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literatura,

  • 5h40 & 11h00 & 13h49

    Às cinco e quarenta um céu de azul metálico,
    entre o semicírculo, dominava toda a abóbada
    da manhã que aguardava o fresta da alvorada,
    ainda nas coxias da ex-noite que saiu de órbita.
    Agora, às onze horas, o ciano resiste na encosta
    (as nuvens vieram com seus chumbos esparsos),
    sequestraram os cinzas e espalharam as rochas,
    onde acendi os meus sonhos e subi o despacho.
    Na sacada vejo vários ruídos e ouço os pedaços
    da rua que levitam na elipse do átomo e no bafo
    dos versos que na cerração do poema se formam
    e voláteis sobem e rodopiam e nunca mais voltam.
  • 5h43 (acalanto)

    O morro parece um jardim de plantas variadas,
    quando a manhã produz do alto a névoa cinza,
    mas quase transparente da garoa que se espalha
    no domingo preso em casa dentro da pandemia.
    Não sei traduzir esta lavanda das cinco e quatro
    — fougères amplos, mesclados com o óleo diesel
    das poças cintilantes da água vinda da madrugada.
    O meu olfato é um depósito exposto de imagens
    e vejo o médio, o musgo, o claro, o escuro, o oliva
    e os tons dos verdes que se expandem das árvores,
    feito se acalentassem este dia ácido de melancolia
    no gingado das suas copas que o vento coreografa.
  • 6B

    Grito um silêncio na manhã fria da segunda

    temperada nas ervas da ventania. Na agulha

    procuro na mudez da casa a melodia oculta

    do verso que flutua nas bordas da balbúrdia


    ainda feito a palavra aleatória desse sistema

    atrás dos tapumes. Dentro do porão do poema

    eu tento mexer com as sombras que conjuram,

    cada uma, as preces para outra nova arquitetura.


    A luz de mil imagens modifica o ângulo e a estrutura.

    A linha do horizonte é grafite 6B. Aqui. Ali. Profunda.

  • 7h02 — NRA —

    Dentro da manhã não amanhecida,
    pergunto-me sozinho e novamente
     
    — o que pretende de mim, a vida?
    Serão os versos do meu não poema
     
    ou apenas ser uma testemunha bífida
    do ametista suspenso que ornamenta
     
    o alumínio elétrico e circular das cinco
    — e da nuvem que parece rocha viva?
     
    O vapor das sete sobe e a pergunta fica
    — o que afinal aguardo de mim ainda?
  • 99°GL (inviável)

    O poema é aquele álcool frágil

    e de quase cem graus inviáveis

    que aparece, mas não se instala


    e pousa no trago que você aprecia

    e finge que é seu — e sua a poesia.

    Posa de modelo para a sua escrita


    e sai e sobra o pó das suas vísceras.

  • A Ação

    Não, não há pressa nessa minha velocidade.
    Quando eu me ponho a correr aqui dentro do coração,
    Mesmo que em vida a explodir,
    É só uma brisa o que se estende ao meu passar.
    Sem pressa, que é pra chegar mais rápido
    Que eu vou assim, no andar que sou devagar,
    Que o meu divagar está no que dos meus sonhos é ação,
    E que vigorosa eu sou na corrida que ninguém vê,
    Mas vagarosos são os meus passos de fora,
    No ritmo que o mundo se encontra com o meu correr.
    E ainda que eu vague entre mim e o mundo,
    É com vigor que eu paro e me ponho a observar.
    É sem pressa que me ponho a andar.

    Mas não há pressa, eu paro sim nas fronteiras,
    Mas não daqui, de dentro do meu coração.
    Eu paro sim, mas meu parar é para movimento insinuar,
    É numa brisa que eu chego mais rápido.
    Devagar passando pelo mundo,
    Divagando em ritmo a ação dos sonhos meus,
    Ainda que nos passos pro lado de fora,
    A falta de vigor, aqui de dentro em nada sou vagarosa,
    E que no que o mundo se põe a me observar,
    Parada, vigorosa em mim no meu andar,
    Sem pressa, uma brisa eu, de explodir e de andar.
  • A ÁGUA E A CRIANÇA

    Plim, plim, plim
    - cai uma gotinha
    de água
    entre as folhas
    amarelecidas no chão.

    Logo mais,
    Vai se transformando
    Em fio d'água,
    Fazendo valeta
    Pelo meio do mato.

    Plim, plim, plim,
    - é a nascente
    de um rio,
    cantando, murmurando
    e insinuando
    sua forma líquida
    no chão da Terra.

    Plim, plim, plim,
    - os olhos de uma criança
    acompanham com encantamento,
    a Vida, que se faz
    feito Ternura ao seu redor.

    Lá dentro,
    - no espelho d'água,
    Ela vê o seu rostinho
    Devolvendo-lhe
    O olhar extasiado.

    Nesta água querida,
    Banha o seu corpo,
    Que sente o abraço
    Amoroso da Vida.
    Num Batismo de energia
    e de vitalidade.

    A criança sorri,
    A água murmura,
    Corre e canta...
    A criança é Luz:
    Brinca
    e se encanta.

    Água - criança -
    Luz - Sorriso - Vida - Alegria.

    É o Milagre da Mãe-Terra,
    Envolvendo
    duas Criaturas amadas
    Num abraço de Ternura
    E de eterno Agradecimento.

    Plim, plim, plim
    - cai uma gotinha
    de água
    entre as folhas
    amarelecidas no chão.

    Logo mais,
    Vai se transformando
    Em fio d'água,
    Fazendo valeta
    Pelo meio do mato.

    Plim, plim, plim,
    - é a nascente
    de um rio,
    cantando, murmurando
    e insinuando
    sua forma líquida
    no chão da Terra.

    Plim, plim, plim,
    - os olhos de uma criança
    acompanham com encantamento,
    a Vida, que se faz
    feito Ternura ao seu redor.

    Lá dentro,
    - no espelho d'água,
    Ela vê o seu rostinho
    Devolvendo-lhe
    O olhar extasiado.

    Nesta água querida,
    Banha o seu corpo,
    Que sente o abraço
    Amoroso da Vida.
    Num Batismo de energia
    e de vitalidade.

    A criança sorri,
    A água murmura,
    Corre e canta...
    A criança é Luz:
    Brinca
    e se encanta.

    Água - criança -
    Luz - Sorriso - Vida - Alegria.

    É o Milagre da Mãe-Terra,
    Envolvendo
    duas Criaturas amadas
    Num abraço de Ternura
    E de eterno Agradecimento.
  • A aluna e o professor

    Foi tudo muito rápido, mas foi o suficiente para deixar marcas, que naquele momento achei que não fosse superar e nem esquecer. Bobagem. Hoje, dificilmente lembro do seu nome. Maldito seja o dia que o conheci. Ele não era nada alto, apenas divergia alguns centímetros da minha estatura. Não era nada atraente (beleza era algo a ser discutido), porém era muito intimidador. Eu tinha 16 e ele... enfim. A troca de olhares era constante, contato e a conversa não passava de um simples "Bom-dia!" e um sorriso. Nem me lembro de como nos aproximamos tão de repente e de como nos afastamos. Apenas uma coisa me apetece... estou bem melhor sem ele. Para nos conhecermos melhor, ele se aproveitou da minha fragilidade e necessidade de um amigo que me confortasse. Usou das poucas artimanhas que ainda tinha e seu charme exótico, me pergunto como pude me deixar levar pela sua lábia instigante, intimidadora... muito intimidadora. Ninguém podia desconfiar desse seu outro lado, que tentei (eu juro) desvencilhar. Seu jeito discreto, não se comparava ao homem cara de pau que ele era fora da sala de aula. Nem os meus fetiches mais bobos se resumiam em paixão e sexo com o meu professor. Fetiche clichê ao extremo, não acha? E olha que eu adoro clichês. A paixão não se enquadrava nos meus planos, aliás, conhecê-lo foi uma contingência. Um erro. Ah, se eu tivesse dado ouvidos à uma colega que outrora me disse que me entregar seria um ultraje! Desculpe, minha querida amiga. Eu precisava beijá-lo. Sentir seu gosto vir de encontro ao meu. Porém, a decepção e a repulsa vieram antes do famigerado beijo. Costumo dizer que há males que vêm para o bem. Talvez, fosse realmente necessário eu me afundar nessa tão "doce e amarga" fantasia para que eu desse lugar para o melhor dos amores... o amor próprio.
  • A Anti-Musa

