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literatura urbana

  • ‘EU’, ‘ELES’ e ‘NÓS’

    Sabíamos que estávamos sendo vigiados por ‘ELES’. Muitos relatos de abduções, fotografias e filmagens de suas naves e tecnologias não paravam de ser publicados nas redes sociais. Porém, por esforços dos governos mundiais que negavam e ocultavam os fatos, e também, por uma certa mescla de realidade e fantasia nos filmes e seriados hollywoodianos, e, provedoras globais de fluxos de mídias via streaming, além da ignorância que era pregada nas diversas religiões de sermos o centro do universo, ignoramos os sinais por ‘ELES’ transmitidos.

    ‘ELES’ até que apelaram a partir da década de 1970, quando começaram a desenhar os agroglifos nas culturas de certas gramíneas, por meio do achatamento de culturas como: cereais, colza, cana, milho, trigo, cevada e capim. E era obvio que não tínhamos ainda tecnologias para realizar o feito desses complexos e grandes desenhos em apenas algumas horas. Mas, mesmo assim, ignoramos. E, criamos soluções para explicar o inexplicável, e tudo foi abordado como um feito fictício. Então, pagamos o preço por mesclar a realidade e a fantasia, não sabendo mais diferenciar uma da outra. Assim, preferimos viver o engodo, e fomos enganados por nós mesmos.

    Entretanto, ‘Nós’ criamos a S.U.P.E.R (Superintendência Universal Para Extraterrestres Relações), em que na verdade era uma organização oculta e privada, que se fantasiava de uma Ecovila Sustentável criada por uma rede mundial de cientistas alternativos ufólogos, e pequenos empreendedores startup nos ramos da cyber tecnologia e biogenética (biohacking).

    Éramos perfeitos na arte do engodo, pois utilizamos as técnicas alienantes do sistema contra ele mesmo, ao fundarmos nossa Ecovila na Patagônia, que cobria uma área como mais de 239 km², banhada pelos paramos das geleiras andinas, com terras hiper férteis. Abrigando uma população de mais ou menos cinquenta e cinco mil habitantes de várias nacionalidades do mundo. Em que nosso maior foco agrícola e produção eram cânhamo, cannabis medicinal, morangos, uvas, cerejas, cevada e lúpulo, além de muitas criações de animais. E assim, fabricávamos os melhores vinhos, cervejas de cannabis e espumante de morango do mundo. Tudo de origem orgânica e primeira qualidade, e sem a necessidade de máquinas elétricas, ou movidas a combustíveis fosseis, tudo manufaturado a moda antiga, em que o trabalho humano e animal era o nosso maior forte.

    Vivíamos como antigos povos, antes da revolução industrial, nossas roupas, casas e utensílios eram manufaturados naturalmente, e nossas tecnologias eram 100% artesanais, permanentes e renováveis. Também, focávamos em energias sustentáveis como eólicas e fotovoltaicas, em que criamos a maior usina sustentável do mundo, que fornecia energia para todas as vilas da Patagônia por um custo acessível e barato, além de doar energia de graça para todas as dependências e prédios governamentais dessas vilas. Estratégia nossa, para implementar esse projeto com apoio intergovernamental, tanto da Argentina como do Chile.

    Porém, tudo isso não passava de uma capa que cobria o livro. Pois, subterraneamente éramos outra coisa.

    A S.U.P.E.R era um segredo de um punhado de famílias dentro da Ecovila, punhado esse, que era formado pelas pessoas menos relevantes da nossa comunidade eco agrícola. Na verdade, ‘NÓS’ éramos os fundadores dessa comunidade, mas passamos o nosso poder para os antigos moradores da região, transformando-os de simples camponeses em grandes empreendedores. Alguns ganhadores de prêmios Nobel e outras condecorações internacionais. Porquanto, eles eram nossas máscaras, e nem eles, como também, os outros moradores da Ecovila sabiam disso. ‘NÓS’ éramos um mistério… um segredo bem guardado por pactos de vida e morte, em meio ao paraíso andino.

    No submundo dos nossos quartéis subterrâneos, situava o centro tecnológico e informativo de nossa inteligência. Tínhamos uma empresa operadora de satélites, a StarSky Corporation, que atuava em 52 países com sedes em Israel e na China, além de 32 empresas subsidiarias de telecomunicações espalhadas pelo mundo. O que facilitava nossa rede de comunicações e informação, dessa forma, tínhamos olhos e ouvidos em todo lugar.

    Contudo, estávamos também sendo vigiados, e de início não sabíamos. Aquele fato da coisa observada, observar o observador. Pois nossos servidores se utilizavam da surface web, ou deep web como era mais conhecida. E, ‘ELES’ é que eram os verdadeiros donos do iceberg como todo. E, assim, os nossos olhos e ouvidos eram, também, os olhos e ouvidos deles. Seus motores de busca construíram um banco de dados, pelos seus spiders, e através de hiperligações indexaram nossas informações aos seus servidores na deepnet. Quando descobrimos que estávamos sendo escaneados, toda nossa informação já eram deles.

    Quando nossos hackers investigaram quem são ‘ELES’, se depararam com uma parede de proteção inacessível, em uma (darknet) parte do espaço IP alocado e roteado que não está executando nenhum serviço. Até para as inteligências dos governos mais poderosos o acesso era fechado, pois se utilizavam da Dark Internet, a internet obscura. E de cara percebemos que ‘ELES’, os não-humanos, eram quem estavam nos vigiando.

    Contudo, resolvemos abrir o jogo e mandar mensagens para ‘ELES’, em um projeto apelidado como: חנוך (Chanoch). Durante meses enviamos várias mensagens, então, de repente, nossos servidores detectou uma mensagem oculta que dizia: “E andou Enoque com Deus, depois que gerou a Matusalém, trezentos anos, e gerou filhos e filhas. E foram todos os dias de Enoque trezentos e sessenta e cinco anos. E andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou.”.

    Ao receber aquele texto, ficamos perplexos. De início, achamos ser uma brincadeira. Até recebermos outra mensagem, que dizia: “E sucedeu que, indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho”. Então, depois de longas horas de reflexão, intentamos que as mensagens vêm a nós na forma e maneira que podemos perceber. Sendo, que eles queriam escolher alguém entre nós para uma viagem. Não sabíamos como responder a tal pedido, e mandamos uma mensagem correspondente do que temos de fazer para realizar tal acontecimento. E, eles nos responderam com três sequencias binárias: 101.

    No dia seguinte a essa misteriosa resposta, para o nosso espanto, fomos notificados por um de nossos agricultores que se encontrava no campo de cevada, se deparando com um símbolo gigante desenhado ‘IOI’. Então, rapidamente percebemos que aquele campo seria o local de contato. E, ‘EU’ fui escolhido para a tal viagem com ‘ELES’. Então, todas as noites acampei no local marcado.

    Acho que propositalmente, na noite 101 em que me encontrava sozinho em minha barraca, e já desesperançado de algum contato, ‘ELES’ vieram! E de súbito só me lembro de ver uma forte luz branca.

    Quando acordei, me deparei em uma maca feita de uma solução gelosa, de um verde fosforecente, algo como se estivesse deitado sobre água, mas, era firme, e amaciava com o peso do meu corpo. Não tinha temperatura, nem frio e nem quente, e o mais louco é que meu corpo não sentia esse material, era como se eu estivesse deitado sobre o ar. O ambiente era de uma luz violeta neon, muito calmo aos olhos, e não tinha paredes, teto ou solo. O silencio era profundo, irritante e assustador. Para todo o lado que eu me voltava, via apenas um horizonte infinito, tanto para cima como para baixo. E tive medo de sair da maca, pensando cair nesse infinito abismo. E a sensação era por demais desconfortante, achei que estava morto.

    Nisso, me senti sendo vigiado, algo ou alguém me observava, e vi alguma espécie de vulto transparente se locomover ao meu redor. Então, pela primeira vez senti algo que me tocou!

    — Uai!

    — Calma!

    — Quem é você?

    — Então, provou.

    — Provei o quê?

    — A sensação de sentir nada.

    Ao ouvir isso, perplexo me calei. E pasmei! Vendo uma espécie humanoide alta e magra a minha frente. Com olhos extremamente azuis e findados como os asiáticos, cabelos brancos longos, e pele extremante branca, fria como a de um cadáver. E, diante do meu silêncio e espanto, ela continuou a dizer, falando sem mexer a boca, que mais parecia uma fenda em seu rosto magro:

    — Assim, somos ‘NÓS’. Não temos a capacidade de sentir como vocês, e os invejamos por isso. Essa forma que você vê a sua frente, não é nosso corpo. É apenas um traje, pois vocês não têm a capacidade de nos ver sem ele. Somos seres pertencentes a outra dimensão, que vai muito mais além de sua física e compreensão.

    — De onde são vocês?

    — Somos seres da Quarta-Vertical, um mundo mais além do que a matéria física. E, nesse momento você está diante de uma plateia de nós. Não pode vê-los, pois, estão sem seus trajes físicos. Porém, saiba que também você usa um traje, e ele que te faz sentir. Mas, nós, mesmo com nossos trajes, não podemos sentir como você sente, e perceber como você percebe. Apenas percebemos as coisas físicas, através de alguns impulsos elétricos de contato nos transmitidos por nossos trajes, que são mínimos, sem sentimentos e emoções.

    — Onde fica fisicamente a Quarta-Vertical?

    — No plano físico, conhecido por vocês como seu sistema solar. Em que nossa Morada é o Sol.

    — Então, estou no Sol?

    — Claro que não! Seu corpo físico não aguentaria.

    — Onde estou?

    — Em nosso ponto de contato. Na parte oculta da Lua. É daqui que o observamos, desde sua criação como seres existenciais. E, temos alguns de vocês aqui conosco. Na verdade, somos seus guardiões, mensageiros e protetores.

    — Protetores! Contra quem nos protegem?

    — ‘DELES’ e de vocês mesmos. Pois, se assim não fosse, vocês não mais existiriam como espécie.

    — ‘DELES’ quem?

    — Aqueles a quem vocês chamam de seres infernais. No início, ‘ELES’ eram como ‘NÓS’, e vieram de ‘NÓS’. Mas, se corromperam. Pois, desejaram sentir a emoção que vocês sentem. Por isso, eles lhes causam dores e prazeres, para sugar as energias de seus sentimentos. E, fazem isso agora, através da internet. Por isso, lhes deram esses pequenos dispositivos que vocês carregam em suas mãos. O próximo passo deles, é implementar esses dispositivos aos seus corpos físicos. Aí, então, drenarão suas energias vitais, como um canudo drena o líquido numa garrafa de refrigerante.

    — Onde eles vivem?

    — Antes viviam aqui na Lua, depois os expulsamos para Saturno e Plutão. Mas, quando fizeram o pacto com os muitos chefes e governantes de sua sociedade, precipitaram-se na terra. Quando teve uma grande chuva de meteoros. Então, agora vivem entre vocês.

    — E, como podemos reconhecê-los, se vivem entre nós?

    — São os seres lagartos, mas se disfarçam com trajes humanos. Por tanto, seus trajes se alimentam de sangue, e são sensíveis a luz do sol. Por isso, procuram andar mais a noite, e poucas vezes a luz do dia. E, para resistir a luz diurna, precisam beber inúmeros litros de sangue humano fresco e vital. Só assim, os trajes resistem por mais tempo. Porém, alguns deles se tornaram híbridos, cruzando com a sua espécie. E são metades humanos e ‘reptilianos’ como alguns de vocês qualificam. Mas, mesmo assim, precisam de sangue humano para viver. E, como vampiros modernos, eles criaram os bancos de sangue, espalhados por todo mundo. Onde vocês creem estar doando sangue para pacientes hospitalizados, mas apenas 2% desse sangue vai para esses pacientes que necessitam, o resto é comercializado entre eles.

    — E por que vocês não nos alertam sobre isso?

    — Não podemos interferir. Foram vocês que atraíram eles. Suas escolhas. Seus livres-arbítrios.

    — Como assim, nossas escolhas?

    — Por acaso, você não leu a parábola de Adão e Eva?

