ferida já cicatrizada de uns trinta centímetros em formato de dentes bem na parte interior da coxa. O resto do seu corpo estava marcado por picadas em cicatrização e não ouvia mais nada em seu ouvido direito. Manu chorou, chegou a ir ao hospital, mas nada adiantou. Além do constante medo de dormir, essa dor e essas marcas a perseguiram pelo resto de sua vida.
  • Maestro infernal: capítulo 1

     
    A chuva batia no para brisa do corola 2008, como se fosse um pianista profissional tocando uma sinfonia maravilhosa de Beethoven. Sem dúvidas Rodrigues, babava em cima do volante, trabalhar de detetive particular nas horas vagas, e manter seu trabalho na polícia estava acabando com ele. Mas, ele precisava. Vento forte, trovões, pancadas de chuva, até mesmo a própria buzina que tocava eventualmente, não o acordava, dava pequenos pulos no banco, de hora em hora, não adianta, seu sono era pesado, e a chuva ajudou a tranquilizar o homem, vivia a base de pão do 3 dia e café de má qualidade. Dias em claro atormentavam sua cabeça. O rádio da polícia toca, aparentemente um terrível assassinato aconteceu, homicídio duplo, menina abandonada ao meio do sangue, isso sim o despertou novamente. Rodrigues era por natureza um predador de casos bizarros e sem sentido, amava seu trabalho, sempre se sentia um tal de Sherlock do sobrenatural, o próprio Scooby-Doo farejador de corpos esquartejados e dilacerados, mofados sujos, nojentos. Bom, Rodrigues não amava o banho de sangue, mas, amava e fascinava pelo sobrenatural. Nesses cenários complicados, sem pistas normais, sempre existia algo do outro lado, do mundo invertido, purgatório, seja lá como preferir chamar, era a única explicação pra alguns casos de mortes extraordinárias sem marcas. Quando criança Rodrigues vira vultos e etc. Porém ninguém acreditava nele, hoje em dia muito menos. Ele se sente ligado a esse mundo de monstros, fantasmas, bruxas, homens que pulam em uma perna só ou de pés invertidos, seu pai sempre contava a história de que um menino dos pés ao contrário e cabelos de fogo vigiava a floresta, era pra assustar o pequeno Gui, hoje em dia, esse se pergunta, eram só histórias? Algumas poderiam ser mesmo, outras ele não tinha certeza. Com um belo solavanco, Gui pulou, pegou o rádio, e ouviu com atenção. “Dois corpos na mansão Volkman, na colina do Dia bom, certamente identificados como Senhor Paulo Volkman e senhorita Valeria Volkman, ambos com 43 anos, aparentemente os dois tiveram todos os ossos quebrados, porém sem hematomas graves externos. Encontrada na cena somente a filha única, Clarisse Volkman, em prantos, nenhum outro parente da menina foi localiza...” Gui ouvirá suficiente, ligou o corola, partiu a todo vapor pra colina Dia bom. Rodrigues esperou a movimentação acalmar, queria investigar sozinho a cena, policiais iam e viam, lanternas nas mãos, capas de chuva, guarda-chuva sirenes e luzes pra todo lado. Rodrigues deixou o carro na mata, e seguiu caminhando o resto da colina, se esgueirou, escondido vigiava, coberto pelo seu sobre tudo preto e uma capa de chuva provisória. Aparentemente ninguém o notara, avistava com um binóculos, dois policiais conduziam uma pequena menina de olhos claros e cabelo loiro curtinho estilo chanel e encaracolados linda como uma margarida, mas murcha, pela chuva, e pelas lagrimas. Os policiais largaram a menina no banco traseiro da viatura, parecia tentar consolar a menina. Não funcionou, continuava cabisbaixa. Percebendo que nada iria mudar na menina, se afastaram e continuaram seu trabalho. Rodrigues notou a oportunidade perfeita e se aproximou da viatura, deveria fazer perguntas, ele era ótimo com crianças, não exatamente crianças mesmo, mas seus dois gatinhos, franjinha e bolota amavam ele, crianças não deveriam ser diferentes, somente mudava o tipo de petiscos oferecidos, e sem caixinhas de areias, definitivamente crianças eram mais fáceis de lidas, sem sombra de dúvidas. A barra parecia limpa, Rodrigues chegou perto suficiente do vidro da viatura escura e fria, cutucou a janela cuidadosamente, tentando ganhar atenção da menina, mas alerta para não ser percebido. Com um pulinho do banco a maninha encarou aquele projeto de sem teto esquisitão, sorrindo de orelha a orelha, acenando como se a garota fosse uma nova espécie de macacos australianos. Clarisse torceu o rosto, mas não gritou, o homem tinha olheiras fundas, barba por fazer, fios brancos na barba e na cabeça, topete mal feito pele branca e dentes amarelos de café expresso de má qualidade, o bafo deveria ser terrível, pensou a menina. Cuidadosamente, ela abaixa o vidro e pergunta. -O que você quer? Não me resta mais nada, sem esmolas hoje senhor, por favor se retire. Sentia-se enojada só de encarar aquele projeto de homem das cavernas. -Muito mal educada você, uma menina tão linda com uma boca suja assim, desse jeito não vai ganhar mais meu chocolate superespecial-Rodrigues fala isso fazendo uma cara emburrada e um biquinho esnobe. Clarisse fica intrigada. -Qual sabor? -Chocolate ao leite com avelã e castanhas caramelizadas. -Mentira! -grita escandalizada, batendo o pé, cruzando os braços com força- esse chocolate não existe, nunca vi em lugar nenhum, e já fui a muitas lojas diferentes, com chocolates importados da Bélgica, Suíça, Alemanha, e nunca vi esse sabor, além de feio o senhor e mentiroso. Rodrigues tira do bolso do sobretudo um envelope dourado, um chocolate muito aromático, como ele descreveu, e da uma baita mordida, enchendo a boca. -Huhummmm-exclama Rodrigues, muito satisfeito e saboreando seu chocolate perfeito e inigualável. -Deve ser um chocolate qualquer, você não me engana- Clarisse esnoba o detetive. -Certeza? Por que não prova? Com um estalar crocante, como se um lenhador quebrasse uma tora ao meio próprias mãos, o chocolate é partido, ele estende ate a menina encolhida no canto. Ela encara com curiosidade, avança a mãozinha e pega, olha, cheira e morde a pontinha, incrédula com o sabor irresistível e maravilhosa chuva de sabores na boca, a garotinha, funga e chora um pouco, seca as lágrimas no rosto com a manga da blusa lilás. Ainda choramingando, confessa. -Lembra meu papai. Rodrigues fica sério em silêncio. Retoma a conversa com um tom mais sério. -Qual seu nome menina? -Clarisse, porque te interessa? Eu não sou ninguém pra você, eu não sou mais ninguém agora. Rodrigues da um longo suspiro e continua -Clarisse, certo? Tudo bem, pode me chamar de Gui, apelido na escola. Olha eu sei que você perdeu tudo hoje, não sou a melhor pessoa com conselhos, mas, preciso saber o que você viu lá dentro, tenho algumas ideias mas não a certeza, preciso