    A válvula da panela girava, a cozinha suava vapor de sopa quente. Cheiro de temperos no ar. O sol lá fora mal entrava pelas janelas veladas com cortinas grossas. O resultado era um cômodo abafado e entregue à penumbra. Uma mulher estava sentada à mesa, diante de um rádio antiquado que ressoava um samba triste. No entanto, não parecia estar atenta aos apelos do sambista, tão pouco à panela ao fogo. Na verdade, ela parecia nem estar presente mentalmente. Em uma espécie de despersonalização, seu olhos arregalados encaravam o azulejo encardido das paredes, mas seu espirito poderia muito bem estar vagando pelo plano astral.
                    “Catatonia: Perturbação do comportamento motor. Geralmente envolve uma posição rígida e imóvel que pode durar horas, dias ou semanas. (E...) A história nos conta que, nesses casos, um doente poderia ser enterrado ainda vivo (!), tamanho seu estado de inércia. (...xaus…) Dentre as condições médicas que podem causar o estado catatônico estão:  esquizofrenia; depressão; derrame cerebral; entre outras condições neurológicas e psiquiátricas. (...ta.)”
                    Alguns minutos ou algumas décadas se passaram...
                                                                                                              *****
    ...e então, subitamente, a mulher deu um pulo na cadeira em que estava. O acontecido pareceu ter impressionado a ela própria, piscou rapidamente repetidas vezes e olhou em volta, como para desvendar em que lugar se encontrava. Seus olhos vagavam pela cozinha, viu a janela encoberta; um armário empoeirado, com portas escancaradas; louças usadas, empilhadas sobre uma pia de mármore; seu velho rádio que ainda tocava alguma música qualquer; uma geladeira pequena, azul turquesa e na porta da geladeira estavam imãs em formato de frutas e legumes. Dois desses imãs mantinham presa uma fotografia, quando os olhos da mulher finalmente se encontraram com os olhos desta foto, o olhar se alterou – passou de apático à revoltado.
                    “(Eu sou um monstro!) Transtorno dismórfico corporal, historicamente conhecido pelo termo dismorfofobia. (Minha pele é seca, meu cabelo é crespo, meu nariz é comprido, meus lábios são muito finos...) Trata-se de um transtorno psicológico caracterizado pela preocupação obsessiva com defeitos mínimos ou imaginários na aparência física. (Eu devia ser colocada em uma jaula...)”
                    O surto perdurou por horas ou séculos.
                                                                                                              *****
    A mulher agora estava sorrindo. No chão, uma fotografia despedaçada coberta de cacos de vidro. Na porta da geladeira, uma mesma imagem encontrava-se intacta, presa pelos mesmos dois imãs. A mulher caminhou até o fogão, a panela chiava incansavelmente.
                    “(O trem! Por Deus, vou perder o trem....) Alucinações auditivas, sinal de esquizofrenia. (Tenho que apanhar o trem!)”
                    A mulher, de maneira impulsiva, agarrou a panela fervente, suas mãos arderam no mesmo instante e vacilaram. A panela despencou no fogão aceso.
                    “(Ai... Como está gelado...) Alucinações sinestésicas, sinal de esquizofrenia.”
                    O rádio sobre a mesa iniciou uma canção que pareceu alegrar a mulher. Uma bossa nova lenta a fez arriscar pequenos passos de uma dança confusa. Enquanto dançava, alguém tocou seu ombro.
                    - Oh, Tom! Como é bom te ver.
                    - Me concede a honra desta dança, madame?
                    Agora ela dançava abraçada com seu par.
                    “Alucinações visuais... Um sério sintoma de pessoas esquizofrênicas. (Sabe, algumas informações você deveria guardar para você...) Na verdade, não acho que seja possível. Quando eu penso você pensa. (Transtorno dissociativo de identidade: conhecido popularmente como dupla personalidade) é uma condição mental em que um único indivíduo demonstra características de duas ou mais identidades distintas, (cada uma com sua maneira de perceber e interagir com o meio.)”
                    A música terminou e levou consigo o lapso de felicidade. A canção que iniciou era alegre, porém a mulher não teve vontade de dançar. Ela se atentou a letra, o cantor falava de sua amada, sua musa. Após alguns instantes, a mulher desabou no chão e começou a chorar escandalosamente.
                    “(Eu nunca serei a musa de alguém. Nunca alguém irá se inspirar em mim.) Ao menos não de maneira positiva... Mas quem sabe quando forem falar sobre sociopatia. (Ah, mas é claro! Que agradável tema...) Bom, talvez você possa convencer alguém a escrever algo para você. (E eu lá tenho cara de Annie Wilkes?!) Na verdade... Tem sim.
                    A lamúria pareceu durar uma eternidade.
                                                                                                              *****
    A cozinha ainda suava vapor de sopa quente. O cheiro, porém, não era nem um pouco agradável. O válvula do bujão borbulhava espuma. O sol estava se pondo lá fora, mas a majestosa luz do crepúsculo mal entrava pelas janelas fechadas e veladas com cortinas grossas, impedindo que os malditos vizinhos xeretassem. “Transtorno de personalidade antissocial...” A mulher sabia que era alvo de comentários maliciosos e não demoraria muito para a vizinhança se reunir para atear fogo a sua casa. “Transtorno de personalidade paranoide...” Ela estava sentada à mesa, diante de um rádio antiquado que ressoava um chiado de estática. Um Marlboro ainda não aceso rolava entre seus dentes, ela refletia:
                    “(Não sou musa-inspiradora de ninguém...) Não é musa inspiradora de ninguém... (...Mas depois disso talvez eu seja.) ...Talvez seja. (Minha cabeça dói...) Tontura... (...Mas a dor vai passar.) A voz irá embora... (Tudo terá fim...) Tem certeza? (Você sabe o quanto é difícil danificar uma válvula de gás?) Você sabe que eu sei. (Sei...) Ideação suicida... (Fim.) ...Fim.
                    A mulher acendeu o cigarro e o cantor pensou nela finalmente.
                                                                                                              *****
    [Inspirado na canção A Anti-Musa de Romulo Fróes e Clima.]
  • A avó que não conheci.

    Eu não me recordo dela, se não por uns poucos quadrados de sentidos breves. Texturas em sepia.
    Entre a cor de sua blusa, o bege dos azulejos da cozinha e o marrom dos móveis, existem cafés com leite e requeijão, bolachas água e sal e cabelos repartidos.
    Minha avó usava blusão, quase uma regata enorme.
    Era azul?
    Provavelmente com diversas bolinhas, deveras velho...
    Todas as memórias de alguém que você não conheceu, são puras verdades e descaradas ficções. Afinal, são memórias borradas, beges e que estão por acabar.
    Porém persiste o "rememorar", que é sentir, um último momento uma última vez.
  • A Bruxa da Arruda e o Sagrado de Tudo