    — Mas, isso é apenas um mito!

    — Não é apenas um mito. É uma metáfora da realidade, representado em sua espécie dividida entre macho e fêmea. Um código, para os sábios decifrarem.

    — E, por que não nos contam a verdade diretamente, e só nos dão metáforas?

    — Veja o que vocês fizeram com a verdade… ridicularizaram. Enviamos muitos para lhes dizer a verdade. Muitos de nós nascemos como avatares para lhes falarem, e veja o que nos fizeram? Nos mataram, assassinaram, minimizaram. E, mesmo nascendo entre vocês como humanos, ao longo do tempo nos transformaram em engodo e mito.

    — Mas, isso foi em tempos de muita ignorância. Hoje temos tecnologias para registrar e comprovar.

    — Tempos de muita ignorância… saiba que não existe tempo onde a ignorância é mais forte e abrangente do que esse em que vocês vivem. Suas redes de informação, academias e filosofias são lotadas de teorias e não de práticas. Vocês não experimentam mais. Não observam mais… só emulam. E agora que mesclaram a realidade e a fantasia, você acha que nos ouviram? Seremos ridicularizados e banalizados mais uma vez… por isso, agora agimos em oculto sigilo. E falamos na linguagem que vocês não podem deturpar, que são as parábolas e metáforas. Poesias de mistérios místicos e ocultos, que lhes encantam, e fazem pensar. Até serem assimiladas por corações puros, lapidados e lavados que nascem entre vocês.

    Ao ouvir aquelas palavras, o mundo parou em mim. E, lágrimas rolaram do meu rosto.

    — Ernesto! Ernesto! ¡Despierta hombre!

    — Ahh! ¿Qué?

    — ¿Qué haces aquí acampado en el campo de cebada güevón?

    — No lo sé … De repente tuve un sueño confuso. No me acuerdo.

    — ¡Vamos! Es tiempo de cosecha. Creo que perdimos una buena cantidad de grano. Bueno, creo que hubo un torbellino esa noche que aplastó los tallos fértiles.­
  • "Se os negros fossem rosas"

    Foi em um show, eu vi homem que passava nas arquibancadas vendendo rosas. Tal figura, prendeu minha atenção por ser o estereótipo do que chamaríamos de favelado. Um negro favelado, vendendo rosas. Sozinho, alheio ao show, a euforia e as conversas, pensei, "e se negros fossem rosas?"
    Seriam rosas escravas, vendidas, humilhadas, exportadas, de seu belo hábitat natural. Seriam um conjunto de rosas fugitivas, rosas fortes, que com seu trabalho, enfeitaram o buquê nacional. 
    Rosas pobres, exiladas nos morros, presas na miséria, empurradas para favela. Seriam, mesmo assim, rosas felizes.
    Vendo atrocidades históricas, pessoas presas por racismo, mortas pela intolerância, "confundidas", julgadas e com suas vidas destroçadas, por conta de um simples engano, se fossem rosas, estariam vitimadas, despetaladas, sem cor, pisoteadas, inúmeras rosas vermelhas a forrar o chão.
    Se os negros fossem rosas, o Brasil seria um roseiral de indizível tamanho e beleza. 
    Por fim, se os negros fossem rosas, seriam trabalho, luta, conquista, sonho, talento, crescimento e canção. Um botão de esperança, florescendo no lado esquerdo do peito.
  • "Senta aqui, vamos tomar um café"

    Senta aqui, vamos tomar um café?! Jogar conversa fora? Rir pra caramba, quem sabe chorar em algum momento. Senta aqui, vamos falar sobre nós! Como você está? Seus planos? Suas conquistas... Conta mais.

    Senta aqui, vamos matar a saudade de nós, vamos aproveitar um tempinho livre pra descansar a cabeça, o corpo! Senta aqui, vamos falar sobre sonhos, até mesmo daqueles mais cabulosos, quase impossíveis! Senta aqui, vamos olhar dentro do olho, ver como estão brilhando. Senta aqui, me deixa ver como você está bem, como você está feliz!

    Quero sentir seu abraço por alguns instantes. Ouvir sua voz, sua risada. Senta aqui, deixa eu te contar como eu estou como me sinto. Senta aqui, quero te contar uma ideia maluca que tive. Senta aqui, lembra aquela viagem que eu queria fazer, deu certo! Senta aqui, me ajuda a fazer uma lista de prioridades! 

    Preciso ir... Obrigada pela companhia, pelo café, pelo abraço, pela voz doce e suave, pelos conselhos impagáveis, pela companhia maravilhosa, pelas gargalhadas que demos, pelas bobagens que falamos e pela saudade que matamos!
  • (SOBRE) O CADÁVER DA BELEZA

    Uma lágrima-sorriso
    se verteu do amar dos olhos,
    com tanto sal, com tanta vida
    quanto a própria luz do olhar.
     
    Uma lágrima choveu do céu dos olhos seus,
    brincando com os ares do rosto,
    num sorriso cáustico
    de que mesmo a vida
    já teria sido sonhada
    alguma vez...
  • 10 coisas que você precisa saber sobre a Marcie [conto]

    1 - A Marcie é a mulher da minha vida.
    Desde a primeira vez que a vi soube disso. Nosso olhar se cruzou num dia mágico na praia e foi como ter uma visão da revelação. Seus cabelos morenos e longos brilhavam com o sol e ela vinha caminhando com leveza. Todo mundo olhava para ela passando, mas foi em mim que ela fixou o olhar e sorriu. Parecia que a gente se conhecia há anos. Ela tinha um sorriso apaixonante que dizia fomos feitos um para o outro. E a Marcie sempre soube disso.
    2 - A Marcie é bonita.
    Não é uma beleza vulgar, dessas carregadas de pó de arroz e batom vermelho bem ajustadas num vestido caro. Ela não precisa ser sexy. É uma beleza pura que vem de dentro. A Marcie é bela de um jeito diferente. Não tem nada haver com a simetria perfeita do seu rosto e do seu corpo macio e cheiroso. Ela emerge do fundo de sua alma e brilha nos seus olhos, se espalha com suas palavras.
    3 - A Marcie é elegante.
    Seu comportamento reflete todo os atributos de uma dama. Seu jeito simples de andar é encantador. A Marcie não precisa de jóias caras e chamativas para atrair toda atenção para si. Sua elegância está justamente em ser notada pela beleza natural. Está no vestido sempre abaixo do joelho ou na calça jeans alta. No seu cabelo liso sem penteados extravagantes.
    4 - A Marcie é inteligente.
    É incrível como ela sabe um pouco sobre quase tudo, e é sempre o pouco mais importante. Ela cursou arquitetura na faculdade. Todas as vezes que conversamos aprendo uma alguma coisa que não sabia, as vezes nem imaginava. Ela é bem informada, leu todos os clássicos da literatura e os melhores romances já escritos, e ainda assim sempre está lendo um livro novo. A Marcie não é desse tipo de sentar na sala e ficar vendo novelas.
    5 - A Marcie não reclama.
    Ela não é daquele tipo que sempre diz que poderia ser melhor ou que só vê as coisas do pior ângulo. Quando fala alguma coisa é sempre positiva. Ela sempre está disposta a ajudar com um bom conselho ou colocando a mão na massa mesmo. Não fica pensando em como poderia ser melhor ou no que está ruim. A Marcie não fica pedindo as coisas, ela vai lá e faz. Ela não é petulante, sabe escutar.
    6 - A Marcie é feliz.
    Seu semblante de paz espelha com exatidão o que é a felicidade. Ela está sempre tranquila e disposta. Não é aquela felicidade boba de quem ri de qualquer besteirinha. É uma coisa genuína de uma pessoa que está de bem com a vida, que sabe como ver o lado bom das coisas. A alegria parece uma coisa natural para Marcie. Ela nunca acorda de mau humor e esta sempre num astral contagiante.
    7 - A Marcie é boa cozinheira.
    Os antigos até poderiam dizer que ela me pegou pelo estômago. Antes de eu levantar ela já fez café e preparou o pão. Pão caseiro, ela diz que na padaria eles não peneiram a farinha, por isso nunca está macio. A Marcie nunca repete o prato no almoço e na janta, e é sempre um mais gostoso que o outro. Os doces são sensacionais, e sua especialidade é o bolo de chocolate. Ela diz que aprendeu suas receitas com a sua avó, e o principal ingrediente é o amor.
    8 -  A Marcie sabe como apoiar um homem.
    Ela tem o time perfeito do que falar, quando falar e como falar. Sabe exatamente a hora certa de fazer as coisas. Está sempre pronta para ajudar e, mesmo nos piores momentos, tem sempre uma palavra consoladora e um gesto tenro para amenizar qualquer tipo de sofrimento. Ela entende a importância do futebol, não me obriga a abrir mão de nada para estar sempre ao meu lado. A Marcie estava sempre preocupada em ter certeza que eu estava bem.
    9 - A Marcie é do bem.
    Nunca vi ela fazer mal nem a uma barata. Quando as via ela, cuidadosamente, as varria para fora de casa. Com a Marcie parecia que tudo sempre ia ficar bem. Ela era voluntária na igreja, na escola, no hospital ou em qualquer lugar onde alguém necessitasse de ajuda. Com ela não havia surpresas, a Marcie sempre ia fazer a coisa certa. A Marcie sempre ouve o que as pessoas têm a dizer com atenção, como se fosse o assunto mais interessante do mundo.
    10 - A Marcie não existe.
    Sou feio, pobre e gordo. Nenhuma mulher nunca me quis. Eu entendo elas. Também nunca ia querer uma mulher feia, pobre e gorda. Por isso criei a Marcie na minha cabeça, para ter uma companhia e poder sofrer de amor como todo mundo. Funcionou.
  • A Bruxa da Arruda e o Sagrado de Tudo