de ajuda, da sua ajuda, você é muito inteligente, tenho certeza- Termina dando sorrindo meigo. -Gui, qual é seu nome, tipo, completo? -Rodrigues, faz sentido pra você? -Não exatamente mas tudo bem- Ela para, e respira fundo- Se contar pra você, promete não rir? Os policiais riram, e debocharam, disseram que eu estava alucinando, “demônios, monstros? Isso é história de criancinha” fiquei muito envergonhada. -Clarisse, vem comigo, pode contar a sua história, já vi milhares de coisas esquisitas, acredito em cada palavra sua. Mas tive um ideia, vai ser melhor, me segue por favor. Rodrigues abre a viatura e estende a mão- Vem vamos, no caminho me conta tudo oque lembra, ouvi no rádio parte dos acontecimentos. A menina fica desconfiada, mas segue o policial esquisitão, esgueirando se pelas viaturas, pelo mato até a entrada dos fundos da mansão, ao entrar Rodrigues e Clarissa se depararam com uma enorme cozinha, mesa de jantar, tudo completamente arrumado e limpo, deveria caber dez, doze convidados na longa mesa preta se ornamentada , pia de mármore, geladeira de duas portas, Gui fica maravilhado ao se deparar ao bar da família, taças, vinhos importados, e oque mais chamou sua atenção, uma cafeteira de expresso, provavelmente italiana, profissional, o mais puro café que jamais tomaria. Peças de queijo, salames espalhados pendurados sobre o teto, uma variedade de uísques importados. Se existem um céu certamente era parecido, Rodrigues imaginava. Clarisse ficou confusa com o homem babão olhando todo aquele banquete, estalou os dedos o mais próximo do rosto dele, dando pulos, puxando a manga do seu braço e exclamando, parecia estar em transe. - Gui, ei acorda! Nada. -EII ALOU. A menina impaciente chutou sua canela. -Aiii! Clarisse, calma. Esfregava seu calcanhar que podia inchar futuramente. -Acorda por favor, preciso que fique atento, estou com medo de voltar aqui, mas ainda assim estou curiosa, preciso entender que aconteceu com eles. Ela aponta pra saída da cozinha/sala de jantar. -Onde eles estão? Na sala? -Papai, piano. -Certo. Começam a caminhar em direção a cena mais aterrorizante de Clarisse até hoje, inimaginável, passos largos e frios, chuva ainda batendo, coração acelerado e ansioso , Rodrigues nunca tinha ouvido de algo assim antes, ossos quebrados, sem machucados visíveis...Precisava ver, precisava sentir o paranormal novamente o chamar, aquilo o...E chegaram, os dois atirados, dois buracos no rosto de Paulo, onde deveria estar seus olhos, enormes, quase como duas bocas, isso era novo certamente, faixas da polícia por todo lado, o piano no centro da sala a mãe, Valéria, jogada no tapete enorme, poucos passos da poltrona onde sentava, parecendo querer chegar no marido, se arrastou com os últimos suspiros. Paulo estático, se tivesse os olhos ainda, certamente estariam vidrados na partitura em cima do piano, Gui reconhece a música que tocava, pelas notas marcadas em preto, como se alguém queimou as exatas notas da nona sinfonia de Beethoven. Clarisse não entrou, notou Gui, olhou para os lados, sumiu, voltou à cozinha, sentada a pequenina na ponta da enorme mesa, assim como um líder mafioso. -Eu entendo, querida, não precisa ver a cena novamente, me conta pelo menos oque aconteceu. Dizia Rodrigues puxando uma cadeira e sentando-se próximo da garota, inquieta balançando as perninhas. -Certo. Uma pequena pausa, parecia estar juntando todas as informações pra não ter que reviver mais vezes a mesma cena-Papai, estava na sala tocando varias músicas de piano, como sempre fazia aos sábados a noite, nada anormal, enquanto mamãe lia seus romances gigantescos. Eu estava no quarto, vendo alguns vídeos no meu Ipad, Felipe Neto, conhece? Ele e muito engraçado. -Ah, sim eu tenho alguma ideia, mas continue por favor. Clarisse, deu um breve sorriso e continuou. -Então de repente, ouvi minha mãe batendo na porta, e me chamando, ela falou alguma coisa relacionada à meu pai precisar de mim, queria minha opinião sobre uma música que aprendera a tocar, desci e, bom, sentei no colo dele atentamente ouvindo ele tocar, estava bonita a melodia, como sempre. Rodrigues sorri. -Desculpe mas, você e muito educada com seus pais, parabéns. Pode continuar. -Obrigada-Clarisse levemente corada-E difícil encontrar homens assim gentis, e você é, assim como meu papai- Ela para desconfortável com oque acabou de dizer, a realidade dos fatos era difícil de encarar ainda-Deixa pra lá, vou acabar logo com isso. Enfim, como ia dizendo, a música estava agradável, era uma nova certamente, mas logo as coisas ficaram estranhas. Uma pequena pausa novamente, a menininha olhava fixamente a mesa. -Aos poucos a melodia foi mudando, ficando sombria, meu papai me segurava cada vez mais forte, não queria me deixar sair, comecei a gritar, estava assustada, chamei minha mãe e. Parou novamente, começou a lagrimejar. -Os olhos dela, totalmente pretos, vibravam-Abanava os braços com força, e começou a chorar- Me...me...meu pai, não parava cada vez mais rápido a tocar, falar coisas estranhas em alemão. -Que coisas? Entendeu alguma palavra? Em prantos, ela fungava e secava as lágrimas. -Sim, mas só uma coisa, transferência de receptáculo, repetia inúmeras vezes. Ela tomou fôlego tentando se focar para acabar logo. -Depois disso, eu juro por todos os ursinhos carinhosos, que vi os dedos dele pegarem fogo, mais e mais rápido, a boca retorcendo e falando coisas incompreensíveis, provavelmente ainda alemão, mamãe caiu no chão, um brilho na nuca dela em vermelho, fumaça ou gosma preta saiu dela, tomou a forma de serpente, cobra, não lembro perfeitamente, desmaiei, foi isso. Acordei e eles estavam assim. A menina banhava-se nas lágrimas, a dor de ver aquele rostinho sem esperança apertou o coração de Rodrigues. Ninguém deveria presenciar evento algum assim, era deprimente. Levantou, anotou tudo com sua caneta e caderno de bolso, guardou novamente, e deu um leve abraço na garotinha mais miúda e cabisbaixa do que nunca, fungava e soluçava. Ele compreendia sua dor. -Pronto, acabou, você é incrível garota. Abraçava e dava pequenos tapinhas nas costas de Clarisse, que estava imóvel. Movimentação vinha da sala de estar, piano voltou a tocar, em um susto, a dupla investigadora correu para investigar, totalmente rígido, Paulo dedilhava ferozmente, fogo se ascendia nos dedos, exatamente como Clarisse relatou. A chama subiu e consumia seu rosto, entrava nas cavidades oculares, queimando sua carne de dentro para fora. Certamente não era Beethoven, sons melodiosos horríveis, entravam na mente do detetive e da menininha, latejavam seus crânios, como se estivem em chamas também. Clarisse