    A manhã estava carinhosamente refrescante em um dia de verão calmo, que precedia o calor do seco e ensolarado tempo impermanente. Acordou às cinco horas da manhã como de costume, e já não tinha mais a necessidade do despertador do seu smartphone para tal feito. Simplesmente os olhos automaticamente em uma só expressão se abriram, o corpo em um só impulso na cama se sentou, e mergulhado nos seus pensamentos do que fazer com o novo dia de quarentena que auto se apresentava, meditava… claro! Aqueles dias eram por demais incomuns, de um lado tinha o dia todo pela frente sem a rotina acinzentada do levantar, correr e trabalhar, e, por outro lado, teria que ser criativo ao esforço máximo, em táticas incomuns e altruístas para não deixar que o tédio com toda sua improdutividade o arrebatasse, sequestrando a sua proposital impulsionada momentânea e intencionada alegria.
    Essa intencional alegria era a Poderosa Presença do Sagrado em sua vida. E apenas se baseava, por incrível que pareça, as coisas e recordações mais simples e singelas da sua tenra infância. Principalmente as lembranças delicadas e afetuosas de sua bisa, a Bruxa da Arruda, D. Darluz. Pelo qual, todas as manhãs, dedicava em um cantinho do seu oratório (em culto aos antepassados) uma vela sentada em um pires repleto de azeite de oliva misturado a sal grosso e mel, um pote de água que diariamente derramava seu líquido em uma específica planta de Arruda (Ruta graveolens), trocando a água do recipiente todas as manhãs, além de oferendas de flores silvestres, como: Cenoura-brava (Daucus carota subsp. Maximus); Centaurea Nigra (Centaurea nigra subsp. rivularis); flor Leopardo (Belamcanda chinensis); flor de Laranjeira (Citrus × sinensis); flores de Onze-horas (Portulaca grandiflora) e Calêndulas (Calendula officinalis). Tudo isso para se manter em conexão permanente com o espírito de sua querida bisavó. Sendo esta, em vida, sua sacerdotisa. E em morte carnal sua guia espiritual. Pelo que lhe prometera em vida terrena, que ao desencarnar nunca o abandonaria e o vigiaria de cima. Dando-lhe inúmeros conselhos e severas instruções ritualísticas de como manter o contato espiritual com sua alma e coração depois de sua partida.
    Para a Bruxa da Arruda, sua bisa, tudo era Sagrado…
    E do Sagrado… e unicamente, pertencendo ao Sagrado!
    Tudo era vivo! E tinha em si um grande e puro significado.
    Tudo era mágico!
    Tudo era místico!
    Tudo era encantado!
    Tudo era rico!
    Sua constante alegria não se baseava em emotivos momentos.
    Era como o constante balançar das árvores que bailavam se animando, apenas, com o tocar dos ventos.
    O seu grande sorriso em sua face iluminada, transmitia a qualquer um que olhava um manancial inesgotável de pleno contentamento.
    As pessoas que iam ao seu encontro de amor se preenchiam, automaticamente renovando esse sublime sentimento.
    Sua bisa lhe dizia que o Sagrado é um estado a ser sustentado constantemente. Um estado de bons hábitos e boas disciplinas que você mesmo se coloca a praticar. Um estado de Amor, de estar amando e de se sentir amado a toda hora e em todo momento, independente das circunstâncias, posses, pessoas, relacionamentos e virtudes materiais ou espirituais. Um estado de simplicidade e humildade, e cumplicidade no serviço devocional, na prática da caridade e solidariedade. Vivendo em perfeita gratidão e sendo gentil não só com as pessoas, mas a tudo em que os nossos sentidos intentar, aplicar e perceber. Lhe dizia que o segredo para vivenciar o Sagrado na prática, estava na gratidão e valorização da vida em todas as suas formas, não diferenciando uma pepita de ouro de uma simples pedra do rio, um ser-humano de uma formiga, a mais iluminada estrela do céu noturno de um singelo grão de areia das praias do mar. E essa valorização é ver a beleza oculta no amago de todas as coisas, sua Energia Divina e Intenção Criativa. Dizia-lhe que para realização de tal feito era preciso se livrar das amarras da má educação de si mesmo, que degenerou os nossos sentidos na elaboração de conceitos e preconceitos, a partir das inúmeras errôneas percepções externas a nossa Linhagem Sagrada, deteriorando e adulterando o nosso pensar, o nosso sentir, o nosso olhar, o nosso ouvir e o nosso falar. E explicou-lhe, que devido a tudo isso, o porquê das manifestações artísticas, arquitetônicas, filosóficas e religiosas de hoje estarem tão feias, rudes, cinzentas, frias, quadradas, embaraçadas e amontoadas, repetitivas e sem coração.
    D. Darluz dizia que por nos desconectarmos das sabedorias dos nossos ancestrais, o nosso sentido do novo e a capacidade do espanto e da novidade assombrosa de olhar tudo de maneira nova, no sublime estado de encantamento e percepção de alerta alegria, se perdeu no mundo. Dizia que o mal das futuras gerações estava na comparação e associação de capturar as impressões, sem a capacidade madura de traduzi-las, sendo essa maneira uma errônea tentativa de interpretar o novo sem a compreensão do velho, desassociando as consequências presentes e futuras das ações passadas. Daí, como ensinava a Bruxa da Arruda, eis a importância de se cultuar os antepassados, pois, uma árvore não pode florir e gerar bons frutos sem o bom cuidado para com suas raízes.
    Voltando ao momento presente, e na cama em que se encontrava sentado, vira como era difícil traduzir a vivência de infância que tivera com sua bisa para o moderno, virtual, tecnológico e competitivo dias de hoje. Sabia que as redes sociais virtuais, ao contrário do que se pensava, alimentava mais as más ações do ego do que o conhecimento (pelo qual era a sua proposta inicial). E que esse contato virtual se tornou uma máquina alimentadora dos nossos mais animalescos instintos, provocando mediante as imagens, sons, cores e palavras as mais variadas sensações emocionais para a satisfação dos nossos mais carnais e individuais desejos de ter ou ser. Não medindo as consequências de um super ego (‘eu’ pluralizado), que busca sempre aquelas ilusórias sensações que lhe possam dar a tão almejada satisfação momentânea, em uma falsa privacidade de no ato de estar solitário cometermos as maiores torpezas, em que julgamos erroneamente não impactar o nosso mundo externo. Vira que a internet, ao contrário do que fora a sua proposta de unir as pessoas, se tornou um luxurioso baile de máscaras, em que as redes sociais eram essas enfeitadas e coloridas máscaras.
    Assim, contudo, preferia estar no seu jardim. Na companhia das lembranças de sua bisa, a Bruxa da Arruda, D. Darluz. Que o lembrava que o mundo ainda era envolvido por uma aura de Novidade Mística, Alegria Mágica e Amor Divino. E que só poderia vivenciar o Sagrado da Vida observando, compactuando, comungando e se relacionando com o Mundo Natural em toda sua essência ecológica. O seu pequeno jardim era totalmente dedicado ao Sagrado e a memória de sua bisavó. Ali… dedicando-se a colocar as mãos e os joelhos na terra, se sentia uma Pessoa Superior em toda sua humildade, dividindo-se entre o observador e o observado, conhecendo a si mesmo na observação dos pequenos seres vegetais, minerais e animais. Se perdendo em um mundo desconhecido de encanto e nostalgia, que o elevava e fazia distante das miseráveis catastróficas vivências de traumas e barbaridades da bestialidade e ignorância humana.
    Ao regar suas plantas em pleno final de tarde, se via quando pequeno sentado no colo de sua bisa em uma balança pendurada a um tronco da árvore de Tipuana (Tipuana tipu (Benth.) Kuntze), em que juntos no crepúsculo vespertino se divertiam olhando as inúmeras nuvens no céu a tomar formas inusitadas de rostos, silhuetas, animais e objetos. E sua bisa, também, instigava a sua imaginação a ver essas formas nas plantas, flores, objetos e coisas. Dizendo que as mensagens dos seres naturais (Elementais) vêm a nós nas formas que a nossa consciência pode reconhecer, por eles falarem uma linguagem desconhecida aos nossos sentidos e dimensão.
    E, lembrou-se das manhãs ensolaradas ao correr pelo terreno da Chácara Celeste (que na verdade era um pedaço do céu na terra) logo ao acordar, indo de encontro a sua querida bisa nos campos abertos, vendo-a colher flores para o seu ritualístico culto matinal. E chegando ofegante até ela, gritava: “Bisaaaaa!”. E D. Darluz respondia com a mesma intensidade: “Meu Miúdo!”. E ela o carregando, abraçava forte e o cobria de beijos, até ele dizer basta. E, D. Darluz lhe dizia: “Olha meu Miúdo, não existe nada neste mundo que é mais adorável que uma flor, nem nada mais essencial que uma árvore e planta, sem elas não conheceríamos o belo, não poderíamos respirar e nem comer, nem nos curar. E, ocultamente a esses benefícios que elas nos trazem ao nosso corpo de carne e seus sentidos, tem ainda a sua função mística, que é a mais relevante, algo divino em que as pessoas comuns e materialistas não têm a capacidade de ver. Uma força mágica e espiritual, eterna e imutável.”
    A Bruxa da Arruda sempre o alertara a valorizar todas as coisas… de uma simples pedra a um pequeno objeto. Como um brinquedo, um utensílio ou algo do tipo. Dizia que tudo tem um propósito e que nada é obra do acaso. Alertara que todas as coisas por serem criações foram pensadas e intencionadas a se manifestarem. Tudo tinha um espírito, mesmo as coisas inanimadas. Pois, sempre afirmará: “O que tem corpo, tem espírito. Tudo é vivo! Toda criação é fragmento do seu Criador, contendo em si uma determinada energia que por mais pequena e singular que seja, é viva em si mesma, presa e magneticamente sustentada nesse corpo, é consciente especificamente para executar tal função, e depois de executada por si só se decompõe e desaparece”. E afirmava que a evolução desses corpos inanimados tinha a ver com a evolução humana, de acordo com seu grau evolutivo. Assim, o inorgânico Elemental podia se manifestar numa pedra, numa mesa, em um relógio de pulso, nos objetos que mais amamos e desejamos, e ainda mais nos brinquedos das crianças, por serem carregados de sentimentos. E que por isso, para seus Rituais da Magia Elemental necessitava dos objetos e minerais… das pedras… das cascas de árvores… dos restos de corpos dos seres vivos e seus derivados, onde se continha ainda preservada a energia Elemental necessária para tal e específica magia.
    Assim, Maria da Piedade…, moradora e proprietária da Chácara Celeste, que se localizava em algum lugar escondido na região nordeste do Brasil…, a Bruxa da Arruda: agricultora, queijeira, azeiteira, parteira, rezadeira, curandeira, e feiticeira portuguesa…, de origem dos antigos povos celtas das terras europeias mediterrâneas da Península Ibérica…, apelidada como D. Darluz…, afirmava que quando nos damos conta da existência do Poder Criativo em tudo que existe ao nosso redor e no nosso viver, quando descobrimos que tudo tem coração e inteligência, que tudo é intenção, e que a toda intenção foi aplicada uma específica atenção, e que a tudo que damos atenção doamos uma determinada fração de nossa energia vital, que se torna um fragmento de vida em si, independente por si próprio e evolutiva em si mesma… Tudo se torna Divino! Tudo se torna Sagrado! A ordem da Grande Espiral do Eterno e Permanente Contínuo.
  • A Busca

    A liberdade não se vive no quase,
    Pois não há entrega para o talvez.
    Isso é alimento apenas para a ilusão
    E boca cheia para o insucesso.

    Certo que as procuras resumem-se em encontros.
    Abrem-se claras quando pensamentos reversos
    Invadem  a vida num viver mais pleno e concreto.
    Considerando sempre novas alternativas em aberto.

    Sendo que para cada chegar houve uma jornada.
    Onde se encontra de tudo que o íntimo se deseja
    Uma procura interior tem a plenitude
    De transformar objetivos em atitudes.