    A manhã estava carinhosamente refrescante em um dia de verão calmo, que precedia o calor do seco e ensolarado tempo impermanente. Acordou às cinco horas da manhã como de costume, e já não tinha mais a necessidade do despertador do seu smartphone para tal feito. Simplesmente os olhos automaticamente em uma só expressão se abriram, o corpo em um só impulso na cama se sentou, e mergulhado nos seus pensamentos do que fazer com o novo dia de quarentena que auto se apresentava, meditava… claro! Aqueles dias eram por demais incomuns, de um lado tinha o dia todo pela frente sem a rotina acinzentada do levantar, correr e trabalhar, e, por outro lado, teria que ser criativo ao esforço máximo, em táticas incomuns e altruístas para não deixar que o tédio com toda sua improdutividade o arrebatasse, sequestrando a sua proposital impulsionada momentânea e intencionada alegria.
    Essa intencional alegria era a Poderosa Presença do Sagrado em sua vida. E apenas se baseava, por incrível que pareça, as coisas e recordações mais simples e singelas da sua tenra infância. Principalmente as lembranças delicadas e afetuosas de sua bisa, a Bruxa da Arruda, D. Darluz. Pelo qual, todas as manhãs, dedicava em um cantinho do seu oratório (em culto aos antepassados) uma vela sentada em um pires repleto de azeite de oliva misturado a sal grosso e mel, um pote de água que diariamente derramava seu líquido em uma específica planta de Arruda (Ruta graveolens), trocando a água do recipiente todas as manhãs, além de oferendas de flores silvestres, como: Cenoura-brava (Daucus carota subsp. Maximus); Centaurea Nigra (Centaurea nigra subsp. rivularis); flor Leopardo (Belamcanda chinensis); flor de Laranjeira (Citrus × sinensis); flores de Onze-horas (Portulaca grandiflora) e Calêndulas (Calendula officinalis). Tudo isso para se manter em conexão permanente com o espírito de sua querida bisavó. Sendo esta, em vida, sua sacerdotisa. E em morte carnal sua guia espiritual. Pelo que lhe prometera em vida terrena, que ao desencarnar nunca o abandonaria e o vigiaria de cima. Dando-lhe inúmeros conselhos e severas instruções ritualísticas de como manter o contato espiritual com sua alma e coração depois de sua partida.
    Para a Bruxa da Arruda, sua bisa, tudo era Sagrado…
    E do Sagrado… e unicamente, pertencendo ao Sagrado!
    Tudo era vivo! E tinha em si um grande e puro significado.
    Tudo era mágico!
    Tudo era místico!
    Tudo era encantado!
    Tudo era rico!
    Sua constante alegria não se baseava em emotivos momentos.
    Era como o constante balançar das árvores que bailavam se animando, apenas, com o tocar dos ventos.
    O seu grande sorriso em sua face iluminada, transmitia a qualquer um que olhava um manancial inesgotável de pleno contentamento.
    As pessoas que iam ao seu encontro de amor se preenchiam, automaticamente renovando esse sublime sentimento.
    Sua bisa lhe dizia que o Sagrado é um estado a ser sustentado constantemente. Um estado de bons hábitos e boas disciplinas que você mesmo se coloca a praticar. Um estado de Amor, de estar amando e de se sentir amado a toda hora e em todo momento, independente das circunstâncias, posses, pessoas, relacionamentos e virtudes materiais ou espirituais. Um estado de simplicidade e humildade, e cumplicidade no serviço devocional, na prática da caridade e solidariedade. Vivendo em perfeita gratidão e sendo gentil não só com as pessoas, mas a tudo em que os nossos sentidos intentar, aplicar e perceber. Lhe dizia que o segredo para vivenciar o Sagrado na prática, estava na gratidão e valorização da vida em todas as suas formas, não diferenciando uma pepita de ouro de uma simples pedra do rio, um ser-humano de uma formiga, a mais iluminada estrela do céu noturno de um singelo grão de areia das praias do mar. E essa valorização é ver a beleza oculta no amago de todas as coisas, sua Energia Divina e Intenção Criativa. Dizia-lhe que para realização de tal feito era preciso se livrar das amarras da má educação de si mesmo, que degenerou os nossos sentidos na elaboração de conceitos e preconceitos, a partir das inúmeras errôneas percepções externas a nossa Linhagem Sagrada, deteriorando e adulterando o nosso pensar, o nosso sentir, o nosso olhar, o nosso ouvir e o nosso falar. E explicou-lhe, que devido a tudo isso, o porquê das manifestações artísticas, arquitetônicas, filosóficas e religiosas de hoje estarem tão feias, rudes, cinzentas, frias, quadradas, embaraçadas e amontoadas, repetitivas e sem coração.
    D. Darluz dizia que por nos desconectarmos das sabedorias dos nossos ancestrais, o nosso sentido do novo e a capacidade do espanto e da novidade assombrosa de olhar tudo de maneira nova, no sublime estado de encantamento e percepção de alerta alegria, se perdeu no mundo. Dizia que o mal das futuras gerações estava na comparação e associação de capturar as impressões, sem a capacidade madura de traduzi-las, sendo essa maneira uma errônea tentativa de interpretar o novo sem a compreensão do velho, desassociando as consequências presentes e futuras das ações passadas. Daí, como ensinava a Bruxa da Arruda, eis a importância de se cultuar os antepassados, pois, uma árvore não pode florir e gerar bons frutos sem o bom cuidado para com suas raízes.
    Voltando ao momento presente, e na cama em que se encontrava sentado, vira como era difícil traduzir a vivência de infância que tivera com sua bisa para o moderno, virtual, tecnológico e competitivo dias de hoje. Sabia que as redes sociais virtuais, ao contrário do que se pensava, alimentava mais as más ações do ego do que o conhecimento (pelo qual era a sua proposta inicial). E que esse contato virtual se tornou uma máquina alimentadora dos nossos mais animalescos instintos, provocando mediante as imagens, sons, cores e palavras as mais variadas sensações emocionais para a satisfação dos nossos mais carnais e individuais desejos de ter ou ser. Não medindo as consequências de um super ego (‘eu’ pluralizado), que busca sempre aquelas ilusórias sensações que lhe possam dar a tão almejada satisfação momentânea, em uma falsa privacidade de no ato de estar solitário cometermos as maiores torpezas, em que julgamos erroneamente não impactar o nosso mundo externo. Vira que a internet, ao contrário do que fora a sua proposta de unir as pessoas, se tornou um luxurioso baile de máscaras, em que as redes sociais eram essas enfeitadas e coloridas máscaras.
    Assim, contudo, preferia estar no seu jardim. Na companhia das lembranças de sua bisa, a Bruxa da Arruda, D. Darluz. Que o lembrava que o mundo ainda era envolvido por uma aura de Novidade Mística, Alegria Mágica e Amor Divino. E que só poderia vivenciar o Sagrado da Vida observando, compactuando, comungando e se relacionando com o Mundo Natural em toda sua essência ecológica. O seu pequeno jardim era totalmente dedicado ao Sagrado e a memória de sua bisavó. Ali… dedicando-se a colocar as mãos e os joelhos na terra, se sentia uma Pessoa Superior em toda sua humildade, dividindo-se entre o observador e o observado, conhecendo a si mesmo na observação dos pequenos seres vegetais, minerais e animais. Se perdendo em um mundo desconhecido de encanto e nostalgia, que o elevava e fazia distante das miseráveis catastróficas vivências de traumas e barbaridades da bestialidade e ignorância humana.
    Ao regar suas plantas em pleno final de tarde, se via quando pequeno sentado no colo de sua bisa em uma balança pendurada a um tronco da árvore de Tipuana (Tipuana tipu (Benth.) Kuntze), em que juntos no crepúsculo vespertino se divertiam olhando as inúmeras nuvens no céu a tomar formas inusitadas de rostos, silhuetas, animais e objetos. E sua bisa, também, instigava a sua imaginação a ver essas formas nas plantas, flores, objetos e coisas. Dizendo que as mensagens dos seres naturais (Elementais) vêm a nós nas formas que a nossa consciência pode reconhecer, por eles falarem uma linguagem desconhecida aos nossos sentidos e dimensão.
    E, lembrou-se das manhãs ensolaradas ao correr pelo terreno da Chácara Celeste (que na verdade era um pedaço do céu na terra) logo ao acordar, indo de encontro a sua querida bisa nos campos abertos, vendo-a colher flores para o seu ritualístico culto matinal. E chegando ofegante até ela, gritava: “Bisaaaaa!”. E D. Darluz respondia com a mesma intensidade: “Meu Miúdo!”. E ela o carregando, abraçava forte e o cobria de beijos, até ele dizer basta. E, D. Darluz lhe dizia: “Olha meu Miúdo, não existe nada neste mundo que é mais adorável que uma flor, nem nada mais essencial que uma árvore e planta, sem elas não conheceríamos o belo, não poderíamos respirar e nem comer, nem nos curar. E, ocultamente a esses benefícios que elas nos trazem ao nosso corpo de carne e seus sentidos, tem ainda a sua função mística, que é a mais relevante, algo divino em que as pessoas comuns e materialistas não têm a capacidade de ver. Uma força mágica e espiritual, eterna e imutável.”
    A Bruxa da Arruda sempre o alertara a valorizar todas as coisas… de uma simples pedra a um pequeno objeto. Como um brinquedo, um utensílio ou algo do tipo. Dizia que tudo tem um propósito e que nada é obra do acaso. Alertara que todas as coisas por serem criações foram pensadas e intencionadas a se manifestarem. Tudo tinha um espírito, mesmo as coisas inanimadas. Pois, sempre afirmará: “O que tem corpo, tem espírito. Tudo é vivo! Toda criação é fragmento do seu Criador, contendo em si uma determinada energia que por mais pequena e singular que seja, é viva em si mesma, presa e magneticamente sustentada nesse corpo, é consciente especificamente para executar tal função, e depois de executada por si só se decompõe e desaparece”. E afirmava que a evolução desses corpos inanimados tinha a ver com a evolução humana, de acordo com seu grau evolutivo. Assim, o inorgânico Elemental podia se manifestar numa pedra, numa mesa, em um relógio de pulso, nos objetos que mais amamos e desejamos, e ainda mais nos brinquedos das crianças, por serem carregados de sentimentos. E que por isso, para seus Rituais da Magia Elemental necessitava dos objetos e minerais… das pedras… das cascas de árvores… dos restos de corpos dos seres vivos e seus derivados, onde se continha ainda preservada a energia Elemental necessária para tal e específica magia.
    Assim, Maria da Piedade…, moradora e proprietária da Chácara Celeste, que se localizava em algum lugar escondido na região nordeste do Brasil…, a Bruxa da Arruda: agricultora, queijeira, azeiteira, parteira, rezadeira, curandeira, e feiticeira portuguesa…, de origem dos antigos povos celtas das terras europeias mediterrâneas da Península Ibérica…, apelidada como D. Darluz…, afirmava que quando nos damos conta da existência do Poder Criativo em tudo que existe ao nosso redor e no nosso viver, quando descobrimos que tudo tem coração e inteligência, que tudo é intenção, e que a toda intenção foi aplicada uma específica atenção, e que a tudo que damos atenção doamos uma determinada fração de nossa energia vital, que se torna um fragmento de vida em si, independente por si próprio e evolutiva em si mesma… Tudo se torna Divino! Tudo se torna Sagrado! A ordem da Grande Espiral do Eterno e Permanente Contínuo.
  • A cartomante

    Às vezes me sinto ridícula.  Antes não muito, mas essa sensação tem se tornado frequente.  Acho que quanto mais o tempo passa, mais ridícula me sinto.  Ou me faço.  Ainda não sei.  Na verdade, acho que desde sempre fui ridícula, mas como o passar dos anos me dei ao luxo de admitir isso e deixar de lado os véus que sempre usei pra me cobrir de mim mesma em camadas sobrepostas.

    Envelhecer é deixar a alma pelada, penso eu.  Ou pelo menos o menos vestida possível.  Ouso a pensar que só morre feliz aquele que está tão desnudo na hora da morte quanto o estava quando se desgrudava da placenta de sua mãe.

    É isso:  a vida é interregno que se passa entre a nudez do nascimento e a nudez da morte.  Nesse meio tempo vamos colecionando máscaras e véus, peças de roupa de alma que nos cobrem e nos descobrem aleatoriamente, até que um determinado momento da nossa linha da vida o peso se torna tão grande que a derrocada é necessária.  Como em uma curva de função trigonométrica, o ápice precede a caída e para se voltar ao início é preciso descartar o peso das vestes que vão sendo deixadas nos anos que se passam. Então você percebe que é o início do fim.

    Com o despir dos anos passei a aceitar certas atitudes.  Não que eu conte isso para todo mundo!  Algumas atitudes continuam vergonhosas demais para serem admitidas publicamente.  Mas não as escondo mais de mim mesma. Me permito até mesmo rir delas!  Ah sim!  Riso farto e desavergonhado misturado com uma vontade de dar tapas no próprio rosto.  Rir de si mesmo é uma arte terapêutica que aprendemos com o passar dos anos.  Ou é isso ou enlouquecemos... a nós e aos outros.
    Não sou supersticiosa.  Ou sou.  Não importa mais.  Fato é que eu fui em uma cartomante. Sim senhor! Contra todos os meus preceitos e crenças.  Mesmo fazendo gritar a minha pseudointelectualidade roubada dos livros que se amontoavam em minhas estantes. Mesmo dizendo a mim mesma que eu estava louca e que buscava a resposta no lugar menos provável de encontrá-la. 

    Ela havia sido indicada pela funcionária de pouco estudo que estava vivendo uma paixão com um homem casado e que se desesperava de angustia sem saber se o sentimento era de fato correspondido.  Acho que ela sempre soube a verdade, mas que atire a primeira pedra aquele que nunca enganou a si próprio em busca de um pouco de alívio. E eu também não estava a buscar saciedade para a sede na mesma fonte?

    Veja que é importante que você preste atenção ao fato de que a minha funcionária tinha ‘pouco estudo’, porque isso torna ainda mais ridícula a minha atitude e mais reprovável o meu olhar julgador sobre toda a situação. Não interessa o nível de intelectualidade de uma pessoa. As palavras e pensamentos são artifícios que utilizamos para abafar os afetos e pulsões de que somos feitos.  Quem era eu para achar que a angústia dela valia menos do que a minha própria? Quem era eu para reprochar a busca dela tendo como único parâmetro o número de linhas que havia lido ou anos que eu havia tolerado a escola?