se encolheu no chão, suplicando que a música infernal para-se de imediato, mas, não parou, aumentou, mais e mais, a sensação de enlouquecer estava próxima. Rodrigues, tentou se concentrar, buscou o revolver ao bolso, levantou lentamente ao Sr.Volkman, que agora parecia o verdadeiro maestro infernal, respirou fundo, tremendo puxou o gatilho, uma, duas, cinco vezes. Os disparos foram abafados pela sinfonia diabólica, mas, cessou. A caveira de Paulo, ainda em chamas cai de bruços sobre o piano incendiando. Porém, a sensação de alivio durou pouco, o maestro, agora sem pele nas mãos e na cabeça, levanta, o fogo cessa. O maestro infernal levantasse e caminha na direção da menina e do detetive. Passos lentos mas firmes, que ecoam pelo salão. Rodrigues congela, tenta disparar mais vezes, mas o tambor está vazio. Começa a recuar puxando Clarisse. -Clarisse vamos! –Exclama Rodrigues desesperado. Clarisse não move um musculo, alguma coisa mudou, a menina encara o próprio diabo em sua frente fixamente. Medo talvez? Não fazia sentido. De repente a caveira ambulante para, e começa a falar, apontando em linha reta. - Der Teufel hat sich in dich eingeschlichen Fez-se silencio por um momento, depois a criatura repetiu a mesma coisa, mudando as vezes para”der Teufel ist in dir” e depois “die Schlange des Chaos erwacht wieder”. Rodrigues não entendia, nada fazia sentido, mas decidiu esperar e observar. De repente, as coisas ficariam ainda mais absurdas. Clarisse jogou o rosto pra cima, muito abruptamente, tinha quase certeza, “Quebrou o pescoço”, um estalo forte veio da menininha, flutuava, nada que Rodrigues não presenciara antes, o paranormal, imprevisível até mesmo com criancinhas. Ele mesmo tinha poderes assim, de qualquer forma, não era todo dia que criancinhas saiam voando por ai. Desconforto, uma presença maligna tomava conta do local, não era o senhor caveira ambulante, não, algo mais forte, a fonte dessa energia caótica deixava-o tremendo de ansiedade. Clarisse emanava caos, emanava destruição. Diferente de tudo, uma energia poderosa capaz de matar tudo e todos que a tocassem. Mas a garotinha segurava esse poder na palma de suas mãos. Clarisse no ar, finalmente proclama mais coisas incompreensíveis. -Verstanden, Ruhe Soldat. E como se a pequena garota fosse o comandante superior, o maestro infernal bate continência e se desfaz em cinzas no ar. Clarisse cai, Rapidamente, já esperando, Rodrigues corre e pega a garota no ar. Desmaiada nós seus braços, suspira, e senta, tentando recuperar o folego. Noite estranha e gente esquisita acabavam com ele. A última lembrança de Clarisse antes de cair na total escuridão foi seu pai, esquelético, caminhando em sua direção, falando coisas estranhas, e então, sua visão escureceu. Acordou em outro lugar, não reconhecia aquele lugar, casas com arquitetura germânica medieval, uma igreja ao longe badalava um sino, várias pessoas, camponesas seguiam em direção a um grande poço no centro do vilarejo. Resmungavam coisas em alemão, ela entendia parcialmente. Tentou chamar por ajuda, mas todas as pessoas passavam pela menina como se não existisse. Um circo de camponeses, com tridentes, foices, até mesmo livros de couro preto ou marrom com um símbolo cravado no centro, vermelho como sangue. Certamente um culto maluco, agora se juntavam ao circo, homens e mulheres encapuzados, máscaras de serpentes, o mesmo símbolo, parecia escorrer sangue atrás das capas. Clarisse estremecia, mas curiosa se juntou, sentia-se ainda invisível na multidão. Uma canção, ou oração começou a ser proclamada, todos de livros abertos, os símbolos brilhavam em fogo. Cada um dos encapuzados se aproximou do poço, doando seu próprio sangue, a canção de invocação aumentou, todos juntos em um rito de dar inveja aos seguidores de Satã. Sons começaram a serem ouvidos no poço, uma mare latejava e borbulhava, e como nascida do sangue e do lodo dos mortos, se levantou, uma espécie de cobra, dragão, serpente do mar, ensanguentada. Abocanhou, e pela metade ficou o camponês mais próximo do monstro do poço. Estranhamente ninguém se mexeu, todos hipnotizados pela carnificina. O estômago da serpente rugiu, não saciado, mas sim com sede de sangue e destruição. Clarisse, tenta fugir daquela insanidade, dando passos para trás, ainda encarando, um por um dos camponeses sendo devorados, uns tinham cabeças arrancadas outros metade do corpo, braços, pernas. Finalmente o horror tomou conta do povoado, gritos e desespero por todo lado, a serpente perseguia e devorava tudo que se mexia em sua frente. Clarisse acordou com sangue respingando em seu rosto e correu, “Não é real, não é real” Era impossível, era horrível. Por que tinham invocado um demônio pra destruí-los? Um sonho, terrivelmente real, só podia ser. Correu o mais rápido possível, mas não adiantou, serpente alcançara Clarisse, mas não atacara, e sim, chamou. -Clarissssse, não fuja, nosss somos iguais, somos parte um do outro, não fui eu quem matou todos eles, foi você, não entende? Olhe pra baixo, está ensanguentada. -NÃO! –Clarisse se joga no chão chorando, balançando, desejando que tudo acabasse, E acabou, acordou nos braços de Rodrigues. Desnorteada e com medo, confusa. Viajou no tempo? Não fazia ideia, sentia a cabeça latejando. Rodrigues estendeu uma xícara de chocolate quente para menina, ela agora se encontrava enrolada em um cobertor, mas não em sua casa. Uma cozinha pequena, luz fraca. Sentada em uma pequena mesinha redonda de madeira, um lindo gatinho encarava a menininha, mesclado preto e branco. -Franjinha e o nome.Rodrigues inicia a conversa, sentado do outro lado da mesa bebericando café, obviamente, deveria se passar da meia noite, mas não se importava, ele precisava daquele café, afastaria os sentimentos ruis daquela noite. -Onde estou? Você me trouxe aqui, certo? -Exatamente, bom, pensei que como estava desmaiada e bom, você sabe… -Sozinha- A garotinha corta secamente- Eu entendo, por quê se preocupar com uma garota estranha, que não te deve nada? -Não podia te deixar lá para morrer né? Que tipo de ser humano eu seria? Deve ter aprendido a ajudar os outros, certo?