  • A caçada

    Libertar-me de minhas inerentes subjetividades em se narrando as seguintes ocorrências - não acontecimentos excepcionais, tenuamente trançados sob exacerbada e descoesa composição, todavia uma singela e, quiçá, efêmera continuidade psicologicamente indeduzível - caracterizar-se-ia qual jactancioso transcender de meus carnais fronteiriços. Verbetes estes intermitentes em significação, decifrá-los-ei: inumeráveis autores, subentendendo-lhes a disposição criativa, semimpulso hipocondríaco diante da envolvente sociedade, iludem-se em uma estilística imparcial avassaladoramente neutra; facetas carnavalescas. Basta a suas obras análise gentilmente abissal para a revelação de resquícios humano-pessoais. Perdoem-me, não negligenciarei tão profanamente minhas nuâncias substanciais, ainda que se miscigene o lírico e o eu, literariamente onipresente.
    As brisas invernais chicoteavam as melancólicas folhagens bosquis, embora os ares por debaixo do céu lúgubre permanecessem pérfidos e insalubres. Não citarei seu nome, pois este acessório em nada altera, em nada influencia o decurso deste relato; ele trafegava pelos limos à mira do urso. Ah! magníficas eras de outrora! quando os camponeses se banqueteavam em festejos desvairados (desconhecedores da miséria dos nossos camaradas, pobres-diabos, a definhar nas estufas das isbás, pois o médico distrital distancia-se verstas imensuráveis). Aglomeravam-se ao entorno da criatura, em mãos suas rurais ferramentas, enquanto se finalizava o ato com disparos de mosquetes. Contrastantemente, petrificaram-se os mínimos restantes em vilarejos invisíveis no horizonte agora de anil. Emurece aos homens a solidão, como forte marítimo exposto ao lépido resvalar das marés.
    Retardatário, pesa-me a primitiva mochila de combatente, forçando o bruxulear entre contemplações e reflexões. De flamejos infernais camuflam aos limpídos céus as baterias antiaéreas, e projéteis ecoam suas trajetórias em rugidos de iníqua sonoridade. A típica vegetação celta sucumbe a campos negros de guerra total em que depravados sanguinários de espreitas tiranias extirpam a própria Natureza por motivos de inaceitável ofensa à povo meu!
    “I..., levanta-te, homem! As armas, empunhe-as!”
    Sangue, em dedilhares, emana do hematoma, decorrência de meus caóticos espasmos de elucubração traumática. A serenidade do riacho à lateral impõe-lhe a estabilização, por mais te... Rugidos reverberam de uma próxima clareira: arrepiam-lhe os grisalhos filamentos. Pouco há para o defronte dentre a Bestialidade e a Razão(?).
    Solilóquios derradeiros cessam quando me ponho em fugaz avanço. As árvores aparentavam curvarem-se por sobre a subsequente cena: o “Paladino” confrontou olhares de mútuo e mudo ódio para com o volumoso urso negro. Engatilhando a baioneta, direcionei a mira óptica, raridade à época, para o sórdido fronte do animal. Não obstante, em terrificante desmoronar de meu estado espiritual, a sua feminina imagética dela perscruta abruptamente meu ser. A bala ricocheteia em fraguedo aos confins da Taiga, bastião do iminente falecer...
    A aproximação imediata de tal demônio animalesco acarreta horrores tortuosos na mais tocante realidade; perfurações tão abismáticas quanto os poços de Tufão no Tártaro e as cósmicas ramificações da Yggdrasil! Uma póstuma calmaria recai, acentuando provável efígie. Quais insólitas objetivações culminaram nesta fatalidade?! Não prevenção de ameaças rondantes, heroísmo altivo de iniciativa admirável ou nobre comprovação das intuições rupestres; no entanto, atitude insana e leviana, desprovida de causa! Repassares desordenados tumultuaram sua (minha?) mente, analogamente a tempestuosos e relampejantes climas. E estes se deslocavam em tal impercepção, ocasionada pela interiorização severa e a alienação dos sentidos, a limite de, em observação terciária, deduzir-se um louco. Um alquebrado. Um guerreiro em ferrugens...
    “A morte cai por terra diante desta luminescência angelical, I...!”
    Moribundo cativo de tormentos, trancafiado em pensamentos palpáveis! Debilmente a tatear as bétulas e os carvalhos, a minha respiração ofegante, em arfadas discrepantes da recente mística neblina, explicitava clamores de socorro. Deformações humanas principiaram por negrejar aos feixes do luar e aos reluzentes astros celestes, como se o ambiente noturno capacitasse-os a tais tramitares. Rifles polidos e uniformes padronizados emergem desses mórbidos circundantes a fim de engolfar-me, embora meus ridículos pinotes, na mais acachapante experiência destas córneas já antigas...
    “Ouve, levanta-te, homem! As armas, empunhe-as!”, bradou o comandante do batalhão. Resguardávamos uma posição defensiva na terra-de-ninguém, com a disposição de um batalhão de infantaria e, por detrás da trincheira, complementar contingente de artilharia (aqui, de que se validam minúcias técnicas de estratégia, logística e topografia? Não condiz a um humilde servil a opulência intelectual quando se aspira a esta por arrogantes e vis pretensões). A hedionda horda, crente em quimeras pagãs, transpõe as longínquas amuradas nebulosas.
    - O combate urge; não ambicionamos terra alheia, mas não cederemos um único centímetro daquilo que nos pertence! Que se aflore o ufanismo, ao invés de pleonasmo tautológico, lamúrias de um milhão de almas por retidão auspiciosa! Pelos nossos Povo e Pátria, até o inferno marcharíamos para subjugarmos o próprio Satã! - discursou nosso superior, de sabre desembainhado, em meio ao conflito babélico e os “hurras!” das tropas. Resultaram-se uma conquista de Pirro e desventuras de quase dramaturgia trágica. “A morte cai por terra diante desta luminescência angelical, I...!”, proclamou o meu mais perseverante companheiro, meu irmão, em seu depauperamento inevitável e definitivo... Oh! dores titânicas de latência atemporal, que nem palavras inibem!
    Trôpego, adentro os subterrâneos cavernosos de misticismo absoluto. As vozes do passado repercutem-se contraditoriamente, amolando e desgastando a lâmina de minha adaga, qual o Teseu e o Minotauro! O inconsciente abalroamento, certeza incomprovável, implica o famigerado duelo... Ele ausenta-se da entrada escarpada com as glórias de um caçador hábil e auferir a si mesmo. As preocupações lacerantes abandonam-lhe a consciência argentária, enquanto se aparta do bosque em tão fascinante. Faces desfiguradas desfizeram-se em meio a remota névoa de feridas recém-cicatrizadas.
    E ainda que me amartelarem as angústias de sofrimentos valetudinários, boas venturanças suscitam-me a credulidade. “Ivan!”, sim, ela, amiúde, aguarda-mo incansavelmente. Apetece-me o peito inflamado e o desvanecimento subsequente: branca como a neve de invernadas natalinas, os cabelos castanhos mimoseiam-lhe suas feições delicadas, suas mãozinhas de seda e o desabrochar de um tímido sorriso.  Constatações em inexistência de contato considerá-la-iam comum e simplória. Outrossim, pressentem as filantropas paixões os charmes incontornáveis, testemunhados nas mais corriqueiras e fúteis ações. Oh! amor intraduzível e inefável! parto eternamente destas planícies de relva jovial para as imperiais convocações. Vou-me à guerra, estandarte da irracionalidade humana, malquistado entre a ficção e o regozijo nacionalista. Em dificílima delimitação conclusiva, por intrépido que seja, meu coração retumba pelos meus irmãos de sangue, minhas preciosidades naturais, e ela, minha pequena beija-flor, cujo nome, por éons imemoriais, relembrarei com inesgotável ternura...
  • À CAPELA

    Sou aquela sola a qual nunca se acaba,

    a que continua viva e jogada às traças

    dos escanteios empoeirados da casa.

    Me estico no varal das línguas afiadas,


    sob os pisantes dos donos das cocadas,

    na rabeira do pernil sem nem uma prata.

    Estou aqui no pátio desta selva armada

    encoberto pelo caráter aleatório que falha


    feito papel de bala chupada. A dose derramada

    de cachaça do poeta que não serve para nada.


    Escoro a draga do mundo sobre um verso tosco

    e blefo neste sonho vivo, mesmo já estando morto.

  • A cartomante

    Às vezes me sinto ridícula.  Antes não muito, mas essa sensação tem se tornado frequente.  Acho que quanto mais o tempo passa, mais ridícula me sinto.  Ou me faço.  Ainda não sei.  Na verdade, acho que desde sempre fui ridícula, mas como o passar dos anos me dei ao luxo de admitir isso e deixar de lado os véus que sempre usei pra me cobrir de mim mesma em camadas sobrepostas.

    Envelhecer é deixar a alma pelada, penso eu.  Ou pelo menos o menos vestida possível.  Ouso a pensar que só morre feliz aquele que está tão desnudo na hora da morte quanto o estava quando se desgrudava da placenta de sua mãe.