    Um século se passou entre a saída de casa e a chegada ao bairro distante da periferia onde ela vivia.  Estacionei o carro na rua de terra e contei até dez.  Percebi que do outro lado da rua estava parado um carro novo e que certamente havia custado mais do que o meu.  Da porta da cartomante saiu um homem bem vestido, com um belo relógio no pulso e sapatos nos pés.  Sempre dei atenção especial a relógios e sapatos, que a meu ver são objetos da ostentação primeira de todo o ser humano do sexo masculino.  Com as mulheres a ostentação se dá de outra forma, acho eu.

    Era a minha deixa.  Esperei até que o outro carro fosse embora, para que minha visita permanecesse anônima e desconhecida.  Contei até dez, respirei fundo e sai do carro.  Toquei a campainha e o portão se abriu com o barulho estridente do mecanismo eletrônico.  Na garagem havia uma mesa simples com duas cadeiras, tampo de granito coberto por uma toalha de renda barata.  Uma caixinha de lata daquelas onde se guarda chá e um maço de Marlboro.

    A cartomante desceu a escada, fechando a porta de vidro que escondia a sala onde seu filho assistia um desenho animado na televisão de quarenta e seis polegadas. Certamente a atividade da cartomancia estava rendendo horrores, considerando que ela tinha na sala uma televisão maior do que a minha, rodeada por sofás retráteis que eu não possuía. A inveja é algo cruel, não perdoa nem as cartomantes.

    Com calma ela perguntou meu signo.  Respondi: Sagitário.  Ela disse algo a respeito de um parente morto que estaria sempre comigo me auxiliando nos momentos difíceis da vida.  Claro que não soube me dizer quem era, pois o infeliz, morto que estava, certamente não quis se apresentar a ela.  Ele também teria vergonha de admitir que foi a uma cartomante, ainda que para me acompanhar.

    Ele me perguntou se eu queria a consulta de vinte ou vinte e cinco reais.  Achei que a segunda seria mais completa e pedi por ela.  Ela me pediu que descruzasse as pernas, pois segundo ela isso atrapalharia o fluxo energético que deveria fluir entre meu corpo e as cartas.  Fui tomada por um ímpeto de sair dali o mais rápido possível, como se a realidade me desse um soco no estomago que me tirasse todo o ar. Mas agora era tarde demais e sair assim, de inopino, seria certamente vergonha maior que permanecer naquele lugar.  Definitivamente eu não queria passar vergonha perto daquela cartomante!

    Me agarrei na cadeira e cortei o baralho como ela me pediu.  Com a mão direta.  Muito importante isso!  Ela acendeu um cigarro e fez a grande pergunta:  o que você quer saber?
    Naquele momento me ocorreu que eu não sabia o que queria saber.  Em todo o trajeto da minha casa até ali e os minutos em que permaneci dentro do carro antes de entrar, eu não havia pensado em uma pergunta.  Eu não tinha apenas uma pergunta.  Ora, eu era uma mulher com seus trinta e tantos anos e tinha uma vasta coleção de perguntas não respondidas!  Como ela se atrevia a me questionar assim, tão sem rodeios, sobre o que eu queria saber? Foi como se tivesse sido estuprada pela crueza da minha interlocutora, que sem pedir permissão (ao menos expressa) pretendia arrancar de uma só vez todos os véus e roupas, pedindo que mostrasse minha alma nua e resumida em uma pergunta! 

    Fiz um esforço hercúleo para me lembrar do que havia me levado até aquele lugar, para começo de conversa. E então ele me veio à minha mente. Ah, qual não foi minha surpresa ao constatar que o mesmo motivo que havia levado a empregada pouco letrada a sentar naquela mesma cadeira e abrir aquele mesmo baralho, era o motivo de toda aquela loucura? Fazer uma consulta com uma cartomante... ah que vergonha!

    Ela me respondeu com frases aleatórias que poderiam ser aplicadas a qualquer situação.  Como eu já esperava.  E eu, que me enganava acreditando ter uma suposta carga intelectual considerável, me vi enquadrando os fatos naquelas premissas que me eram jogadas como pérolas e que aquietavam como bálsamo a ansiedade que me ardia pela resposta que eu não tinha. Paguei os vinte e cinco reais para a moça.  Ela havia merecido.  Com seu baralho e a fumaça de seu cigarro ela não havia respondido nada, mas havia me mostrado tudo.

    Que eu sou um canteiro onde ambiguidades e incongruências florescem a luz do dia sem maiores esforços, adubados pelos traumas que carrego desde o meu primeiro respirar.  Que é mais fácil se doar a estranhos do que se abrir para aquele que eu acredito que representa algo relevante na minha curva matemática. Que aquele que hoje convive comigo todos os dias me conhece menos do que quando éramos completos desconhecidos. Que para a cartomante eu poderia perguntar tudo o que eu quisesse, exatamente porque ela não tinha a resposta.
  • A Colecionável

    Ela estava voltando da faculdade. Infelizmente tinha que andar aqueles duzentos metros à pé, no escuro, para chegar em casa. Sentiu um toque suave no ombro direito e antes que pudesse virar, uma mão enluvada pressionou um pano úmido e fétido sobre seu nariz. Por alguns instantes ela tentou lutar, mas uma letargia avassaladora tomou conta. Sentiu ser colocada em um pequeno espaço acarpetado, e uma porta de metal sendo fechada com violência. E então, foi só escuridão.

    Acordou tempos depois sobre uma cama macia e cheirosa. Parecia que tinha dormido por séculos, mas ainda sentia o corpo cansado e dolorido. Bastante confusa levantou-se e observou o lugar. Onde estava? Um quarto amplo, cuidadosamente decorado com papel de parede rosa, móveis de qualidade, tudo novinho. Uma estante com centenas de livros, escrivaninha para desenho, frigobar, um bar cheio de garrafas de suas bebidas favoritas e finalmente um closet enorme com mais roupas e sapatos do que ela jamais sonhou em ter. Estava deslumbrada com tudo, mas não pôde deixar de lembrar que havia sido sequestrada.

    Em sua exploração pelo quarto recheado de surpresas ela nem reparou na porta. Foi só quando a euforia arrefeceu que ela pensou que talvez não fosse uma prisioneira. Experimentou a maçaneta e surpresa: a porta abriu. Do outro lado havia um pequeno cômodo, com uma mesa de centro e mais nada. Na outra extremidade outra porta, e essa sim estava trancada. A moça experimentou um sentimento estranho, pois concluiu que estava, de fato, encarcerada. Sobre a mesa ela notou um envelope do qual tirou uma carta que dizia o seguinte: "Minha princesa. Meu grande amor. Sinto como se nos conhecêssemos desde o princípio dos tempos. Vivo e respiro a cada segundo por você. Tenho a esperança de que se sentirá em casa no quarto que preparei especialmente para você com todo o carinho do mundo! Tudo que quiser será seu, basta escrever e deixar o pedido sobre a mesa nesta sala. Com amor... seu admirador secreto".

    Estava sob o domínio de um louco que a conhecia nos mínimos detalhes, sabia de seus desejos e podia até antecipar suas necessidades. Os dias se passaram, as semanas e depois os meses. Ela já não sabia quanto tempo estava ali, mas sabia com absoluta certeza de que seu captor a amava mais do que podia compreender, pois tudo ali realmente satisfazia suas mais profundas vontades. Nunca em sua humilde vida ela poderia ter tais roupas, nunca poderia comprar os perfumes e jamais comeria iguarias tão deliciosas enquanto estivesse por si só. Mas mesmo assim, ela não passava de uma prisioneira.

    Ao longo dos anos ela aceitou o conforto, aceitou que tinha tudo que poderia querer e por isso não precisava querer o que não tinha. A vida se encaixou, não da forma que ela tinha planejado, mas se encaixou. Cabia a ela agradecer e continuar existindo, linda, plena e boazinha para que a vida que tinha conquistado pudesse continuar a ser do jeitinho  que sempre sonharam para ela.
  • A conta

    Eu estou morrendo. Sei que todo mundo está, mas eu tenho enfisema pulmonar. Não consigo mais fumar e minha vida é um inferno por causa disso. Tenho que passar o dia na cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo. Nunca me importei muito com como seriam esses tempos, mas sabia que eles iam chegar. Você desenvolve uma certa consciência depois de passar 30 anos fumando dois maços de cigarro por dia. Sabia o que ia acontecer. Assim como quando aceitei ser governador, sabia no que estava me envolvendo. Quando disputei minha primeira eleição para vereador era porque eu queria me envolver. Não é só fazer política ou filantropia, é um estilo de vida. Tem haver com manter tudo como esta: bom para todo mundo. Nem de longe imaginei que as coisas poderiam se desenvolver desta forma. O que você tem que entender é que sempre fiz o que achei que era certo para manter o nosso estilo de vida. Eu tenho esposa, filhos, netas. Sempre achei que quando este dia chegasse seria o fim de um outro começo. Sei que isso não me absolve dos meus pecados, mas eu estou morrendo de enfisema pulmonar. E todo mundo que esta morrendo merece alguma compaixão. Porque todo mundo fez alguma coisa de bom para alguém um dia no vida, e quando se esta numa cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo, é isso que tem que ser lembrado.

    Quando vi a Fernanda pela primeira vez ela estava começando o estágio na Assembleia Legislativa. Era uma jovem estudante de direito, linda. Os longos, e encaracolados, cabelos morenos, o olhar penetrante, as coxas grossas. O conjunto da obra era hipnotizador. Ninguém conseguia resistir aos seus encantos. Admito que quando convidei ela para assumir um cargo em meu gabinete eu já tinha tudo planejado. Sempre fui daqueles que não faz nada sem ter pensado em tudo. Ela não era a primeira, nem eu. Todo mundo faz assim. Acontece. Eu tenho esposa, filhos, netas. Quando ela aceitou o cargo ela sabia o que estava fazendo. Porque o cargo também incluía um apartamento no centro, com cartão de crédito e carro na garagem. Então, se você aceita tudo isso, você sabe que seu trabalho não será exatamente no escritório. E durante dois anos tudo foi uma maravilha. Nós nos víamos de duas a três vezes por semana. A vida pública exige que algumas coisas sejam realmente privadas. Eu não ia no apartamento dela para não ser visto. Nunca éramos vistos juntos. Se você usa uma aliança no dedo anelar esquerdo, e ocupa um cargo público, você não quer que as pessoas te vejam fazendo o que elas fazem. Elas votam em você exatamente porque elas acham que você não faz como elas fazem. Elas votam em você para poderem continuar fazendo o que elas acham que só elas fazem. Se todo mundo soubesse o que todo mundo fez e faz, o que seria desse mundo? E agora, que estou numa cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo, agora isso vai ser importante?

    O que você tem que entender é que jamais imaginei que aquilo ia terminar como terminou. Eu tenho esposa, filhos, netas. Não teria feito o que fiz se não julgasse que havia extrema necessidade. Era muita coisa que estava em jogo. Todos os meus grandes feitos não podem ser ignorados por um incidente. Eu também construí escolas, creches, hospitais. Toda uma história não pode ser questionada por causa de uma estagiária num momento de devaneio. Não é porque estou numa cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo, que estou contando tudo isso. É porque a imprensa vai fazer um escarcéu, vai supervalorizar tudo. Eu tenho esposa, filhos, netas. Não vão respeitar elas e elas não merecem isso. Não estou aqui pedindo absolvição, é só que vejam que fiz o que fiz porque precisava manter outras coisas, que eram boas para todos. Pode não ter sido a melhor escolha, mas era a única que eu tinha. Quando ela apareceu grávida, na casa da minha família, vociferando que eu era um monstro, ela mesmo não deu valor a tudo isso. Em tudo que eu representava, em tudo que eu era. Ela não me deu opções. A questão não é quem é a vítima, é como se reage as coisas. Ninguém é santo. O mundo é muito maior que uma pessoa só, e exitem os seus problemas e os do mundo, e perto dos do mundo, o seu sempre vai ser pequeno. Uma coisa que pode parecer pequena para você, pode ser grande para o mundo. Não era só a minha honra que ia ser atingida, era a honra de todo mundo.