- Tenta dar seu melhor sorriso, mas não sente que se saiu bem. -Onde vai me levar? O quê aconteceu lá, eu simplesmente apaguei, vi meu pai morto vivo caminhar na minha direção, e teve aquela música, e bom, tive um pesadelo horrível com.. - A serpente? -S-sim- uma pequena pausa, desceu o olhar triste- Rodrigues, Gui, estou com medo, a cobra, o monstro seja lá o que for, me acusou, disse ,"nós somos iguais" não entendo. Eu sou um monstro pra você? -Clarisse, vou te explicar uma coisinha- Dá um grande gole final no café,e bati levemente a caneca na mesa, imitando um bêbado afogando as mágoas- Esse mundo, não é um conto de fadas e nem mesmo um mar de rosas, inclusive, qual sua idade mesmo? -11, mas faço 12 mês que vêm, 31 de janeiro -Bom, como imaginei, muito nova , grande poder. Clarisse estremece ao ouvir "poder". Rodrigues continua. -Alguém em algum momento na sua família fez uma grande besteira, e agora vai ter que segurar o fardo, mas vou te ajudar, não te levei pra lar de adoção, pois, não iam saber lidar, você Clarisse, tem poderes sobrenaturais. Essa frase não parecia fazer nexo nenhum com a realidade, e não fazia de maneira alguma, insanidade, no mínimo, ecoava em sua pequenina cabeça. -Eu sei, pode me colocar no hospício, sou maluco, mas, é a verdade. Conhece demônios, certo? Existem, lobisomem, vampiros, todo tipo de criatura maligna que consiga imaginar, bom, testemunhou hoje com teus próprios olhos. Crianças como você, tem um lugar certo, frequentei praticamente na tua idade, matei bruxas velhas, vampiros feiosos, espíritos vingativos, devo ter topado com o próprio diabo nesses anos de caçador. Clarisse pulou com um pequeno susto, outro gatinho se arrastou entre suas pernas, ronronando, esse laranja, um alívio calmante naquela noite. -Escola preparatória contra as artes das trevas, ou EPCAT, sim é uma sigla horrível, mas é um lugar ótimo, outras crianças com e sem poderes sobrenaturais vivem lá, vai fazer amizades e estudar e combater bastante, bom, e claro se você tiver interesse, e um dia vai entender o'que sua família fez, ou de onde veio poderes sobrenaturais e absurdamente fortes. -Gui, eu, matei ele? O maestro ? -Transformou ele em cinzas… Ficou corada, impressionada, estava sonhando, mas ao mesmo tempo, destruiu uma criatura. Seu próprio pai, naquele ponto, já não existia Paulo Volkman ali, Clarisse não entendia isso ainda. -Vão me ajudar? -Vão, e vai ser a melhor caçadora paranormal, sobrenatural do mundo-Agora sim Rodrigues deu um sorriso satisfatório- Acho melhor você descansar, deve estar caindo de sono, não tenho exatamente um quarto ou cama, mas o sofá é perfeito, tenho cobertas travesseiros pode se aconchegar , os gatinhos podem te fazer companhia. Agora dando uma olhada melhor no apartamento, Clarisse nota os sofás de couro marrom, bem cheios e arranhados, um tapete e uma mesinha de centro com livros empilhados, Agatha Christie, Stephen King, Poe , e muitos outros. Tudo na sala e na coy pareciam mais antigos, anos 90 talvez, mas a televisão era muito recente, tela plana 43 polegadas, ao lado do sofá central uma caneca, e outra ao lado da televisão , em cima da mesa da cozinha, canecas no geral se espalharam pelo apartamento,isso e os livros e algumas anotações espalhadas, explicavam as olheiras de Rodrigues. Ele se levanta e vai em direção ao quarto no corredor. Volta trazendo cobertas e travesseiros. -Bom, qual sofá? Geralmente o do centro e dos gatos. Clarisse ainda meio confusa, perdida nos pensamentos, balança a cabeça voltando a realidade. -Pode ser, esse mesmo, não me importo em dormir com ps gatinhos. -Perfeito, vou arrumar pra você. Rodrigues ajeita a coberta e os travesseiros e com um sinal, chama a garota. -Clarisse, uma coisinha importante que precisa saber, primeiramente, tem onde ficar? Algum outro familiar? As aulas da EPCAT só começam em fevereiro. -Não- responde friamente. -Olha pra mim, se importa de ficar comigo nesse meio tempo? Nunca cuidei de crianças, mas sei que você é muito inteligente , vejo isso. Clarisse olha para Rodrigues meio cabisbaixa, mas não tinha para onde correr, perdera tudo, ele era sua única esperança por enquanto. -Gostei daqui- dá um sorrisinho. -Ótimo, prometo que vou fazer tudo para que fique bem até as aulas, Dorme bem garota, boa noite. Rodrigues espera uma resposta, mas a garota caiu no sono.
                    
  • MAGIK

  • Matando luas e domando vulcões

    A insônia. Maldita insônia. Era mais uma noite cálida do inverno mais rígido dos últimos tempos e mesmo assim nem o filme mais enfadonho e moroso da madrugada foi capaz de fazer o sono dar o ar da graça. Só João sabia o quanto sofria com suas noites perdidas e dia mal aproveitados. Uma insônia que esbanjava ousadia e poder sobre seu corpo.
    Resolveu então dar uma volta ao redor do lago que margeava sua casa. Estava tão escuro que mal se podia acreditar que realmente havia vida ali, quem diria um lago. Foi tateando o ar lentamente, até que se aproximou da velha cadeira de balanço que ficava no deck desde que se entende por gente.
    Aquela casa na serra pertencia a sua família há gerações. Quando criança vinha ali para tomar banho de rio, mergulhar e caçar tesouros no fundo da água turva do lago. Eram dias gloriosos e das mais esquisitas descobertas. Infelizmente, para ele, nunca encontrara nenhum anel do poder. Isso o entristecera muito na época.
    Caminhando e divagando pelo total breu ao bel prazer do universo o levou a pensar sobre como as pessoas tratam com descaso e não refletem o suficiente da importância da natureza. Acham que por não estarem enxergando nada, nada as enxergam de volta. Que ignorância! Essa reciproca não é verdadeira. Não entendem que possivelmente exista mais vida naquele breu do que em toda a humanidade em si.
    Nesse momento, entregue aos devaneios e pensamentos, lembranças infantis vagueavam para um lado e para o outro da sua cabeça, tão superficialmente que dificilmente se apegava a alguma delas. É interessante notar como chega um ponto onde não temos mais nenhuma rédea sobre algo tão íntimo como nossos pensamentos — pensou.
    Diz-se por aí que isso é o famoso “pensar na vida”. João considerava isso uma verdadeira fábula, já que apenas pensar por pensar em nada vai contribuir para a vida dele, além do fato concreto de se estar perdendo tempo. Pensava que se cada um parar para pensar, por mais redundante que seja, na quantidade de tempo que se perde futilmente, um tempo que seria bem melhor se gasto trabalhando e assim criando a partir do esforço próprio, a vida em si. Ou seja, era melhor gastar o tempo realmente vivendo do que apenas criando conjecturas de uma suposta vida que nunca iremos ter.
    Mas João tinha plena noção de que ele não era a personificação da coerência no mundo. Já que neste exato momento, nada mais ele fazia do que divagar sobre tudo e sobre todos. Pensava que foi assim que havia se tornado tão ranzinza. Ser ranzinza até o alegrava em certo ponto. Se ria em pensar que havia se tornado um velho mais chato do que Bóris, o personagem ícone da “ranzizisse” vivido por Larry David no filme “Tudo Pode dar Certo”.