    É isso:  a vida é interregno que se passa entre a nudez do nascimento e a nudez da morte.  Nesse meio tempo vamos colecionando máscaras e véus, peças de roupa de alma que nos cobrem e nos descobrem aleatoriamente, até que um determinado momento da nossa linha da vida o peso se torna tão grande que a derrocada é necessária.  Como em uma curva de função trigonométrica, o ápice precede a caída e para se voltar ao início é preciso descartar o peso das vestes que vão sendo deixadas nos anos que se passam. Então você percebe que é o início do fim.

    Com o despir dos anos passei a aceitar certas atitudes.  Não que eu conte isso para todo mundo!  Algumas atitudes continuam vergonhosas demais para serem admitidas publicamente.  Mas não as escondo mais de mim mesma. Me permito até mesmo rir delas!  Ah sim!  Riso farto e desavergonhado misturado com uma vontade de dar tapas no próprio rosto.  Rir de si mesmo é uma arte terapêutica que aprendemos com o passar dos anos.  Ou é isso ou enlouquecemos... a nós e aos outros.
    Não sou supersticiosa.  Ou sou.  Não importa mais.  Fato é que eu fui em uma cartomante. Sim senhor! Contra todos os meus preceitos e crenças.  Mesmo fazendo gritar a minha pseudointelectualidade roubada dos livros que se amontoavam em minhas estantes. Mesmo dizendo a mim mesma que eu estava louca e que buscava a resposta no lugar menos provável de encontrá-la. 

    Ela havia sido indicada pela funcionária de pouco estudo que estava vivendo uma paixão com um homem casado e que se desesperava de angustia sem saber se o sentimento era de fato correspondido.  Acho que ela sempre soube a verdade, mas que atire a primeira pedra aquele que nunca enganou a si próprio em busca de um pouco de alívio. E eu também não estava a buscar saciedade para a sede na mesma fonte?

    Veja que é importante que você preste atenção ao fato de que a minha funcionária tinha ‘pouco estudo’, porque isso torna ainda mais ridícula a minha atitude e mais reprovável o meu olhar julgador sobre toda a situação. Não interessa o nível de intelectualidade de uma pessoa. As palavras e pensamentos são artifícios que utilizamos para abafar os afetos e pulsões de que somos feitos.  Quem era eu para achar que a angústia dela valia menos do que a minha própria? Quem era eu para reprochar a busca dela tendo como único parâmetro o número de linhas que havia lido ou anos que eu havia tolerado a escola?

    Um século se passou entre a saída de casa e a chegada ao bairro distante da periferia onde ela vivia.  Estacionei o carro na rua de terra e contei até dez.  Percebi que do outro lado da rua estava parado um carro novo e que certamente havia custado mais do que o meu.  Da porta da cartomante saiu um homem bem vestido, com um belo relógio no pulso e sapatos nos pés.  Sempre dei atenção especial a relógios e sapatos, que a meu ver são objetos da ostentação primeira de todo o ser humano do sexo masculino.  Com as mulheres a ostentação se dá de outra forma, acho eu.

    Era a minha deixa.  Esperei até que o outro carro fosse embora, para que minha visita permanecesse anônima e desconhecida.  Contei até dez, respirei fundo e sai do carro.  Toquei a campainha e o portão se abriu com o barulho estridente do mecanismo eletrônico.  Na garagem havia uma mesa simples com duas cadeiras, tampo de granito coberto por uma toalha de renda barata.  Uma caixinha de lata daquelas onde se guarda chá e um maço de Marlboro.

    A cartomante desceu a escada, fechando a porta de vidro que escondia a sala onde seu filho assistia um desenho animado na televisão de quarenta e seis polegadas. Certamente a atividade da cartomancia estava rendendo horrores, considerando que ela tinha na sala uma televisão maior do que a minha, rodeada por sofás retráteis que eu não possuía. A inveja é algo cruel, não perdoa nem as cartomantes.

    Com calma ela perguntou meu signo.  Respondi: Sagitário.  Ela disse algo a respeito de um parente morto que estaria sempre comigo me auxiliando nos momentos difíceis da vida.  Claro que não soube me dizer quem era, pois o infeliz, morto que estava, certamente não quis se apresentar a ela.  Ele também teria vergonha de admitir que foi a uma cartomante, ainda que para me acompanhar.

    Ele me perguntou se eu queria a consulta de vinte ou vinte e cinco reais.  Achei que a segunda seria mais completa e pedi por ela.  Ela me pediu que descruzasse as pernas, pois segundo ela isso atrapalharia o fluxo energético que deveria fluir entre meu corpo e as cartas.  Fui tomada por um ímpeto de sair dali o mais rápido possível, como se a realidade me desse um soco no estomago que me tirasse todo o ar. Mas agora era tarde demais e sair assim, de inopino, seria certamente vergonha maior que permanecer naquele lugar.  Definitivamente eu não queria passar vergonha perto daquela cartomante!

    Me agarrei na cadeira e cortei o baralho como ela me pediu.  Com a mão direta.  Muito importante isso!  Ela acendeu um cigarro e fez a grande pergunta:  o que você quer saber?
    Naquele momento me ocorreu que eu não sabia o que queria saber.  Em todo o trajeto da minha casa até ali e os minutos em que permaneci dentro do carro antes de entrar, eu não havia pensado em uma pergunta.  Eu não tinha apenas uma pergunta.  Ora, eu era uma mulher com seus trinta e tantos anos e tinha uma vasta coleção de perguntas não respondidas!  Como ela se atrevia a me questionar assim, tão sem rodeios, sobre o que eu queria saber? Foi como se tivesse sido estuprada pela crueza da minha interlocutora, que sem pedir permissão (ao menos expressa) pretendia arrancar de uma só vez todos os véus e roupas, pedindo que mostrasse minha alma nua e resumida em uma pergunta! 

    Fiz um esforço hercúleo para me lembrar do que havia me levado até aquele lugar, para começo de conversa. E então ele me veio à minha mente. Ah, qual não foi minha surpresa ao constatar que o mesmo motivo que havia levado a empregada pouco letrada a sentar naquela mesma cadeira e abrir aquele mesmo baralho, era o motivo de toda aquela loucura? Fazer uma consulta com uma cartomante... ah que vergonha!

    Ela me respondeu com frases aleatórias que poderiam ser aplicadas a qualquer situação.  Como eu já esperava.  E eu, que me enganava acreditando ter uma suposta carga intelectual considerável, me vi enquadrando os fatos naquelas premissas que me eram jogadas como pérolas e que aquietavam como bálsamo a ansiedade que me ardia pela resposta que eu não tinha. Paguei os vinte e cinco reais para a moça.  Ela havia merecido.  Com seu baralho e a fumaça de seu cigarro ela não havia respondido nada, mas havia me mostrado tudo.

    Que eu sou um canteiro onde ambiguidades e incongruências florescem a luz do dia sem maiores esforços, adubados pelos traumas que carrego desde o meu primeiro respirar.  Que é mais fácil se doar a estranhos do que se abrir para aquele que eu acredito que representa algo relevante na minha curva matemática. Que aquele que hoje convive comigo todos os dias me conhece menos do que quando éramos completos desconhecidos. Que para a cartomante eu poderia perguntar tudo o que eu quisesse, exatamente porque ela não tinha a resposta.
  • A Casa

    A minha casa eu construí com o brilho de querer brilhar...não é longe nem distinto de si o brilho quando em si já se faz toda intenção de brilhar...mas que na espécie rara da minha voz ao minha casa fitar, o tom absorto dos olhos a todas as portas abrir e em cada chave a vida num novo patamar.
    A minha casa veio de longe nos meus caminhos primeiros a me soprar o brilho da noite de sonhar em brilhar, minha casa se fez apresentar em mim a estrela da manhã de em brilho ver meu coração se contornar.
    A minha casa respira no Amor que construí no brilho de querer amar, e em cada respirar da minha casa em mim se constrói o brilho de com Amor tudo nela cercar...
    A minha casa não é lugar de descanso, mas eis que certo dia hei eu de chegar ao cansaço, e no fôlego último pedir pro fogo me fazer nele respirar...
    Seja como for, na minha casa tem a própria essência de amar em todos os opostos de si e do mundo que se fazem conhecer pra que o Amor possa se sustentar.
    E eu respiro no fogo de ver brilhar o sonho da minha casa os alicerces de construir o sempre querer, e eis que me retomo em mim minha morada de levantar acerca do Amor o sempre perto brilho de ver o sonho da minha casa brilhar. E eis que construo minha casa e minha casa me constrói e porque, no voo incessante de querer o brilho fazer em fogo o construir e o respirar da minha casa em Amor, estou eu pra além da minha casa ver o meu sonho de a partir dela fazer o brilho voar.
  • A casa de trás