    Quero deixar claro que antes de matar ela asfixiada, e incinerar o corpo numa pilha de pneus, tentei todos os outros meios ao meu alcance para evitar que as coisas terminassem dessa forma lastimável. Não foi fácil fazer o que fiz. Eu não queria. Eu chorei, pedi, implorei. Mas ela tinha vídeos, fotos, conversas. Eu poderia ter dado tudo que ela jamais imaginou ter. Hoje ela poderia estar vivendo bem em qualquer lugar que quisesse. Tentei garantir, com todas as palavras possíveis, que ela e a criança jamais passariam nenhum tipo de necessidade. Muito ao contrário, viveriam sem nunca terem que se preocupar com dinheiro. Teriam até direito a herança. Eu reconheceria o filho quando deixasse a vida pública. Mas ela queria causar um escândalo. Queria usar uma criança para acabar com tudo. O que ela queria era ver tudo que eu tinha construído destruído. Eu fiz o que qualquer um no meu lugar faria. Eu tive que matar ela asfixiada, e incinerar o corpo numa pilha de pneus, para garantir que tudo continuasse como estava, porque estava bom para todo mundo. Eu tenho esposa, filhos, netas, e estou numa cama, ligado à respiradores e monitores, morrendo.
  • A esquina e o fim

    [blitz]
    - Boa noite. Documentos do Senhor e do veículo, por favor.
    - Sim Senhor, aqui estão.
    - Da onde o Senhor está vindo e para onde vai?
    - Estou voltando do trabalho para casa.
    - O Senhor pode descer do veículo, por favor.
    - Claro, algum problema policial?
    - Estamos verificando. São só procedimentos de rotina. O Senhor está de posse de algo ilegal?
    - Não Senhor.
    - Então, por favor, retire tudo dos bolso e coloque em cima do capô.
    - O que está acontecendo aqui? Sou suspeito do que?
    - Não sabemos ainda Senhor, estamos averiguando, são só procedimentos de rotina. Coloque as mãos na cabeça e abra as pernas por favor?
    - Porque estou sendo revistado? Eu tenho direito de saber porque estou sendo revistado.
    - Atitude suspeita, Senhor.
    - E qual foi a minha atitude suspeita? Eu estava no limite da via, usava cinto de segurança, estava com as duas mãos ao volante, o que eu estava fazendo de suspeito?
    - Sua atitude era suspeita, Senhor. O que há no porta-malas do veículo?
    - Não sei, umas caixas, panos, estepe, coisas assim.
    - O Senhor não sabe o que carrega no porta-malas, Senhor? O Senhor pode abrir para mim, por favor?
    - Posso, o que o Senhor está procurando?
    - Ainda não sei, Senhor. O que há naquela maleta.
    - Somente alguns papéis.
    - O Senhor pode, por favor, abrir para mim ver?
    - Claro. Está vendo, papéis.
    - Sobre o que são esses papéis?
    - Planilhas, contas. Sou comerciante, são algumas coisas da empresa.
    - Examine estes documentos Segundo Sargento. Agora nós podemos ver o interior do veículo?
    - Como assim examine estes documentos? O Senhor não pode mexer nas minhas coisas assim.
    - Estou analisando os documentos que o Senhor me mostrou e que foram encontrados numa pasta no porta-malas do seu veículo. Aconselho que o Senhor se acalme e me mostre o interior do veículo.
    - Como assim se acalmar? O que está acontecendo aqui?
    - Se o Senhor tem algo à esconder aconselho que me conte agora, pois nós vamos achar.
    - Do que o Senhor está falando? Quer saber, a atitude do Senhor é que é suspeita. Que procedimentos de rotina são esses? Mas eu não tenho nada para esconder. O que o Senhor quer ver?
    - Abra o veículo, por favor?
    - Estes CDs no porta trecos são do Senhor?
    - É isso, sou culpado por comprar produtos piratas? Pode me prender.
    - Acalme-se Senhor.
    - As MP3 do pen drive também são piratas. Eu me entrego.
    - Irei confiscar esses itens. O Senhor pode abrir o porta-luvas, por favor.
    - (click)
    - O que são esses papéis?
    - A nota fiscal do carro, umas contas, não sei.
    - Posso ver essa nota fiscal?
    - Por que? Eu posso perguntar por que?
    - A sua atitude suspeita, e irônica, diz, segundo o manual, que o Senhor está tentando ocultar algum crime. Já sabemos que o Senhor não respeita as leis de direitos autorais, agora estamos procurando quais outras lei o Senhor não respeita.
    - Eu não tive nenhuma atitude suspeita não. Isso é abuso de autoridade. O Senhor já me revistou, revistou meu carro, e não achou nenhuma evidência de nada suspeito. O Senhor está procurando pelo em ovo, isso que o Senhor está fazendo. Eu tenho meus direitos, e não tenho que te entregar a nota fiscal do meu carro.
    - Por favor Senhor, me respeite. Estou fazendo meu trabalho, que é combater o crime. Sua atitude é sim suspeita, e eu posso prendê-lo por desacato.
    - Olha, eu sou um cidadão de bem. Eu respeito a polícia, acho que o trabalho da polícia é desvalorizado. Mas eu não sou bandido.
    - Então me mostre isso, Senhor. Me entregue esta nota fiscal e me deixe fazer meu trabalho que a verdade aparecerá.
    - Tudo bem, desculpe. Estou um pouco nervoso, é a primeira vez que passo por isso.
    - A loja do Senhor deve estar indo muito bem, este carro é bem caro. Com o que o Senhor trabalha?
    - Acabou, me desculpe. O Senhor é da Receita Federal? Eu não fiz nada de errado, nem tive nenhuma atitude suspeita. Ou o Senhor me leva preso e me deixa chamar meu advogado, ou me deixa ir embora.
    [delegacia]
    - Eu só falo quando o meu advogado chegar.
    - O Senhor que sabe, mas pode estar acabando com as suas chances de um acordo.
    - Um acordo sobre o que? Sou acusado do que? O Senhor não tem nada!
    - Bom, já sabemos que o Senhor não respeita as leis de direito autoral. Podemos provar isso. Também sabemos pelos papéis da sua pasta, e a nota fiscal do seu veículo, que a sua renda é incompatível com seu estilo de vida.
    - Não falo mais nada enquanto o meu advogado não chegar.
    - Viu, isso é uma atitude de quem quer esconder alguma coisa. Nós já sabemos que o Senhor comete algum crime. A sua renda é incompatível. Não preciso de uma evidência, isso é uma prova.
    - Prova do que?
    - De que o Senhor cometeu algum crime para comprar um carro que uma pessoa na sua posição não poderia comprar.
    - Isso é uma suposição, até o Senhor provar o contrário eu sou inocente. Eu comprei o carro com um dinheiro que eu tinha guardado há muito tempo. Trabalho desde os 12 anos e agora não posso ter um carro?
    - Quanto tempo?
    - Desde os 12 anos.
    - Não tem nada haver com sonegação de impostos? Venda sem nota fiscal? Compra de produtos sem origem declarada? Essas coisas.
    - Eu não sei do que o Senhor está falando. Se o Senhor não sabe do que me acusar, como eu vou me defender?
    - O Senhor tem filhos?
    - Tenho, três.
    - Eles estudam em escolas particulares?
    - Eu sei o que o Senhor está querendo dizer. Já disse que não respondo nada até meu advogado chegar.
    - O Senhor já disse isso três vezes, eu só estou querendo ajudar o Senhor a dizer a verdade.
    [conversa com o advogado]
    - Como assim eles podem me manter preso por até três meses?
    - Além de você ter violado as leis de direito autoral, existe um indício de que você cometeu algum crime para ter dinheiro e comprar o carro, por enquanto é só isso. Sei que eles solicitaram junto à Receita Federal sua declaração de imposto de renda, da sua empresa e da sua esposa. Se há algo de errado eu preciso saber agora.
    - Como assim? Eles não podem fazer isso. Era só uma blitz, o documento está em dia, minha carta também. Eu só quero ir para casa.
  • A Extinção dos Gatos