    A madrugada se esvaía pelo tempo, e João ali, recordando de um filme do Woody Allen que ninguém mais no mundo além dele se importava. O frio seco já transformava cada expiração num show de mini cumulonimbus vindas do seu interior diretamente para povoar o céu noturno. Será que foi assim que deus teve a ideia de fazer as nuvens? — Se perguntou. Por que, pensando bem, não tem motivos de existir essas coisas. A não ser que alguém quisesse esconder algo no céu. Riu-se imaginando a cena de um ser superior criando tal aparato. Imaginou um velho barbudo e cabeludo, digno dos participantes mais bizarros vistos pelos encontros de motociclistas típicos de cidades pequenas, com frio por ter esquecido seu casaco de couro e sem ideias do que mais estava faltando nesse novo planeta que estava criando. Quando nota a fumaça branca que sai estranhamente da sua boca e diz — Que maneiro! — e pensa — Por que não?.
    – Enfim. — pensou — Que planeta de merda você criou hein! Isso se foi mesmo seu serviço, claro. Não tem porque ficar culpando ninguém sem provas. João podia ser chato e ranzinza, mas ao menos se orgulhava de ser uma pessoa justa.
    – Nossa! — falou em voz alta para a noite ouvir, como se quisesse expelir pela simples contração de suas cordas vocais aquele sentimento pantanoso que tomava conta de si. E voltou-se a sua discussão interna.
    Estou divagando dentro da minha própria divagação. Minha mente sempre me leva ao impossível. Não é possível que seja apenas eu. Aquela sensação de querer tocar o nada. Querer alcançar o sol apenas com o esticar dos braços. Essa insônia me traz toda essa coisa inútil a mente. Será que o que estou fazendo hoje da minha vida é realmente o certo? Será que vou morrer amanhã? Não creio que alguém ou qualquer ser seja lá o que for saiba dessas respostas. E para dizer a verdade não sei se quero realmente saber.
    É como havia lido num livro recentemente — “essa mania de ter esperança é o que acaba com a humanidade”.
    Esse pensamento o lembrou de algo que estava protelando em fazer. Se endireitando na cadeira vasculhou pelos bolsos pelo seu caderninho de anotações que sempre mantinha por perto. Não demorou muito a encontra-lo. Cavoucou mais um pouco e logo achou a caneta que recém havia usado em casa. Precisava confessar algo. Não tinha esperanças de que alguém fosse ler ou mesmo se importar, mas era algo que precisava ser feito.
    Esse era o verdadeiro motivo da insônia, bem o sabia João. Sabia também que era típico das pessoas querer fugir da realidade, por isso fingia que não sabia de nada. Se sentia fraco por isso, mas isso é algo inato aos homens, o que podia fazer?!
    Pegando seu caderninho, começou a escrever com seus garranchos:
    “Me chamo João. Sim, mais um João num mundo de milhões de Joãos ninguém. Tenho 42 anos e estou cansado. Paciência não é uma virtude que me pertence há uns bons 20 anos. Moro numa quitinete qualquer da sua cidade. Sim, sou seu vizinho. Não fique mal por não me conhecer, não sou do tipo sociável, nunca te chamaria para assistir uma partida de futebol mesmo.
    Por meio desta venho me confessar.
    É realmente necessário um crime para uma confissão? Ou a intenção de cometer algo ilícito já basta? Em certas ocasiões as pessoas confessam seu amor e tudo o mais. Mas não se preocupe, esse não é um desses casos. O amor, de mim não sabe nada. A verdade é que quero confessar um assassinato. Porém, longe de mim me considerar culpado. Não, não, isso não. Sou apenas um produto da sociedade como dizem. Cheguei ao meu máximo, só isso. Não suportei mais a pressão. Fui fraco, eu sei. Mas tive que matar. Sim, matei! Matei as crenças humanas, matei todo e qualquer vestígio de coerência imposta pela sociedade e cultura vendida pela mídia. Cansei de aceitar o que me dizem. Cansei de aceitar a gravidade e tudo mais que os cientistas botam na nossa cabeça. O impossível pra mim não existe mais. Tal palavra foi cortada de meu dicionário. Como assim que não posso voar? Ou respirar debaixo da água? Ou simplesmente andar de skate num dos anéis de Saturno? Quem nos impôs essas regras? Regras estão aí para serem quebradas, sempre foi assim na história do mundo.
    Por isso, declaro aqui que resolvi matar a lua!
    Sei que não se trata de uma ideia inédita. Conheço de cinema o suficiente para saber que um francesinho qualquer do século retrasado já havia tentado isso. Aplaudo seu coração visionário! Minha cabeça nesse momento ressoa ao tom de um turbilhão de borboletas em forma de sinapses nervosas. Quebrar conceitos não é algo fácil. Quem dirá a lógica inata que por séculos foi cultivada nas nossas mentes.
    Finalmente posso dizer — Hoje à noite não tem luar e nem nunca mais terá.
    Obtive sucesso onde Deuses tentaram e falharam. Venci o impossível! Nada é impossível, só temos de estar prontos para aceitar as consequências. Quando isso acontece, vencemos o medo”.
    Ao terminar de escrever, João enfim pode relaxar. Logo vieram as lágrimas. E com elas o sangue voltou a jorrar com mais intensidade. O sangue já coagulado banhava seu rosto. Manchas esparsas de seu liquido visceral mordiscavam suas mãos, corpo e todo o caderno. As letras borradas carregavam vestígios de sangue e lágrimas. Em sua mão direita jazia a sua arma destruidora do impossível, a caneta, que usara para perfurar seus olhos horas antes. Antes de desmaiar e sair cambaleante pela, agora, eterna noite. Se ainda enxergasse veria o rastro vermelho deixado por ele no quintal e até mesmo na cadeira em que estava.
    Chorava, mas era de satisfação. Realizara o que ninguém mais pode.
    A lua estava morta.
  • Me Chamo Ninguém - 1

    Com apenas quatro anos e eu já estou cansada.
         Há quem diga que isso é pouco tempo, afinal, uma pessoa com quatro anos de idade ainda é uma criança. Mas não é bem assim.
         Aos 28 anos ter quatro anos de idade não é fácil pra ninguém, por que seria pra mim, então?
         Me chamo o nome que quiseres, dizem que me chamo Natália, então vamos chamar-me disto. Sou solteira, acho, tenho um metro e 65 de altura e peso 68 quilos. Esses dois últimos são fatos inquestionáveis já que tem como ver isso nitidamente com uma trena e uma balança.
         Não é um Prólogo. Não é uma história. Nem uma carta. Não é uma fanfic da minha vida. Isso é apenas o que me disseram, não sei se isso é verdade. Eu não lembro.
         Meu nome é “Ninguém”, tenho quatro anos e essa é parte da história que me contaram sobre mim.
  • Mecanicidade Metódica de Si Mesmo

    Voltara-se para dentro de si como nunca, antes, já vivenciado… se viu completamente protegido da ventania de egos que soprava contra sua casa forte. Resolveu olhar para si mesmo com os olhos da Graça, e se viu com os olhos Divinos, quando, de repente, abriu em sua mente um panorama existencial de sua trajetória cósmica unilateral, e sem partidos. Se vira nu… nu de alma, embora o seu corpo estivesse vestido.