    Estrada para a Praia da Solidão, onde os pais do Gabi têm uma casa de veraneio. É a minha primeira viagem com meu novo namorado e, pelo que dizem, a tal “casa de praia” está mais para “palácio real de verão”. Sim, o cara é de família rica, mas antes que me julguem uma interesseira ou algo assim, eu explico: nós mantivemos uma amizade virtual por mais de um ano, antes de nos conhecermos pessoalmente. Fui saber que a família dele era abastada só depois do nosso segundo encontro, afinal ele não é daquele tipo que gosta de ostentar. É rico, porém simples, porque sempre teve grana. Minha mãe diz que ostentação é coisa de “novo rico” e, nesse caso, ela tem razão.
    Então aqui estamos nós, dentro do carro, em direção à praia, onde meus novos sogros estão nos esperando para me conhecer. Como é de meu costume em longas viagens, no meio do caminho eu apaguei. Só acordei com o Gabi me chamando, dizendo que tínhamos chegado e reclamando de ter virado alguma coisa na mochila dele.
    Os pais do Gabi já estavam aguardando nossa chegada e, assim que descemos do carro, eles vieram nos cumprimentar:
    - Você então é a famosa Lisa, hein? Estávamos ansiosos para te conhecer. Eu sou Cecília, a mãe do Gabi, mas pode me chamar de Ceci.
    - E eu sou o Antônio, o pai dele. É um prazer conhecer você, querida!
    - O prazer é todo meu, e agradeço pelo convite.
    Dados os cumprimentos formais, fomos em direção a casa. Realmente, era incrível: à beira-mar, dois andares, janelas de vidro enormes, varanda maior ainda, com uma rede bem convidativa. A suíte dos meus sogros tem uma sacada com vista linda para o horizonte.
    Como se trata de um balneário afastado da cidade, a Praia da Solidão é um lugar tranquilo e vazio, fazendo jus ao nome. Contei apenas quatro casas ao redor: a que estávamos e mais três, duas a leste e uma a oeste; mas sei que existe outra, localizada no terreno de trás da casa deles, cujos proprietários são amigos da família. Parece que ninguém aparece por ali há dois anos, com exceção de um caseiro que vai a cada quinze dias. Depois da morte da Rafaela, filha caçula dos donos da casa, os parentes não colocaram mais os pés por lá. A pobre menina morreu afogada aos oito anos, naquela praia. Uma tragédia total, que desestabilizou a família toda.
    Eu e Gabi largamos nossas coisas e fomos dar uma volta antes da hora do almoço. Ele queria me mostrar a parte de trás da casa, onde fica a piscina e o pergolado. Deitamos nas espreguiçadeiras e deixamos a energia do sol tomar conta do momento. Era um lindo dia de primavera e estávamos muito felizes por aquele fim de semana juntos. De olhos fechados e mãos dadas, ficamos curtindo aquela brisa maravilhosa e o cheiro de maresia que invadia o ambiente. Foi quando escutamos um barulho e, agora de olhos abertos, percebemos uma movimentação na casa de trás.
    - Deve ser o Chico, o caseiro.
    - Não é não Gabi, parece uma mulher, está até com uniforme de empregada doméstica, olha...
    E era mesmo uma mulher. O Gabi a reconheceu: era a Rose, empregada da família dos vizinhos da casa abandonada. Ele levantou para cumprimenta-la, aproximando-se do muro que dividia as duas residências e, ao chamar por Rose, ela olhou rapidamente para nós e disse:
    - Se afastem. Pelo bem de vocês.
    O Gabi achou a reação da mulher muito estranha, afinal ele me contou que ela sempre foi um amor de pessoa, simpática e prestativa, mas, enfim, todo mundo tem seus dias difíceis, né? Logo nos esquecemos da situação, pois já estava na hora do almoço e voltamos para casa. Só lembramos um tempo depois, na conversa do fim da tarde, quando contamos para a Ceci sobre o ocorrido e ela, surpresa, respondeu:
    - Que estranho, porque ninguém está lá. Eu achei que, depois da morte da Rafinha, a Rose havia até se demitido. Era ela quem estava cuidando da menina quando tudo aconteceu e, pelo que os vizinhos me contaram, a coitada da empregada se culpou muito.
    A noite chegou. Depois de um lindo passeio pela praia, eu e Gabi decidimos ir novamente para as espreguiçadeiras. Era nosso primeiro momento realmente a sós desde a nossa chegada, visto que o passeio de antes do almoço foi curto... E um tanto quanto perturbador. Deitamos juntinhos em uma espreguiçadeira e começamos a nos beijar. Foi quando uma luz muito forte nos atingiu, tipo um holofote, vindo da casa de trás.
    - Mas então tem alguém ali! Disse o Gabi.
    - Não vai lá não, pois pelo jeito, nós não somos bem-vindos! Respondi.
    Não adiantou eu advertir. Terminei de falar e ele já estava pulando o muro. Fiquei preocupada e segui em sua direção. Ao invadir a casa vizinha, algo muito estranho aconteceu: o pátio da casa - que conseguíamos ver um bom pedaço da sacada do nosso quarto – parece que havia mudado: era mais estreito, de pedra cinza claro e levava a uma escadaria que, ao topo, tinha uma casinha pequena, tipo uma guarita, com uma cruz no telhado. Se não estivéssemos em uma casa de praia, até poderia definir aquilo como um jazigo, ou algo do tipo.
    Decidimos subir as escadas, pois, se algo incomum acontecia por ali, Rose podia estar correndo perigo. O estranho é que, quanto mais subíamos, mais longe da chegada parecia que estávamos. A escuridão tomava conta do local, depois que aquela luz forte se apagou, e contávamos somente com as luzes dos nossos celulares. Confesso que a partir desse momento, comecei a me assustar.
    Um pouco antes de chegarmos ao topo da escada, aquela luz misteriosa acendeu e apagou novamente, olhamos para trás e vimos Rose à distância, no pátio da misteriosa casa, olhando em nossa direção, séria e... Molhada? Sim, era o que parecia. Rose estava encharcada.
    - Quer descer? Perguntou Gabi.
    - Não, agora vamos até o fim. Respondi.
    Ao seguirmos para o fim da subida, percebemos um vulto na janelinha da casa-jazigo. Subimos os últimos lances mais rapidamente e foi nesse momento que escutamos uma voz de criança chorando, dizendo:
    - Foi ela, Rose me matou!
    Mesmo assustados – e ambos ouvindo aquele estranho apelo infantil – forçamos a porta da casinha, para verificar o que tinha ali. Estava emperrada, porém, juntos, fizemos força e conseguimos abrir.
    Se lá fora estava escuro, a escuridão era ainda maior no interior da casinha. O estranho é que, do lado de fora, conseguíamos ver pela janelinha onde o vulto apareceu. Agora no interior, parecia que não tinha mais janelas. Novamente, a voz falou:
    - Ela me matou.
    - Ela me afogou.
    - A minha hora chegou.
    - Agora é a hora de vocês.
    Assustados, nos direcionamos à porta para sair dali. A porta também havia sumido. Com a luz do celular, procuramos desesperadamente a saída. A voz ficou mais alta, porém menos infantil.
    - Ela me matou.
    - Ela me afogou.
    - A minha hora chegou.
    - Agora é a hora de vocês.
    Mesmo tateando todos os locais, não encontrávamos a saída.
    - Ela me matou.
    - Ela me afogou.
    - A minha hora chegou.
    - Agora é a hora de vocês.
    Sem sinal para ligar ou avisar alguém pelo celular, começamos a gritar por socorro. O pavor tomou conta de mim.
    - Socorro, alguém nos ajuda!
    - Não adianta gritar, desgraçados, vocês são meus agora!
    - SOCORROOOOOOOOO...
    - Acorda gata, chegamos! Essa é a casa de praia dos meus pais!
    - Gabi, GABI! Ah, meu Deus, eu tive um sonho tão horroroso...
    - Ah não, minha loção pós-barba virou toda dentro da mochila, olha!
    - Eh, Gabi...
    - Espera aí, amor, olha aqui, sujou até meu notebook!
    - Você então é a famosa Lisa, hein? Estávamos ansiosos para te conhecer. Eu sou...
    - Cecília, mas eu posso chamar a senhora de Ceci. E o senhor é o Antônio, não é?
    - É... Isso mesmo querida, mas...
    Olhei em volta, e a casa era a mesma do meu pesadelo: à beira-mar, dois andares, janelas grandes, varanda enorme, rede e a sacada da suíte com vista linda para o horizonte.
    - Gabi, amor, precisamos ir embora. AGORA!
    FIM
  • A casinha [Escrevi para a minha filha]

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    Era uma vezinha
    numa cidadezinha
    na sua única ruazinha
    uma casinha
    pequenininha
    espremidinha
    e apertadinha
    só tinha uma portinha
    e uma janelinha
    mas era bonitinha
    estava sempre cheiinha
    e também vaziinha
    pois só cabia uma pessoinha
  • A celestial dança das Almas Companheiras

    Quando a madrugada trina sua entrada, eu rodopio na cama, nu em pelos orvalhados. Beijo o segundo travesseiro, enquanto acaricio as dunas pulsantes do lençol desfeito. Eu ainda não sei o seu nome, mas sinto sua melodia a implorar mil beijos do meu cavanhaque desgrenhado. Desperto, eu quero chorar de alegrias e rir da ansiedade, tudo em simultâneo. Sinto que a visão nos persegue. Eu sei que açoitamos todos os anseios viajantes na linha prata que une os nossos destinos. Um sabe da (nova) existência do outro. Só não compreendemos qual é o Motivo Maior que impede a fusão dos nossos corpos em êxtases nirvânicos. Minha única certeza? É sentir que quando finalmente nos encontrarmos, serei eu a tocar na sua barba e roubar seu primeiro sorriso não mais tímido. E será sua jovial língua a navalhar minha boca grisalha em histerias não mais veladas... durante a celestial dança das Almas Companheiras.
  • A cidade em palavrório