    Três gatos morreram e fizeram a tristeza de uma família se juntar à tristeza de milhões de pessoas no mundo que passavam pelo mesmo. Os gatos estavam morrendo por uma doença misteriosa, transmitida pelo ar e que aparentemente os matava sem muita dor, os deixando tontos e cambaleantes por alguns poucos minutos, terminando com um súbito e fatal desmaio. Mas a família ainda sentia muita dor mesmo após semanas em que os três se foram.
    Obviamente os cientistas estavam interessados em achar alguma cura ou vacina já que isso também significava milhões em lucros, mas muitos não demonstravam muito otimismo com a velocidade que a doença se espalhava e o tempo necessário para as pesquisas. Enquanto isso, há cada vez mais relatos de coisas sobrenaturais acontecendo. Aqueles mais ligados ao mundo sobrenatural afirmam que os gatos são guardiões do submundo e por isso esses eventos estão acontecendo. Já os mais céticos falam que tudo isso não passa de um monte de desocupados que espalham desinformação para sustentar uma teoria da conspiração.
    Nicolas, que acabou de perder os seus três gatos, era um dos céticos, enquanto os seus pais eram crentes no sobrenatural. Eles moravam há mais de duas gerações em uma fazenda a uns dez quilômetros de estrada de chão da cidade mais próxima. Quando criança, Nicolas brincava nas árvores que seus avós plantaram em suas infâncias e desde cedo aprendeu os trabalhos na roça, além do respeito aos animais. Cada bicho tinha uma função, seja prática ou espiritual, e por isso tinham que ter a constante presença de todos eles. Por mais difícil que fosse, os gatos tinham que ser substituídos assim que partiram deste plano, então os pais de Nicolas fizeram uma viagem até a cidade para adotar uns gatos de sua tia, castrá-los e comprar alguns suprimentos pra casa. Pela primeira vez, Nicolas ficaria alguns dias totalmente sozinho e seria o responsável por manter toda a plantação e animais vivos. Mas é claro que, depois de acompanhar o seu pai todos os dias por mais de 8 anos, não seria uma tarefa muito difícil. A rotina já estava bem definida há anos e só mudava quando um novo equipamento chegava, então sabia que tinha que acordar bem cedo e ficar alternando entre cuidar dos animais e da plantação. Era algo bem cansativo e até chato em alguns pontos, mas necessário se quisesse sobreviver.
    O lado bom é que quando chegava a noite estava tão cansado que só queria esquentar a janta, que não passava das sobras do almoço, e deitar. O cansaço era tanto que sempre se recusava a acender a luz da cozinha para lavar o seu prato, usando a pouca claridade da sala em suas costas como guia. Assim que levantou a cabeça para abrir a torneira, viu uma sombra humana se formar na parede e se aproximar de suas costas até que não houvesse mais luz e a parede estivesse completamente preta. A sua respiração parou momentaneamente, a barriga se contraiu e os olhos vidrados se esforçaram ao máximo para piscar. Assim que piscou, tudo estava como antes e a luz da sala continuava a iluminar fracamente a cozinha. Nesse instante, soltou de uma vez só todo ar que tinha segurado e respirou fundo algumas dezenas de vezes para se acalmar enquanto a água escorria na sua frente. O seu lado racional tentava convencer o emocional de que tudo não passava da obra do cansaço, afinal não estava acostumado a fazer todo o trabalho sozinho. E, mesmo que não fosse cansaço, não tinha outra alternativa a não ser tentar descansar já que o próximo dia estava perto de começar.
    Como sabia que não ia conseguir simplesmente tirar isso da cabeça e dormir, decidiu deitar no sofá, colocar os fones de ouvido e esperar o sono o pegar desprevenido. É estranho como não se percebe a transição entre estar acordado e dormindo. Sem nem lembrar em qual parte da música dormiu ou até mesmo qual era a música, Nicolas foi para o mundo dos sonhos e se distanciou completamente de sua realidade. Pelo menos até abrir os olhos e perceber que não conseguia mexer nem sequer um dedo. O medo que sentia era perceptível em sua breve respiração e que foi ficando mais curta ao perceber pela sua visão periférica que uma sombra vinha se aproximando. Quando ficou de frente pra ele, percebeu pelo corpo que era um homem alto, mas bem franzino e com uma aparência de que tinha sofrido muito. O corpo todo do homem parecia envolto de uma sombra a não ser pelo chapéu que uma vez já tinha sido bege, mas agora estava preto de tão sujo. Aquele homem sombra ficou encarando Nicolas por alguns segundos, parecendo saborear o medo que ele sentia e que transparecia pelo seu suor, lágrimas e respiração. Nicolas tentava falar, gritar e implorar, mas não conseguia abrir seus lábios. Enquanto batalhava contra o seu corpo, o homem sombra avançou pra cima dele e começou a sufocá-lo com uma força incompatível com o corpo que apresentava. A respiração curta de Nicolas tinha ficado inexistente. No desespero da busca pelo ar, piscou o olho, caiu no chão e começou a tossir. Por alguns minutos ficou olhando de relance para todos os lados tentando achar o homem sombra enquanto revezava entre respirar e tossir. O medo ainda estava em seus olhos e só queria fugir, mas os seus pais haviam levado o único carro que tinha na propriedade. Então, ignorando o cansaço, decidiu andar até a propriedade vizinha a uns três quilômetros e pedir o carro deles emprestado.
    Ele queria e tentava se convencer de que tudo tinha uma explicação. Já tinha tido uma vez paralisia do sono e talvez fosse só isso, embora ela não explicasse a marca vermelha de dedos em seu pescoço. Mas mesmo que de algum modo conseguisse uma explicação racional para tudo isso, não iria adiantar. O medo que sentia era muito grande e, por mais que quisesse, não poderia ignorar isso. Então pegou uma lanterna, a identidade e um pouco de dinheiro, trancou a porta e fugiu em plena escuridão.
    A lanterna ia da direita para esquerda e da esquerda para a direita em uma meia lua interminável, indo ocasionalmente para trás para ver se não havia nada lá. A vista das estrelas já começava a acalmá-lo nesse longo caminho, o que era bom. Já havia pensado na desculpa que usaria com os seus vizinhos: uma pessoa invadiu a casa e o agrediu, mas conseguiu fazer com que ele sumisse. Como tinha medo que ele voltasse sozinho ou acompanhado, queria passar a noite na cidade. Não era a verdade, mas também não era uma mentira. Com tudo isso planejado, podia continuar admirando as estrelas e afastando a imagem do homem sombra de seus pensamentos.
    Tinha acabado de direcionar a lanterna para trás, visto que não tinha nada lá e voltado a mirá-la para a frente quando sentiu um enorme impacto em sua perna esquerda que o fez cair e soltar diversos xingamentos. A dor parecia sair de seu joelho e ir ardendo até a sua mente. Quando olhou para o chão, viu uma pedra do tamanho de um melão banhada em sangue. Tentou se levantar, mas a dor não permitia que o seu joelho sustentasse o seu corpo.
    Devia faltar mais uns quinhentos metros até a casa vizinha, então, como não tinha outra escolha, decidiu começar a se arrastar. Logo depois dos primeiros centímetros percorridos, sentiu uma forte puxada em sua perna machucada que levou a uma nova irradiação de dor. Embora tentasse, não conseguia gritar e, por mais que se esforçasse, só soltava uns grunhidos baixos. Quando começava a se acostumar com a dor, olhou para a frente e viu o chapéu na sombra de um homem. Não conseguiu encarar por muito tempo, pois, cada vez que a dor ficava um pouco mais tolerável, ele puxava com força para dar um tranco na perna e irradiar mais dor para o corpo. Sabia que estava sendo levado de volta para a sua casa. Tentava piscar e se debater para escapar, mas o homem sombra era muito forte.
    A família de Nicolas chegou dois dias depois dessa noite com seis filhotes de gatos, bastante comida e fertilizante. A mancha de sangue na estrada já se confundia com o vermelho do barro e nem foi percebido pelos seus pais. E mesmo que percebessem, provavelmente acreditariam que algum animal tinha caçado e arrastado a carcaça de sua presa. Não estariam certos, mas também não estariam errados. Chegando em sua casa, viram o corpo de Nicolas empalado com o suporte de uma antena e deixado com os braços abertos como se fosse um espantalho bem na escada que dava acesso a porta principal da casa.
    A polícia investigou o caso que teve uma repercussão nacional, mas nunca chegaram a algum suspeito. Segundo os legistas, Nicolas foi empalado vivo, morrendo lentamente de hemorragia enquanto a antena ia atravessando os seus órgãos até chegar ao seu estômago, o fazendo engasgar lentamente com o seu próprio sangue. Mesmo demorando horas para morrer, pela distância entre as propriedades ninguém deve ter conseguido ouvir os seus gritos de dor. Já os seus pais nunca souberam o que o atormentou já que se mudaram antes dos seus novos gatos morrerem pela doença.
  • A festa

    Eu nunca fui de beber.
    Comecei há pouco tempo, evito ao máximo. Quando faço não me embebedo.
    Minha visão sobre isso torna o ser humano um idiota. Fazemos coisas que sabemos que podem nos matar. 
    Vejo um rapaz sair da festa cambaleando, e entrando no carro.
    Por sorte ele irá bater num poste sem machucar outras pessoas, morrerá sozinho, com a consciência limpa. Se tiver sorte.
    - Que coisa horrível de dizer Otto — Ela diz.
    Sorrio e bebo meu uísque.
    Não lembro como a conversa foi chegar naquele ponto. Ela gostava de falar.
    Um jeito tagarela.
    Havia a conhecido há umas duas festas anteriores. Numa sexta, ou quinta. Não me lembro.
    É sábado à noite, estou cansado, mas é dia de festa. Pessoas bebendo, se divertindo e esquecendo dos problemas da rotina corrida.
    Nessa casa há tantas pessoas. Todas conversavam e riam, algumas pulavam na piscina, outras espalhadas pelos cômodos do primeiro andar da casa. Uma bela casa. Ótima para festas.
    Havia todos os tipos de pessoas naquela casa, todas de diferentes classes sociais, diferentes etnias e raças. 
    Todas reunidas para conhecer pessoas novas, rever as velhas, socializar ou apenas conseguir uma transa.
    Ela estava sentada em uma cadeira verde junto de suas amigas, quando cheguei. Acenou e sorriu.
    Usava um maio vermelho com bolinhas brancas e uma toalha roxa envolta do pescoço, segura um copo de cerveja com a mão esquerda e gesticula com a mão direita enquanto fala, suas unhas estão com um esmalte vermelho sangue.
    Algo que sempre achei muito sexy.
    O seu cabelo preto esta preso num coque molhado que se desfaz a todo instante, ela me olha, continua rindo, mostra a língua e volta a conversar.
    Minutos depois, estamos parados encostados na parede próxima à porta de entrada. Porta de vidro, entrada para a cozinha.
    Não lembro seu nome.
    Mirela.
    Melissa.
    Milena.
    Todos as chamavam de “Mi”.
    “Mi” estuda direito, futura advogada, acredita que a justiça foi feita para proteger todos. Pergunto-me em que país “Mi” vive. Fala sobre prender os caras maus. Bandidos e assassinos. E políticos corruptos.
    Quer fazer a diferença.
    Como todos quer viajar para fora do país, fazer intercambio conhecer algum gringo e ter um amor de verão. Sonha com a Itália. Roma. Coliseu.
    Tagarela.
    Fala sobre seus pais. Médicos. Queriam uma filha medica.
    Pergunta sobre os meus. Mortos. Queriam um filho vivo.
    Ri pensando que foi uma piada. Sorri colocando a mão sobre o rosto, demonstra timidez. Mas esta confortável com a conversa.
    Um jeito leve e descontraído.
    Ela não é alta, mas nem muito baixa. Tem um corpo magro. Sua pele da cor de chocolate me atrai. Seus olhos castanhos me conquistam.
    Uma gota de agua escorre por sua bochecha e pinga ao chegar a seu queixo.
    Sua boca esta levemente pálida por causa da brisa fria desta noite.
    Continua me falando sobre sua vida. Sobre seu estagio em um escritório de advocacia, onde seu chefe fica flertando com ela. Como não flertar com uma garota tão linda? Sorri colocando a mão sobre a boca.
    Ela diz que o café de lá é horrível, respondendo minha pergunta.
    Depois de mais um papo, caímos no assunto sobre bêbados. Ri quando comento sobre o bêbado que acabara de entrar no carro.
    Me da um soco de leve no ombro. Pergunto-me em que momento ganhou intimidade.
    Uma casa bem espaçosa com dois andares, ligados por uma escada de madeira em espiral, moderna. No primeiro andar tem a cozinha, a lavanderia e a sala, no segundo andar, há três quartos, duas suítes e outro para hospedes. 
    Nesse encontra-se uma cama de solteiro, com alguns lençóis e um travesseiro, uma pequena cômoda e uma guarda-roupa empoeirado, com algumas roupas velhas dentro.
    “Mi” esta rindo, seu cabelo esta solto, ainda molhado e caído sobre seus ombros, não é um cabelo comprido.
    A musica alta estrala em meu ouvido. 
    Ela rouba meu copo de uísque, bebe um pouco e então, me devolve. Faz careta ao engolir.
    - Vamos Otto, dance! — Ela diz, rebolando no ritmo da musica.
    Coloco o copo sobre a cômoda. O gelo balança fazendo um som de sino ao bater nas paredes internas do copo.
    Solto minha gravata.
    - Só você para vir de terno a uma festa na piscina — Ela diz.
    Sorrio.
    Ela sorri, não cobre o rosto desta vez. Esta bêbada.
    Começa a falar que esta de olho em mim desde a primeira festa. Desamarra o maiô. Seus seios ficam a mostra, são pequenos como laranjas e tem as aureolas marrons. Fazia um tempo que eu não via uma garota nua. Meu corpo esquenta.
    Ela se aproxima.
    - Eu sei que você me quer Otto. — Ela diz, apalpa os seios.
    Desculpe-me “Mi”, o que sinto não é excitação pelo seu corpo. Mas pela sua morte. Ela esta bêbada.
     Sorri. 
    A faca entra em seu peito. Atravessa seu tórax atingindo seu pulmão. Ela não tem tempo de reagir. Sua respiração fica pesada. Ela não grita. Esta segurando meu terno. Olha-me nos olhos. Sangue escorre pelo canto da sua boca. Retiro a faca. 
    A faca entra novamente, próxima ao local anterior. Retiro a faca.
    Ergo minha mão. Passo a língua em meus lábios.
    Há muito sangue. Ela cai. Seu cabelo esta no meio daquela poça vermelha. Tiro minha gravata. 
    A musica alta estrala em meus ouvidos.
    Suas pernas são lindas, sem nenhuma mancha, sua cor é atraente, seu quadril é largo comparado a sua fina cintura. Abaixo e tiro seu maiô, corpo maravilhoso. Sua barriga é definida, devia fazer exercícios frequentemente. O sangue ainda sai pelos cortes. Esta toda vermelha. Tento não encostar no sangue. Pego o travesseiro e faço pressão para o sangue dar uma pausa. Coloco-a sobre a cama. Esta nua. Penduro o maiô num cabide dentro do guarda-roupa. Tomo um gole do uísque.
    Caminho até o banheiro do outro quarto, não há ninguém no segundo andar. Lavo a faca, as mãos e encaro o espelho. Arrumo o cabelo e volto para vê-la.
    Desço a escada em espiral. Logo estou na cozinha. Largo a faca sobre a pia, mesmo lugar de onde peguei, antes de subir.
    Esbarro em algumas pessoas. Peço desculpas. Alguns sorriem. Outros me encaram.
    Vou embora.
    No dia seguinte vejo a noticia.
     “Mi” foi encontrada dentro de um guarda-roupa, de cabeça para baixo, com os pés amarrados por uma gravata, nua. O cabelo todo sujo de sangue. Os olhos revirados, e sua língua estava sobre a cama num copo de uísque.
  • A história