    De tal forma sublime, ignorava em difíceis sacrifícios os seus inúmeros sofrimentos psicofísicos, para elevar-se muito além de suas fraquezas. Vira a mecanicidade e o voluntariado dos seus mais íntimos sofrimentos, exposto em um quadro mental de sua consciência adormecida, encoberta por um grosso cobertor de culpa, na cama psicológica dos seus erros e defeitos. A sua triste, entediante, monótona e adormecida consciência, amontoava sentimentos e pensamentos de um cansaço íntimo frustrante. E sempre lamentava por constantemente não conseguir, apesar de muito esforço, o fruto dos seus desejos, em que se sentira ofendidamente enganado por pensar que a vida lhe devia tudo que não fora capaz de conseguir.
    O mundo lhe devia satisfação.
    As pessoas ao seu redor tinham por obrigação, e direito, admirá-lo, e, também, a primazia de honrá-lo.
    Sabia que era bom e honesto em tudo que fazia, e, em tudo que se propôs a realizar. Porém, não entendia tal barreira energética que o prendia a má sorte, e sofria com a rejeição e a inveja alheia voltada contra ele. Isso bem que lhe parecia uma maldição, um encanto malicioso. Pois a inveja alheia lhe cobria nas mais simples coisas, manifestando nas mais simples formas… a sua simples maneira de sorrir… seu educado comportamento… a sua forma singela de olhar… a sua voz doce e agradável… o jeito em que prendia seu cabelo… as suas boas ações para com o próximo. Sendo, que por mais simples e singelo fosse em sua natural conduta, maior lhe seria a inveja alheia. Por ser o oposto do política e corretamente manifestado, envolvido em uma pureza e inocência de proteção e amor divino, que o fazia distante da hipócrita ironia social.
    Verdadeiramente, um doce de homem… lindo, maravilhoso, gentil e encantador.
    Nos ambientes era femininamente amado e masculinamente rejeitado, ao mesmo tempo que era masculinamente invejado e femininamente odiado… por um segundo o glorificavam o colocando no mais alto pico dos interesses, contudo, em um complô inconscientemente coletivo, silencioso e secreto, o sabotavam, precipitando-o pico abaixo do mais alto desfiladeiro, ignorando-o nas conversações grupais, e lhe presenteando com as viradas de olhos e costas. Por isso, tinha pena e dó de si mesmo, ao se ver abandonado e discriminado em invejosas soberbas alheias. E por esse sentimento que o apunhalava nos grupos sociais, deteve todo progresso interior de seu MARAVILHOSO SER, se trancando em si mesmo, envolvido em sua própria bolha de medo, rejeição, complexos e culpa no calor refrescante de sua ilha desértica.
    Em sua mente em conflito, inúmeros ‘eus’ perversos e ressentidos, impregnados de ódios e maldições, tapavam com um lençol negro o sol da Autorrealização do seu SER. Culpava tudo… odiava o mundo… tudo era tão feio e cinzento… e as pessoas eram por demais perversas, maldosas, egoístas e interesseiras.
    Entretanto, ainda não sabia ele que sua existência inteira estava alienada na identificação com essas inferiores emoções. Ao ponto de não poder enxergar além de suas bolhas de sabão, assopradas por si mesmo. Essas inferiores emoções eram-lhe feridas abertas inflamadas de sentimentos de vinganças; ansiedades; ressentimentos pessoais e odiosos pelos males alheios lhe causado; pensamentos violentos; inveja; ciúme; medo; desconfiança de si e dos demais; pena de si mesmo. E… em sua autoanálise resolveu limpar o pus de sua ferida, que constituía em uma grave enfermidade difícil de curar. Por isso, ali sentado, resolveu sacrificar todos os seus sentimentos, emoções e pensamentos de bem e mal. Perscrutou a si mesmo, investigando a sua triste alma como algo alheio ao seu ser. Ausentou-se de si, sobrevoando todo o fato interno e externo, e se vira como um fósforo, morando em uma caixa de fósforo. E se percebeu tão frágil ao ser inflamado pela cabeça ardente dos outros palitos, ao serem riscados na lateral da caixa. E, se perguntava: “Por que tenho que me ressentir pelos sentimentos alheios e externos a mim?”… “Por que as palavras e atitudes dos outros me incomodam tanto?”… “Por que me sinto ofendido por suas más ações?”. E, também, questionará: “Por que preciso que me tratem bem ou me bajulem?”… “Por que necessito do alento externo e dos seus aplausos?”… “Por que me render ao bem e mal de todas essas coisas e do mundo?”. Intentara que sacrificando seus anseios e sofrimentos, e sacrificando mais ainda a si mesmo, poderia se livrar da prisão cíclica da caixa de fósforo, de esperar na fila entediante do abrir e fechar da caixa, o momento disfuncional de ser o próximo palito a ser riscado.
    Nisso! Uma ideia clareara em sua mente racional… o atraso… pensou na ponderação… não reação. E decidiu fazer um desafio a si mesmo, pondo um pé atrás, dizendo em alta voz:
    __ De agora em diante… silencio todos os meus sentimentos e emoções. Pois, a graça da felicidade e alegria de viver é um presente que só eu próprio posso me dar… e ninguém mais… e nada mais.
    Vira a Vaidade, a Inveja, a Tolice e todos os outros sentimentos agregadores de sofrimentos dentro de si… eram todos ‘ele’ mesmo. Sua versão maldosa… e como era feia, magra e ressequida… pele e ossos. Percebeu que essa versão Maldosa do SER e de ser, se constituía de inúmeros ‘eus’ demônios, apresentados como os diversos aplicativos funcionais de sua totalidade Maldosa motora… Viu o seu ‘eu’ Mentiroso com seus filhos Calúnia e Difamação seguindo o seu ‘eu’ Medo, pai do seu ‘eu’ Desgraça, que era um ‘eu’ bebê de leite, da mãe ‘eu’ Ignorância… vira que todos os seus ‘eus’ demoníacos amantes dos prazeres, drogas, porcas sexualidades, luxuria, classismo, falsidades, ganancia, egoísmo, vaidades, cacoetes e bajulações eram escravos de algo externo ao seu SER. Nisso!… Mais uma vez intentará na totalidade do seu SER, como o todo de tudo em sua infinita paz de um amor inefável… e vira os seus pequenos demoníacos ‘eus’ em agitação constante, dependentes do externo e alheio… vira a vítima… e era ‘ele’ mesmo… vira o mundo… e era ‘ele’ mesmo. E, disse:
    __ Como és feio, pequeno, medroso, fraco e pidão. Se faz de vítima constantemente só para obter atenção alheia. Pensa que o mundo gira ao seu redor, e afirma com toda convicção para se justificar que cada cabeça é um mundo, não conhecendo o seu próprio mundo, e julgando com imensa culpa o mundo alheio. Ó criatura ignorante e medrosa, eu te repudio em mim… como ainda não posso me livrar de ti, pelo fato desse corpo estar preso ao povir… te colocarei rédeas, e cavalgarás apenas pelo meu comando, e no caminho que eu indicar… Ó besta cruel de mim, te enfiarei na prisão e verá o mundo apenas pelas grades da sua jaula… Eu agora sou o Senhor de Mim, o Dono da Casa… Construí agora um farol forte no meu centro motor, para a autorrealização intima do SER DIVINO que Eu Sou, e estou em constante auto-observação luminosa, em todas as atividades que minha consciência atuar… Não sorrirei alegremente quando me bajularem, e não sofrerei tristemente quando me humilharem…, não amaldiçoarei com palavras más aos que me amaldiçoam…, não ferirei nem mesmo em pensamentos os que me ferem… Estou agora livre, porque nada e nem ninguém tem o poder de me fazer feliz ou triste… grande ou pequeno… feio ou bonito… perdedor ou vencedor. Não estou no controle do mundo… e por saber disso… não me deixo mais ser controlado pelo mundo. Pois, se ignorantemente digo que estou no controle de tudo ou de todos, aí sim, estarei controlado por tudo e todos. Portanto, não sou mais cúmplice da infraimaginação e sua autoimagem de sonhos e fantasias do externo alheio de coisas, ambientes e pessoas.