    Pedro Marcelino é um artesão das palavras que encontra na língua popular matéria-prima para os seus escritos, e no fim, essa é a única linguagem que a gente entende. O que o povo cria, nosso memorialista sintetiza e cria-o de novo. Em seu terceiro livro Palavrório e cidade, pulicado pela soteropolitana Cogito Editora em 2022, acerta a mão mais uma vez num livro ainda mais prazeroso que seus antecessores.
    O memorialista, diferente do historiador tem algumas vantagens: pode ser saudoso. Mesmo não vivendo ou conhecendo metade do que o autor viveu, senti saudade dessa Alagoinhas que eu não vivi, e das pessoas que não conheci. Caminhei pelas memórias de Pedro Marcelino e não vi nenhuma rua sem saída. Alagoinhas pujante em suas ruas e personagens excêntricos.
    Essa urbe de coração GG, que a todos recebe e ama como um filho, tem um corpo extenso de afetividades, toponímias e pessoas. A cidade não é um lugar, é uma experiência que envolve os sentidos, os gestos, os hábitos, as relações sociais, econômicas, culturais e políticas. Na Alagoinhas memorial de Pedro, tudo resistiu ao tempo, e ganhou as cores do passar dos anos.
    E o palavrório? Vocabulário popular, informal, nascido do cotidiano, formado na inventividade das massas. É o jorrar do saber dos mais velhos, a piada do barzinho após algumas geladas, o jargão do comerciante à moda Praça é Nossa. A palavra que perdura, a tudo significa e valida. Que confere lugar e poder, e quão brilhante é Pedro Marcelino por dominá-la tão bem.
    Se a cidade é um corpo, o povo é o sangue que corre por suas artérias urbanas, seja ela de terra batida ou asfalto mormacento. Ela tem vida porque fala, e por muitas vozes. Bendita a boca que fala pela cidade, e louvada a cidade que tem o privilégio de falar por Pedro Marcelino. Sua tamanha sensibilidade na escrita permite a qualquer um/a caminhar pela Alagoinhas do século XX.
    O livro tem mais de 200 págs. em papel offset. Conta com orelhas contando a biografia do autor. Prefácio a cargo de Mabel Velloso, comentários de Juliana Silva, Marcelo Torres e Edil Silva. São mais de 70 textos entre crônicas e poemas. Para os que quiserem adquirir, custa R$ 40,00 e poderão comprar no Bar Gota D’Água, perto ao Terminal Coletivo de Alagoinhas; CASPAL, Mercado do Artesão, Alagoinhas-Centro; e no Boteco do Tião e o Vila D’Alagoinhas, na Cavada.
  • A comodidade do Pessimismo

    O pessimismo tem um duplo sentido negativo, o primeiro é embaçar a perspectiva de futuro, o segundo e retardar a motivação, ou seja, destruir a ação quase por completa. O pessimismo é cômodo pois desobriga a nós de pensar no dia de amanhã. Apenas esperamos acontecer, e se não der certo diremos: eu já sabia.

     

  • A conta

    Eu estou morrendo. Sei que todo mundo está, mas eu tenho enfisema pulmonar. Não consigo mais fumar e minha vida é um inferno por causa disso. Tenho que passar o dia na cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo. Nunca me importei muito com como seriam esses tempos, mas sabia que eles iam chegar. Você desenvolve uma certa consciência depois de passar 30 anos fumando dois maços de cigarro por dia. Sabia o que ia acontecer. Assim como quando aceitei ser governador, sabia no que estava me envolvendo. Quando disputei minha primeira eleição para vereador era porque eu queria me envolver. Não é só fazer política ou filantropia, é um estilo de vida. Tem haver com manter tudo como esta: bom para todo mundo. Nem de longe imaginei que as coisas poderiam se desenvolver desta forma. O que você tem que entender é que sempre fiz o que achei que era certo para manter o nosso estilo de vida. Eu tenho esposa, filhos, netas. Sempre achei que quando este dia chegasse seria o fim de um outro começo. Sei que isso não me absolve dos meus pecados, mas eu estou morrendo de enfisema pulmonar. E todo mundo que esta morrendo merece alguma compaixão. Porque todo mundo fez alguma coisa de bom para alguém um dia no vida, e quando se esta numa cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo, é isso que tem que ser lembrado.

    Quando vi a Fernanda pela primeira vez ela estava começando o estágio na Assembleia Legislativa. Era uma jovem estudante de direito, linda. Os longos, e encaracolados, cabelos morenos, o olhar penetrante, as coxas grossas. O conjunto da obra era hipnotizador. Ninguém conseguia resistir aos seus encantos. Admito que quando convidei ela para assumir um cargo em meu gabinete eu já tinha tudo planejado. Sempre fui daqueles que não faz nada sem ter pensado em tudo. Ela não era a primeira, nem eu. Todo mundo faz assim. Acontece. Eu tenho esposa, filhos, netas. Quando ela aceitou o cargo ela sabia o que estava fazendo. Porque o cargo também incluía um apartamento no centro, com cartão de crédito e carro na garagem. Então, se você aceita tudo isso, você sabe que seu trabalho não será exatamente no escritório. E durante dois anos tudo foi uma maravilha. Nós nos víamos de duas a três vezes por semana. A vida pública exige que algumas coisas sejam realmente privadas. Eu não ia no apartamento dela para não ser visto. Nunca éramos vistos juntos. Se você usa uma aliança no dedo anelar esquerdo, e ocupa um cargo público, você não quer que as pessoas te vejam fazendo o que elas fazem. Elas votam em você exatamente porque elas acham que você não faz como elas fazem. Elas votam em você para poderem continuar fazendo o que elas acham que só elas fazem. Se todo mundo soubesse o que todo mundo fez e faz, o que seria desse mundo? E agora, que estou numa cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo, agora isso vai ser importante?

    O que você tem que entender é que jamais imaginei que aquilo ia terminar como terminou. Eu tenho esposa, filhos, netas. Não teria feito o que fiz se não julgasse que havia extrema necessidade. Era muita coisa que estava em jogo. Todos os meus grandes feitos não podem ser ignorados por um incidente. Eu também construí escolas, creches, hospitais. Toda uma história não pode ser questionada por causa de uma estagiária num momento de devaneio. Não é porque estou numa cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo, que estou contando tudo isso. É porque a imprensa vai fazer um escarcéu, vai supervalorizar tudo. Eu tenho esposa, filhos, netas. Não vão respeitar elas e elas não merecem isso. Não estou aqui pedindo absolvição, é só que vejam que fiz o que fiz porque precisava manter outras coisas, que eram boas para todos. Pode não ter sido a melhor escolha, mas era a única que eu tinha. Quando ela apareceu grávida, na casa da minha família, vociferando que eu era um monstro, ela mesmo não deu valor a tudo isso. Em tudo que eu representava, em tudo que eu era. Ela não me deu opções. A questão não é quem é a vítima, é como se reage as coisas. Ninguém é santo. O mundo é muito maior que uma pessoa só, e exitem os seus problemas e os do mundo, e perto dos do mundo, o seu sempre vai ser pequeno. Uma coisa que pode parecer pequena para você, pode ser grande para o mundo. Não era só a minha honra que ia ser atingida, era a honra de todo mundo.

    Quero deixar claro que antes de matar ela asfixiada, e incinerar o corpo numa pilha de pneus, tentei todos os outros meios ao meu alcance para evitar que as coisas terminassem dessa forma lastimável. Não foi fácil fazer o que fiz. Eu não queria. Eu chorei, pedi, implorei. Mas ela tinha vídeos, fotos, conversas. Eu poderia ter dado tudo que ela jamais imaginou ter. Hoje ela poderia estar vivendo bem em qualquer lugar que quisesse. Tentei garantir, com todas as palavras possíveis, que ela e a criança jamais passariam nenhum tipo de necessidade. Muito ao contrário, viveriam sem nunca terem que se preocupar com dinheiro. Teriam até direito a herança. Eu reconheceria o filho quando deixasse a vida pública. Mas ela queria causar um escândalo. Queria usar uma criança para acabar com tudo. O que ela queria era ver tudo que eu tinha construído destruído. Eu fiz o que qualquer um no meu lugar faria. Eu tive que matar ela asfixiada, e incinerar o corpo numa pilha de pneus, para garantir que tudo continuasse como estava, porque estava bom para todo mundo. Eu tenho esposa, filhos, netas, e estou numa cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo.
  • A cusparada