                    “E aí Rose, o que tá pegando minha filha?” Leleco põe o skate embaixo do braço depois que cumprimenta a amiga.
                    “Não é nada não, é só que a autora está criando a nossa história. Alguma aventura vem por aí! Tô tão animada!!”
                    “Animada por que pô?! Que aventura? Eu quero que ela escreva um romance, aí normalmente a gente não faz nada, só fica pegando as mina gata que aparece na história!!” Leleco arruma um colarinho imaginário.
                    “Que não faz nada! A gente faz sim! Normalmente no romance a gente sofre por algum infortúnio antes do final feliz ou não tão feliz assim… – Leleco concorda. – Mas a aventura não, a aventura traz o carisma e a sagacidade da personagem à tona, ela torna cada capítulo um marco em nossas vidas, nas aventuras e nos suspenses é que moram as personagens mais preferidas e admiradas, pois conquistaram um lugar ao sol com muito esforço e em nome de um grande propósito.”
                    “Esse negócio de aventura dá muito trabalho ô Rose, não inventa esse negócio de glamour que não rola comigo não, meu esquema é namorar as gatinhas e fica de boa, falando aquelas frase de efeito que o cara nunca esquece.”
                    “Sabe que você tem razão, é como aquele autor maravilhoso que escreveu ‘aos vencedores as batatas’, quem leu não esquece. Mas ainda assim, não deixou de ser um livro emocionante e perigoso” A expressão de Rose se transformou em puro mistério.
                    “Rose, não viaja Rose, quer mais perigoso que tá o nosso país Rose, mané não precisa ler livro não, mané só vive, mano.”
                    “Credo Leleco! Também não é assim! Livro também traz mensagens positivas de amor e de paz, grandes lições e grandes exemplos!”
                    “Ah, então quer dizer que não vai passar lá o personagem principal o tempo todo sofrendo que nem um condenado?”
                    “Claro que não, toda a história tem um objetivo, uma motivação, um propósito” Rose tenta explicar da melhor forma possível. “Mesmo que às vezes a gente não entenda o que o autor está propondo logo de cara.
                    “Tipo Titanic, que o cara se arrisca a história inteira e ainda morre no final?”
                    “Na verdade, Titanic é uma história verdadeira, embora o Romance da história seja fictício, realmente aquela tragédia aconteceu”
                    “Nossa, que coisa! Tragédia verdadeira, romance fictício, isso tá muito parecido com a vida real Rose” Diz Leleco xingando.
                    “Por isso faço tanta questão de aventura Leleco, com a aventura a gente sonha, se inspira, se fortalece e vibra junto com o personagem quando tudo fica bem no final!”
                    “Vendo por esse lado, até que seria bacana se autora me colocasse num lugar de destaque, tipo o cara que sabe tudo e resolve as coisas no final. Eu quero é ficar bem na fita ae!”
                    “Mesmo se tiver que arriscar sua vida para salvar a mocinha da trama?”
                    “É… se não der muito trabalho!” Leleco dá risada da expressão irada de Rose.
                    “Leleco!!!”
    —————————————————————————————–
    Marya Lampert
    26/06/20
  • A Máquina da Ordem

    Naquela praça deserta os jardins eram perfeitos, os bancos perfeitos, as árvores perfeitas. Um lugar perfeito. No centro, a Máquina transmitia boletins informativos de utilidade pública através de uma de suas telas espalhadas pela cidade. Era um dos serviços sociais prestados pelo Estado.
    Um homem esquálido, cambaleante, sentou-se num dos bancos, esgotado pelo calor intenso. Tinha andado já um bocado. Precisava aliviar a dor dos pés inchados apertados dentro do sapato. O cheiro do pão quente saído da padaria em frente o torturava, mas não mais que a sede. Do dinheiro que ganhou com o trabalho temporário que arranjara naquele mês, não tinha sobrado nada.
    Ouvia distraidamente os boletins informativos da programação do dia quando um guarda municipal, bem uniformizado e com ar de autoridade, abordou-o:
    — O que faz aqui?
    ― Estou só descansando um pouco ― explicou pensando em tirar o calçado.
    ― De onde o senhor vem?
    ― Lá da fábrica de papel.
    ― Aonde o senhor vai?
    ― Ao posto da Assistência Social. Disseram-me que fica para aquele lado de lá — disse apontando uma direção.
    ― Então vá para aquele lado de lá. Não pode ficar aqui vagabundeando.
    O homem esquálido ergueu-se lentamente e atravessou a praça chegando a um ponto de ônibus. O banco ali era coberto e o protegeria dos malditos raios de sol que pretendiam cozinhá-lo lentamente. Continuou ouvindo os boletins transmitidos pela tela da Máquina atrás dele.
    Naquele momento, uma menina chegou ao local trazida pela mão de uma jovem mulher. Pela rosadinha, cabelos louros, parecia um anjinho. Devia ter uns seis anos. A filha dele que morrera junto com a mãe no parto teria a idade dela. Ele nunca soube o que causou a morte de ambas. Nenhum médico apareceu para lhe explicar o que tinha acontecido. A limpeza do hospital era impecável, os funcionários estavam alegres, tudo estava em ordem e, apesar da demora, não podia negar que sua mulher fora bem atendida.
    Sua filha não se pareceria com a menina loura. Era mais provável que fosse pretinha, como a mãe. Ah minha pretinha...
    Divagava olhando a menininha enquanto a jovem mulher, em pé na beira da calçada, olhava-o com desconfiança. O guarda municipal que vinha da guarita da esquina se aproximou dela e trocou algumas palavras. Em seguida, empertigou-se, franziu o cenho e se voltou para o homem esquálido.
    ― O senhor de novo?! Está assediando os transeuntes. Vamos! Circulando.
    Antes de partir, o homem esquálido acenou para a menininha que se agarrou à mulher e, por de trás dela, tombou a cabecinha espiando-o assustada.
    Caminhou por mais quarenta e cinco minutos e chegou ao posto. Na entrada do prédio, um recepcionista uniformizado portando uma arma lhe pediu identificação. Em seguida, foi informado que deveria pegar uma senha de atendimento antes de passar pela porta com um dispositivo de detecção de metais.
    — Pode me dar uma garrafinha de água daquelas? — perguntou apontando para a geladeira na recepção.
    — Tem de colocar uma moeda ali — explicou o recepcionista.
    No salão de espera, havia poltronas estofadas, cinco pessoas atrás de computadores num balcão e um vigilante de pé num canto.
    Longos minutos se passaram até que o visor apitou mostrando o número de sua senha. No balcão, uma moça sorridente lhe fez uma série de perguntas para preencher uma ficha e pediu que ele aguardasse um pouquinho para falar com o assistente social.
    O homem esquálido voltou a se sentar e decidiu tirar os sapatos para aliviar a pressão insuportável que exerciam sobre os pés inchados.
    — O senhor não pode tirar os sapatos aqui — disse o vigilante se aproximando. Olhou com reprovação para o pé do homem esquálido do qual começou a escorrer um líquido cinzento e fétido pingando no chão. Então mandou que ele saísse dali imediatamente.
    — A Máquina informou que eu precisava do encaminhamento do assistente social para ser atendido no hospital.
    — O senhor está fazendo sujeira. Dê um jeito de calçar e sair daqui.
    Uma senhora que ouvia a conversa dos dois, tocou levemente o ombro do homem esquálido e disse que ele poderia passar na frente dela.
    A atitude da mulher encheu-lhe de gratidão e ele a agradeceu diversas vezes enquanto trocava o bilhete com ela. Em seguida, dobrou a parte de trás dos sapatos, calçou-os como se fossem chinelos e seguiu para a sala indicada na senha da mulher.
    — O senhor não é Jussara de Souza — disse o jovem sorridente que conferia os dados pelo número da senha no computador.
    — Estou com dor e uma senhora me deixou passar na frente dela.
    — Bem, mas não posso atendê-lo com o nome dela. Devo atender pela ordem das fichas. Saia e aguarde sua vez. — ordenou o jovem mantendo o sorriso.
    — Tenho pressa, moço — arriscou dizer o óbvio, mas incerto se o rapaz compreenderia, explicou: — Está saindo pus do meu pé.
    O jovem fez uma expressão de nojo e perguntou:
    — O senhor não acompanha as informações da Máquina? Deveria saber que tudo aqui funciona perfeitamente dentro da ordem. E todos devem obedecer às regras. Insisto que saia e aguarde sua vez.
    O homem esquálido sentiu suas forças se agigantarem com o sentimento de indignação. Num impulso insólito, certamente movido pela dor lancinante, bateu com violência no monitor do computador que se espatifou no chão.
    O assistente social apertou um botão vermelho na parede ao lado dele. Imediatamente o vigilante apareceu e rendeu o homem esquálido imobilizando seus braços, algemando-os para trás. Em seguida, tomaram a viatura da polícia que fazia plantão no local e foram para a delegacia.
    Não teve de esperar muito para ser atendido.
    — O que o senhor fazia no posto? — perguntou o delegado.
    — Fui buscar um encaminhamento para receber assistência médica gratuita.
    — O relatório diz que o senhor infringiu regras da instituição, desacatou o segurança, agrediu um funcionário e depredou patrimônio público. Correto?
    — Eu só... — tentou dizer o homem esquálido interrompido pela fraqueza e a dor que o assolavam novamente.
    — O senhor não observou as orientações da Máquina. — continuou o delegado. —Tudo é organizado para garantir a ordem e melhor servir à população. Os desordeiros devem ser imediatamente punidos. O senhor vai ficar preso para seguir o programa de reeducação social da penitenciária até que prove que está apto para conviver novamente em sociedade.
    — E os meus pés?
    — Isso não é comigo. É com o médico.
  • A Moda Como Linguagem

    A moda é uma linguagem. É a porta voz da alma de uma nação. Não dá para pensar que a moda é só atributo das passarelas de Milão ou de Paris. Diante as Olimpíadas do Brasil percebemos o quão essa linguagem pode dizer da característica de um nação de forma tão contundente. Vimos o mundo inteiro maravilhado com a beleza de nosso povo. E essa linguagem que maravilhou o mundo, com o sincretismo do povo brasileiro, da diversidade de cores e de beleza que além de contagiar o Brasil, contagiou os estrangeiros e mostrou a riqueza de uma nação bela que foi construída pela interação de diversos povos como os japoneses, africanos, italianos. E Mesmo com os apelos políticos do qual assola a agora ‘instável’ nação, o festival de cores, as roupas, as fantasias que cativaram até os ‘gringos’ mostraram: O Brasil é um país de beleza, exótica... Mais beleza. E o que falar de Gisele Bündchen na passarela? . Ela mostrou o que faz do país além de uma referência de cores e diversidade um país cuja moda e elegância são também coisa de Gente Grande. Vale Ressaltar que apesar de certo muro de separação entre Moda e Política: pode-se dizer que o conceito de moda está findado tanto em política quanto na filosofia e todos intrinsecamente representam conceitos de racionalidade. A política é um ato de escolha, de fazer, agir, e a filosofia é utilizar a razão e a complexidade do mundo para inferir verdades e silogismos que levem a tentar compreender a verdade da sua maneira. A moda também é assim. É tanto um ato de escolha, de ordem e poder quanto de racionalidade, uma atividade de entendimento e complexidade do saber de uma cultura, de um povo, de uma pratica social. Você veste aquilo que você é, de acordo como você se sente , sua personalidade , seu estilo de ver e viver a vida. Ademais, a compreensão e a vivência a uma determinada cultura é pressuposto para adentrar ao contesto cultural da manifestação a qual se participa. Esse conceito cultural pode ser exemplificado por dois extremos, pôr exemplo, o Brasil e a Arábia Saudita. O nosso país é um país diversificado e cuja pluralidade de povos, etnias ,religiões e orientações sexual amplia a definição de moda e tradição dependendo do povo ou grupo social e nos fazem únicos. Temos povoados de origem alemã no norte do Rio Grande do Sul, comunidades chinesas em São Paulo, libaneses e sírios em fortaleza e povos nativos e indígenas no norte , nordeste , sudeste , centro–oeste e cada qual representam uma moda típica com vestimentas e características de trajes típicas. Na Arábia Saudita também existe uma moda, mas em contraposição, as vitrines são cheias de saiotes até os pés, véus que cobrem o rosto e burcas que são espécie de ‘biquínis vestidos’ que comportam visualmente a cultura e a moda local. Se vestir de biquíni, maiô ou um tomara-que-caia, por exemplo, é um afronto para a população e tradição local. Na Arábia Saudita sabemos que o conceito de moda é muito mais homogêneo e diverge muito das liberdades encontrada no ocidente . Porém, foi visto também que o orgulho ao véu é também uma convenção honrosa, tanto pela defesa as raízes do país quanto ao respeito e moral das mulheres árabes as suas tradições. A moda muda convenções e democratiza a história, pois é o ponto condutor para mudanças sociais e o termômetro entre liberdade de expressão, conservadorismo, ideologia e novas mudanças de concepções. Conquistas como a liberdade sexual , igualdade entre os gêneros, igualdades entre os homossexuais foram conquistados queimando sutiãs, ousando utilizar roupas que eram consideradas masculinizadas ou fora do padrão, etc. Por parte, não existe o enquadramento de dentro ou fora de moda, uma vez que a moda acaba sendo relativo de lugar a lugar, é temporal (depende do tempo em que se vive), depende também das inovações e complexidade da mesma além de ser variável também por quebra de padrões, globalização , mudanças social e um universo de outros fatores que acaba tornando ela ao mesmo tempo - atemporal – pois é possível um resgate de uma dita ‘moda velha’. Ao resgatar o antigo, o arcaico, o ‘ Retrô’, ou até antecipar “o que não veio ainda” à exemplo de moda do tipo ‘ futurista’, há uma semiótica de peças antes ‘ bregas’ , ‘ horrendas’ , ‘ feias’ que se transformam em irresistíveis peças ‘cult’, ‘modernas’, ‘estilosas’, tudo por fruto de convenções da sociedade e existência das inovações da moda.
  • A nova onda cyberpunk