    Simples de mente e sentado. Sentira uma energia de imensa alegria que expandia de dentro para fora. Uma força calorosa o aquecia por dentro, e no centro do seu peito havia um vazio iluminador potente de energia. Em pleno sentimento do divino sagrado, uma paz aconchegante o cobria de uma luz melosa de ouro, lavando todo seu corpo da cabeça aos pés. O mais Alto dos altos o ungia com azeite dourado. Dos seus pês brotaram finas raízes de luz dourada, que cresciam, aglomerando e se bifurcando, lenta… e rapidamente, adentrando a terra e engrossando seus tentáculos como raízes de figueira a procura das doces águas subterrâneas.
    Sentiu em sua destra, na parte superior ao meio de seus olhos, um ponto de energia vital que expandia… sua visão se aguçará, e pontos de luz faiscante se via. Seu coração calmo pulsava. Percebeu-se não parte, porém, algo que por espécie não poderia ser negado. Algo do Amor Divino… algo do ser amado… algo a ser puramente vivenciado. Tudo era tão forte e tão intenso, sentia tudo e, todos sentia… sentimentos que em sua pele doía, em sua pele ardia. A energia vivificadora atravessa seu corpo se movimentando em espiral, adentrando e saindo, formando em seu centro motor o ponto ‘X’ do oito universal. Assim, compreendeu a sua própria mecanicidade, e como máquina orgânica biológica e alma metódica intelectual, se deletou. Despertando a Consciência Transcendental na íntima recordação divina de si. Na sagrada sabedoria popular que diz: “Quando um não quer, dois não brigam!”

  • MENSAGENS NA PAREDE

    Gustavo e Cristina haviam se mudado para uma casa na região central da cidade. Eram dois jovens, casados há um ano, eles ainda não tinham filhos. Juntaram suas economias e deram de entrada na tão sonhada casinha dos sonhos. Não era uma casa nova e nem uma mansão, era pequena e tinha passado por uma bela reforma, ideal para um casal que tinha a vida toda pela frente. Os dois tinham uma rotina tranquila; Gustavo trabalhava fora e voltava para casa no final da tarde, Cristina trabalhava em Home Office.
    Certo dia, o casal estava de folga, era domingo e se preparavam para tomar o café da manhã. Enquanto conversavam na mesa, Gustavo reparou algo estranho na parede da cozinha. Alguém tinha escrito à caneta, uma frase com letras miudinhas. Gustavo não lembrava se aquilo já estava lá quando compraram a casa. Intrigado, perguntou à Cristina se tinha sido ela quem havia escrito na parede. Ela respondeu que não, jurando que aquela frase não estava lá um dia antes. O casal ficou achando aquilo muito estranho, mas ambos chegaram à conclusão que possivelmente, a frase já estava lá e por falta de atenção, não haviam reparado.
    A frase escrita na parede da cozinha, também não fazia muito sentido. Dizia assim: “Saudade dos meus irmãos”. Tanto Gustavo, quanto Cristina, não tinham irmãos. Ambos eram filhos únicos. Desconfiaram que a frase tivesse sido escrita por algum operário que esteve envolvido na reforma da casa. Com a ajuda de uma esponja e produtos de limpeza, Gustavo apagou a frase. A parede voltou a ficar branquinha.
    Uma semana depois, o relógio despertou às seis da manhã, horário que Gustavo costumava se preparar para ir ao trabalho. Tomou um banho, se vestiu, foi até a cozinha, fez o café, e logo saiu. Cristina ficou dormindo, pois costumava levantar um pouco depois. No fim do dia, quando Gustavo voltou para casa, encontrou Cristina nitidamente angustiada. Preocupado, ele perguntou se tinha acontecido alguma coisa e ela respondeu dizendo para que ele fosse até a sala e visse com os próprios olhos.
    Ao chegar à sala, Gustavo levou um susto. Não era possível, alguém tinha escrito na parede novamente. Dessa vez, foi escrito com outra caligrafia, as palavras eram grandes. Um dia antes, aquilo não estava lá. Era impossível não se ver algo tão chamativo em uma parede branca. Escrito a lápis, a frase dizia: “Estou bem, não se preocupem comigo”. Gustavo e Cristina começaram a desconfiar que alguém estivesse entrado na casa e resolveram chamar a polícia. O casal não conseguia compreender o que estava acontecendo.
    Quando a polícia chegou, Gustavo relatou o que estava acontecendo na casa. Contou que há uma semana tinha aparecido uma frase na parede da cozinha e agora, outra frase na parede da sala. Disse ao policial que nem ele e nem Cristina tinham feito aquilo. O policial fez várias perguntas, como: se tinham crianças na casa, se morava mais alguém ali além do casal, se deram as chaves da casa para alguma pessoa, etc. Todas as perguntas foram respondidas com um convicto “Não”.
    O policial disse que como nada tinha sido furtado ou nenhum delito mais grave tinha acontecido, a polícia não poderia fazer muito por eles; a não ser, dar um conselho; trocar todas as fechaduras da casa. Alguém poderia estar entrando usando cópias das chaves. Assim que a polícia foi embora, Gustavo ligou para um chaveiro e marcou de fazer a troca das fechaduras e chaves da casa. No outro dia, o chaveiro esteve lá e realizou o serviço. Com chaves e fechaduras novas, Gustavo e Cristina agora se sentiam mais seguros. Só de pensar que algum estranho estava entrando na casa com cópias das chaves, era apavorante.
    Mas quem se daria ao trabalho de entrar escondido em uma casa só para escrever frases inofensivas nas paredes? Essa história era absurdamente estranha. Conversando sobre isso, Gustavo e Cristina deduziram que só podia ser coisa de crianças ou adolescentes querendo pregar uma peça no casal. Mas agora, estavam certos de que os dois não seriam mais incomodados com aquelas “gracinhas”.
    No entanto, alguns dias depois, quando Gustavo levantou para ir trabalhar, levou outro grande susto. Havia mais uma mensagem escrita na parede. Só que dessa vez, era no quarto do casal. Gustavo acordou Cristina e apontou para a parede mostrando a frase escrita. Cristina, incrédula e ainda na cama, começou a chorar, se perguntando o que estava acontecendo ali. Quem poderia estar fazendo aquilo? Aquelas frases pareciam estar sendo escritas por pessoas diferentes, já que as caligrafias eram diferentes umas das outras. Na parede do quarto, a frase dizia: “Querida família, estarei sempre cuidando de vocês”.