    O fato abominável deu-se aproximadamente às três e quarenta de cinco da tarde, numa quarta-feira. Uma instituição de ensino tão distinta como era a Escola Municipal Casimiro de Abreu, no Mendanha, Rio de Janeiro, viu sua honra ameaçada quando, após o recreio, um aluno traquinas cuspiu num degrau da escadaria, enquanto subia para a sala de aula, no segundo andar. Eu tinha, então, onze anos, e, até hoje, aquele dia não me sai da lembrança, pois, nessa idade, fatos escabrosos assim criam marcas indeléveis na nossa mente.
    Passaram-se alguns minutos desde que nos assentamos em nossas carteiras, e o professor não apareceu. Esperamos por mais um bom tempo, e nada. De repente, desponta sala adentro, não o professor, mas o diretor da escola. Estacou-se, sério e mudo, diante da turma.
    - Alguém cuspiu na escadaria - disse ele, fazendo uma varredura com um olhar rasante por sobre as cabeças dos alunos.
    O silêncio era total nesse momento e, se não exagero, paramos também de respirar.
    - Vamos! Estou esperando! Qual foi o engraçadinho?
    A classe permaneceu tão interativa quanto um exército de cera.
    - Já sabemos que foi alguém desta sala. Não adianta esconder! - o diretor começou a andar de um extremo ao outro da sala a passos largos, as mãos às costas, e eu me lembrei de uma figura de Hitler que tinha visto há poucos dias numa Enciclopédia Juvenil.
    Era a penúltima aula do dia, e ficamos até o final desta sem olhar para outro lugar senão para o ir e vir do diretor. Tocou a sirene para iniciar-se a última aula. Atravessamos estoicamente mais cinquenta minutos, e o culpado manteve-se no firme propósito de não abrir o bico. Depois dos tediosos minutos de mutismo e indiferença de nossa parte, ouvimos a sirene soar pela última vez. Que alívio!
    - Ninguém sai! - vociferou o diretor, estendendo os braços, com as palmas postas à frente, frustrando, desse modo, o levantar precipitado das trinta e quatro nádegas que se desprendiam das cadeiras. - Sentados! Onde pensam que vão? Todos comigo para a minha sala lá embaixo, e já!
    A agonia continuou na sala do diretor. Ele assentado em sua cadeira majestosa, as unhas vergadas a capirotar no tampo oco de madeira da mesa, sem falar um “a”, e, nós, mumificados.
    - É muito simples pôr um fim a este martírio. Basta que o culpado apareça - apelou o diretor, a certo ponto da tortura, em que ele próprio parecia não mais aguentar.
    Passou-se o tempo equivalente a mais um período de aula quando, finalmente, assistimos à cena constrangedora de um menino levantar-se e confessar:
    - Foi eu... senhor diretor...
    E, assim, foi o fim do holocausto.
    “Esse cara tá morto”, pensei. E deve ter sido esse o pensamento de todos ali.
    Sem permitir que saíssemos ainda, o diretor chamou o réu confesso à sua mesa e o advertiu de uma forma surpreendente:
    - Cuspir na escadaria é contra as normas da casa. Você sabe disso, não sabe?
    O menino estava com a cabeça mergulhada entre as clavículas e a voz bloqueada na garganta.
    - Sabe ou não sabe?
    - Sim... eu... sim, senhor diretor.
    - Você cometeu um erro, certo? Reconhece, diante da turma, que cometeu um erro? Diga que reconhece!
    - Sim... eu reconheço, senhor diretor.
    - Pois bem, filho. Espero que nunca mais repita esse ato deplorável. Não quer passar por essa vergonha de novo, quer?
    O menino meneou a cabeça negativamente.
    - Aprenda: Daqui em diante você observará melhor sua conduta na escola. E é muito feio não assumir quando se comete um erro. Errar é natural do ser humano, mas não assumi-lo é covardia, é desonroso. E veja que prejuízo pode causar: se você tivesse se levantado e assumido a culpa na primeira vez que perguntei, todos os seus colegas já estariam em casa há muito tempo. Nunca mais faça isso de novo, nunca mais! Agora, podem sair.
    Anos se passaram e, não mais como aluno, mas como professor, e não mais no Rio de Janeiro, mas em Espera Feliz, Minas Gerais, entrava eu na sala dos professores do colégio em que lecionava, e deparei-me com uma professora, colega de trabalho, que acabava de chegar esbaforida, tensa, com uma cara vermelha de quem comeu meia dúzia de acarajés quentes. Perguntei-lhe o que havia acontecido, e ela me respondeu com os olhos arregalados de espanto:
    - Meu Deus do céu... aconteceu uma coisa absurda comigo agorinha mesmo na sala de aula onde eu estava. Sabe o Michael Jackson, aquele garoto de dezoito anos do 3º 2? Pois então, abaixei-me um pouco sobre a carteira dele para lhe chamar a atenção por ter xingado o colega ao lado de “filho da puta”, e ele cuspiu na minha cara! Você acredita que ele teve essa petulância?
    A professora, aviltada até os ossos, não conseguiu entrar naquela sala novamente naquele dia, tomou um Rivotril, passou o caso à Direção da escola e foi embora de ônibus, pois não estava em condição de dirigir. E o que fez a diretora? Aplicou um corretivo no cuspidor? Enquadrou-o no Artigo 331 do Código Penal, que prevê punição para quem ofende, humilha ou espezinha funcionário público no exercício da função? Chamou o meliante para uma lição de moral, assim como fizera o saudoso diretor da Casimiro de Abreu, nos idos de 1981? Dera-se pelo menos ao trabalho de conversar qualquer coisa com o rapaz, qualquer coisa mesmo: uma miudeza de duas ou três palavras de protesto, só para não deixar que ficasse tão evidente a verdade de que ela estava pouco se lixando para o caso? Não. Em vez disso, a professora recebeu uma intimação judicial 20 dias depois, para comparecer ao Fórum 30 dias depois, sendo condenada a três meses de prestação de serviços comunitários por 180 dias depois, e, porque o juiz julgou como bem grave a denúncia que Michael Jackson apresentou contra a professora, dizendo que ela havia sido preconceituosa e o constrangera muito ao dizer que a saliva dele era suja - ora, onde já se viu, só porque ele era “preto”? -, teve seu diploma cassado 181 dias depois
  • A Dama Mourisca

    A dama mourisca, tal qual Sefora, a sacerdotisa
    Equilibra o seu temor
    Sobre o brilho daquele áureo candelabro.
    Delicadas elipses,
    Teias tecidas na conjuntura da infinitude
    Naquele céu noturno do corpo feito lua minguante.
    Sem corda para segurar, sonha-se o sonho.
    Dos espaços sem limites, o olhar pende...
    Para onde?
    Duplo éter daquela viagem.
    Naquele momento ela finge lançar-se desavisadamente
    Ao som de uma música que só ela ouve.
    Circunscrita por um cortejo ígneo
    Que há tantas jornadas a acompanha,
    Ela é a própria razão de ser da luz.
    Guardiã e súdita.
    Confidente e mensageira...
    Ela solta seu corpo e tudo gira.
    A vida, ideias, imagens, paisagens, histórias, pensamentos, premonições e distúrbios.
    Em que se pendura esse candelabro de samsara?
    Quando vai voltar a rodar?
    A (equilibrista) moura mantém seu delicado equilíbrio.
    Prazerosamente, ébria no seu próprio ser.
    Obediente aos ditames
    Daquilo que julga fazer ela parte
    À maneira do fio que enlaça as contas do colar,
    Confunde-se inevitavelmente ao seu desenho.
    ...Numa noite qualquer de estrelas presentes, ela retornará
    Para nos alertar sobre o próximo giro da roda.
    Tomará fôlego, e sorrirá.
    Um sorriso calmo e acolhedor. Compreensivo...
    E, embalados por esse semblante, desta vez, nós sonharemos.
    Enquanto ela, dançará...
  • A Desconstrução

    Eu vou a chão, e que nada me sustente.
    É face a face não no espelho de mim,
    Mas no que sou sem imagem.
    Eu vou ao chão nas minhas construções
    Ora ver ruir os cuidados e as bases,
    E que nada me sustente nas cinzas indistintas,
    E que nada me decifre no caos e no queimar dos olhos:
    Que do pó e da lágrima,
    Depois que vento é do tempo ação,
    Há de ser água a emprestar à vida condição,
    Num instante do que é prestes a se fazer,
    O nada se figura em ponte,
    E eu vou ao chão, em água deitar,
    Não me sustento,
    E há de ser o fogo a vida a começar,
    Se espalhar eu, pela água, em meu elemento.

    E eu vou ao chão, sem laços de sustento na base,
    Lapsos da construção, amando o ruir dos espelhos:
    Meus reinos sem capitais.
    Não mais reflexo, eu sou imagem.
    Eu vou ao chão sem cuidados,
    Mesmo que indistinta nas cinzas,
    O caos se decifra no queimar das águas nos olhos:
    Na lágrima o tempo em ação que com o vento vem o depois.
    E dos meus olhos me fiz de vida condição e do nada um instante:
    Criação, eu em meu elemento.
    E eu vou ao chão, porque sou ponte,
    E no fogo a vida pela água, do começo ao se espalhar,
    Eu em meu sustento.
    Eu vou ao chão, para chão ser.

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