    Gustavo não quis assustar Cristina, mas apesar de não acreditar nessas coisas, chegou a pensar que a casa fosse mal assombrada. Cristina se acalmou, levantou da cama e foi tomar um banho. Afinal, o casal passava bem e ela acreditava que tudo logo seria esclarecido. Gustavo ligou para o escritório, avisando que por conta de um imprevisto não poderia ir trabalhar naquele dia. Decidiu que seria melhor ficar em casa. Foi até a cozinha preparar o café da manhã e ao passar pela sala, percebeu que lá, tinha sido escrita uma nova frase. Na cozinha, começou a olhar para as paredes e percebeu outra frase escrita ali também. Aquela situação estava parecendo um pesadelo.
    Gustavo teve uma ideia. Convenceu Cristina de que eles próprios tinham que descobrir o que estava acontecendo naquela casa. Gustavo ligou para um amigo que trabalhava com gravações de vídeos para internet, contou sobre o caso das frases que estavam sendo misteriosamente escritas na parede e pediu ajuda. O amigo sugeriu que eles instalassem pequenas câmeras escondidas com sensores de movimentos e visão noturna, em todos os cômodos da casa. Precisavam instalar uma câmera em cada cômodo da casa, programadas para gravar tudo.
    O casal resolveu que não apagaria as mensagens nas paredes, por enquanto. Precisavam entender o que estava acontecendo ali. A única coisa que tinham certeza é que as mensagens eram escritas durante as madrugadas, ou pelo menos, quando Gustavo e Cristina ainda estavam dormindo. O casal precisava saber quem estava entrando na casa, por onde estava entrando, como fazia isso e o motivo por trás daquelas mensagens. Com o auxílio do amigo de Gustavo, as câmeras foram instaladas na casa; agora era só esperar.
    Alguns dias se passaram e nada acontecia, até que em certa manhã, Gustavo identificou novas mensagens escritas nas paredes da casa, e resolveu olhar as gravações feitas pelas câmeras instaladas nos cômodos. Ele chamou Cristina, transferiu os cartões de memória das câmeras para o computador e começaram a assistir as gravações daquela madrugada. Foram horas de gravações. Assistir as monótonas filmagens dos cômodos da casa foi cansativo, e frequentemente, Gustavo acelerava a gravação com a intenção de buscar alguma pista sobre as mensagens; até que... Descobriram algo impressionante nas imagens gravadas.
    As filmagens mostraram que durante a madrugada, Gustavo começou a se mexer na cama, como se estivesse tendo um pesadelo, ou algo assim. O sono de Gustavo era inquieto e de repente, ele se sentou na cama. Cristina dormia profundamente e não viu Gustavo se levantando. Ele parecia estar em uma espécie de transe, estava estranho, como se estivesse em um estado de sonambulismo. O casal assistia a gravação com os olhos arregalados; sem entender. No vídeo, Gustavo caminhava até a escrivaninha, abria uma gaveta, pegava o que parecia ser um lápis e se dirigia lentamente para a sala.
    No escuro, Gustavo entrou na sala. Ele parou diante da parede e de cabeça baixa ergueu o braço, e sem olhar, começou a escrever algo na parede. Foi assustador assistir aquela cena. Durante todo aquele tempo, era Gustavo quem estava escrevendo aquelas mensagens nas paredes da casa. A filmagem mostra que após escrever na parede, Gustavo volta para a cama e retoma o seu sono, de maneira tranquila. As câmeras haviam esclarecido parte do mistério. Restava saber agora o que estava acontecendo com Gustavo. Após assistir o vídeo, o casal se abraçou, e dessa vez, ambos choraram juntos. O que estava acontecendo?
    Cristina sugeriu que ambos fizessem uma visita a um amigo da família, um médium que atendia em um centro espírita conhecido da cidade; talvez ele pudesse orientá-los. Gustavo estava confuso, mas concordou em ir, queria saber o que estava acontecendo com ele. Cristina ligou para o médium que prontamente se colocou a disposição do casal. Ficou combinado de Gustavo e Cristina irem até o centro espírita no final da tarde. Gustavo armazenou a gravação do vídeo em seu celular, para mostrar ao médium.
    Quando chegaram ao centro espírita, Cristina pegou na mão de Gustavo com carinho, dizendo que tudo acabaria bem. O casal foi conduzido a uma sala de espera e logo em seguida, um gentil senhor vestido de branco os recebeu com um doce sorriso no rosto. Era o médium, que os convidou para acompanha-lo até uma sala e se sentassem a mesa. O local era simples, mas muito aconchegante. A iluminação era suave, na mesa havia uma jarra com água, copos e um vasinho com belíssimas flores compondo a decoração.
    O médium perguntou o que o casal buscava entender. Os dois contaram toda a história das frases escritas nas paredes e que tinham descoberto que aquelas mensagens eram escritas por Gustavo. O médium assistiu ao vídeo que Gustavo tinha copiado no celular e quando o vídeo chegou ao fim, ele sorriu. O casal estava ansioso por uma explicação tranquilizadora. O médium olhou com ternura para Gustavo e em seguida para Cristina; e disse que os dois eram pessoas muito especiais. Disse ainda que Gustavo era um homem iluminado, com uma notável mediunidade e precisaria aprender a lidar com ela.
    O médium começou a dar uma breve aula e explicou aos dois que mediunidade é basicamente a influência dos espíritos sobre o nosso mundo físico e humano. A mediunidade está relacionada com a comunicação entre esse mundo espiritual e material. No caso do Gustavo, tudo levava a crer que ele tinha um dom; o dom da psicografia. O médium esclareceu ainda que a psicografia é a capacidade que certos médiuns têm de escrever mensagens ditadas por Espíritos. Parecia ser o caso de Gustavo. Porém, seria necessário que Gustavo começasse a frequentar as sessões espíritas no centro, para compreender melhor o tema. O médium disse que indicaria alguns livros para o casal se “ambientar” com esse assunto. E frisou que seria imprescindível muito estudo.
    Segundo o médium, o casal não deveria se preocupar; deveria se sentir honrado com tal possibilidade. Sugeriu que fizessem orações por aquelas almas desencarnadas que estavam tentando se manifestar através das mensagens que eram escritas nas paredes da casa. Gustavo precisava entender que ele era um canal que os espíritos tinham para fazer contato com o mundo físico, ou material. Era fundamental que Gustavo conhecesse a doutrina espírita. Dessa maneira, ele poderia ajudar intermediando e tornando possível a comunicação entre dois mundos; esse é o principal papel de um médium.
    Após a esclarecedora conversa com o médium, Gustavo e Cristina ficaram mais tranquilos. Passaram a ler sobre espiritismo, mediunidade e psicografia. Gustavo foi aceitando o dom que possuía, passou a frequentar o centro espírita toda semana e se aprofundou na doutrina. O casal se permitiu abrir espaço para a espiritualidade e religião em suas vidas. As frases nas paredes da casa se tornaram coisas do passado, pois com o auxilio do médium, Gustavo conseguiu exercitar e canalizar o seu iluminado dom no centro espírita. O estudo é um caminho libertador. Com o passar do tempo, Gustavo começou a psicografar cartas. Hoje, ele é considerado um dos médiuns mais conhecidos e respeitados no espiritismo.

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