    Diferente do que afirmam os críticos, a morte do cyberpunk foi anunciada com certos exageros. O pós-cyberpunk, movimento no qual a tecnologia e a sinergia entre homens e máquinas é considerada algo possível, ao menos até o momento continua sendo uma utopia cibernética e não uma realidade concreta. A alta tecnologia e a baixa qualidade de vida é algo muito mais palpável. O cyberpunk não cria ilusões, revela fatos diários.
                Quando a Darda Editora se propôs a explorar esse subgênero da ficção científica, o mundo e a liberdade criativa para criar histórias nessa realidade foi imensa, e também envolvente. No total, oito autores foram selecionados. Já conheço até o trabalho de alguns deles, pois já fui seus colegas em outras antologias. Recomendo esse livro pelas novas abordagens, dramáticas e catárticas nesse livro.
                O primeiro conto é escrito pela Aline Cristina Moreira, e se chama Ilusões. Esse texto nos mostra como a tecnologia é muito frágil para substituir as relações humanas, cada vez mais artificiais. Não posso falar mais, senão correrei o risco de revelar o final da história. Foi uma leitura assustadora.
                O segundo conto é o meu, Assalto ao Banco Genoma, um hacker baiano recebe uma bolada em criptomoedas para assaltar um banco de registro de DNA para um nobre europeu. Mas enquanto ele invade o BG, uma força tarefa chega ao seu quartel general. Não gosto muito de comentar meus próprios contos, mas eu fiquei muito satisfeito com esse aqui.
                O conto do Cesar Luis Theis, o Nuances da cyber-sociedade, a alta tecnologia tem o mesmo status de uma droga, pois o seu uso é viciante, gera dependência e problemas psíquicos no seu usuário. Foi o trabalho mais coeso, com começo, meio e fim bem claros. Ficou muito nítido em qual mundo a narrativa se desenvolvia, o conflito entre hacker e máquina foi sensacional, usando xadrez como plataforma de combate. Melhor conto.
                Sangue e circuitos de Fabiana Prieto trouxe uma narrativa deja vú, a história parece se repetir em seu final, se tornando um anticlímax. Pareceu mais um prólogo de um romance do que um conto, ao menos me pareceu assim. O conto tem uma ótima ambientação, e se peca pelos personagens com pouca personalidade, a autora tem um ótimo argumento em mãos para desenvolver uma prosa maior.
                Jonnata Henrique é um dos poetas e contistas mais prolíficos que conheci, e um dos mais talentosos também. A história de O setor 469 também tem um ótimo cenário, uma típica distopia com um plano de fundo cyberpunk. Depois de uma Terceira Guerra Mundial, a população diminui para metade e ocorre a chipagem dos seres humanos. O setor 469 usa um programa de testes de robôs militares, e para isso, usa presidiários. Apesar do conceito ser instigante, a obra é muito curta, e termina com muitas pontas soltas. Careceu de um melhor desenvolvimento.
                Fuga na Cidade de Neon de Rafael Danesin trouxe a narrativa mais dinâmica e final mais aterrador da coletânea. Joh Haarp (que devido a flexão de dois gêneros não tive certeza se era um homem ou mulher) está fugindo de sua crio-prisão. Como um lobo solitário fugindo dos caçadores, o fugitivo causa um grande estrago na cidade, sempre com tiradas satíricas e sagacidade.
                Suellen Silva traz Vida de Cão. A história é simples, tem um cão-robô como protagonista. O cyberpunk é um gênero permeado pelo conflito entre o homem e tecnologia, o indivíduo e a sociedade, corporações umas contra as outras. Trazer esse conflito através de um novo olhar nos tira da zona de conforto.
                Fantasy and Dreams é o conto do Tauã de Lima Verdan Rangel, e fecha a antologia. Confesso que de todos esse foi o conto que eu menos gostei. Embora ele seja o de maior quantidade de páginas, não em pareceu que ela foi desenvolvida muito bem. A narrativa em primeira pessoa deixou vários pontos em branco. Personagens foram citados como numa lista de supermercado, mas não tiverem desenvolvimento de personalidade ou ações claras na trama. Outro conto que parece um prólogo de uma narrativa maior.
                Esse é o meu primeiro livro publicado com a editora, não sei porque, mas o livro demorou muito para ser editado. O livro tem apenas oito contos, eu sempre espero que a antologia tenha no mínimo cem páginas, esse é o maior pecado da antologia. A diagramação do livro não está ruim, mas uma segunda edição necessitará de uma melhor revisão, me pareceu que o livro foi editado às pressas, mesmo com cinco meses de produção e apenas 60 páginas. Inclusive eu achei que eles mudariam a capa, ele não instiga muito a leitura. O livro te orelhas, marcador de página exclusivo. Miolo em papel offset 70, capa papel cartão 200. Se você quer acompanhar mais um dos meus trabalhos ou se você gosta mesmo de cyberpunk o livro é sua pedida.
    Para adquirir o livro cesse aqui:
    https://www.dardalivraria.com.br/9143094-Antologia-Cibernetica
  • A Pianista

    Não sei por que. Mas estava lá. 
    Parado.
    Em minhas mãos um folheto com os hinos do dia.
    Não sabia nenhuma música e não estava afim de cantar. Muito menos ler.
    O grupo era pequeno. Tinha no máximo dez pessoas. Sendo a maioria jovens como eu, e os velhos eram bem velhos. 
    A pessoa que mais me chamava atenção era a pianista. Caroline, esse era seu nome. Se não me engano.
    Caroline 
    Caroline
    Sempre tocou piano. Ganhou prêmios por isso. Tocava com sua alma, sentia cada tecla bater em seu coração. Suas belas mãos pálidas tocavam gentilmente cada nota.
    Todos ali ajoelhados. Ouvindo e admirando, louvando e glorificando ao som daquela maravilhosa pianista.
    Lá estava ela. Com seu cabelo preto amarrado num coque bagunçado pela ventania que estava aquele dia. Provavelmente iria chover.
    Sua camisa azul de bolinhas vermelhas estava com as mangas dobradas até a altura do cotovelo, usa uma saia rodada preta, que ia até o joelho. Calça uma sapatilha bege, mas insistia dizer que aquilo era nude. 
    Ela vinha para a igreja caminhando, fazia isso todo domingo, eu sempre a via passar em frente de casa. Nunca atrasava- se.
    Sempre adiantada.
    Chegava na igreja antes de todos. Apenas para limpar o piano. Instrumento antigo. Amigo antigo. Lugar onde ela sempre tocara sua divina melodia.
    Todos a cumprimentam. Vão chegando aos poucos.
    Ela sorri. Sorriso atraente.
    Seus olhos escuros se encaixavam perfeitamente com seu belo rosto pálido e fino. Olhar sereno. 
    Caminha com serenidade, transborda calmaria e paz. Continua sorrindo.
    Passa a missa toda assim, com aquele semblante de boa moça. Garota adorável. Sorriso doce.
    A missa é curta.
    Após tocar oito hinos, tudo acaba.
    O padre termina a missa como todas as outras.
    Palavra da salvação. Todos respondem e levantam-se como se não vissem a hora de ir embora.
    Caroline faz reverência ao seu público, concluía com um sinal da cruz e um aceno para alguém da multidão 
    Fecha o piano. Com extremo cuidado, cuida como se fosse um filho. Após isso se reúne ao resto do grupo de canto. Beijos na bochecha e abraços. Sorrisos e risadas.
    Todos a cumprimentam.
    - Foi uma ótima missa, não achou Otávio? – ela diz. Sua voz era macia, como a de um anjo, suave e calma, como o piano que acabara de tocar.
    - Não sei, na verdade, parecem todas iguais para mim – respondo.
    Ela sorri. 
    Aquele sorriso inesquecível. 
    Fiz amizade com ela havia algumas semanas. Ela notou meu interesse em tocar algum instrumento. Me ofereceu algumas aulas, recusei algumas vezes, sem motivo algum. E sem motivo algum aceitei naquele dia.
    Sua volta para casa era, como a ida à igreja. Todos a cumprimentam. Sorrisos. Acenos. Ela sorri. E acena. Uma, duas, três vezes. E repete. 
    Sorriso lindo.
    Sua casa é verde, com enormes portões cinzas. Ainda morava com seus pais. Mesmo tendo seus vinte e poucos anos, continuava indecisa sobre o que faria da vida. Sem sonhos. Sem futuro planejado. Sem namorado. Acreditava não ter sorte para arrumar um. Não imagina a beleza que tem.
    Venta muito. Segura sua saia para que não levante. Dizia para eu não olhar caso isso acontecesse.
    Caminhamos rápido para que não fossemos pegos de surpresa pela chuva que não veio.
    Uma casa bem grande. Daria duas da minha facilmente. Tinha sala de jantar. Sala de estar. Sala de recreação. Sala de lazer. Suíte. Cozinha. E outros tipos de salas. 
    Ela pede para que eu espere na sala. Sento numa poltrona de couro. Desconfortável no início. Mas com o tempo ficou aconchegante. Não há televisão naquela sala. E nem nas outras. 
    Apenas retratos. E mais retratos. Alguns quadros também. 
    Em um dos retratos vejo sua mãe. É bonita como ela. Ouvi histórias que diziam que a mãe dela havia fugido com um vizinho, e deixara Caroline com o pai, que por sinal não estava em nenhuma foto ali. E também, não estava na casa.
    Ela demora.
    Decido então fazer passeio pela casa. 
    São dois andares. 
    No de baixo, temos as salas a cozinha que é bem espaçosa, não tem mesa, pois a mesma fica na sala de jantar ao lado. Na cozinha, tem apenas os armários que cobrem todas as paredes do lado direito, tem também a geladeira e o fogão.
    Uma escada em espiral fica no meio da sala de recreação. Subo-a.
    A escada dá de encontro com um corredor. Extenso corredor. 
    A primeira porta é branca, giro a maçaneta e a abro. Dentro encontro uma cama de casal com vários travesseiros. Doze no mínimo. Um enorme guarda roupa, vai do chão ao teto, engolindo a parede. Um cheiro forte de colônia toma conta do ar. Deve ser o quarto do pai dela.
    A segunda porta, é marrom, lisa. Abro-a. É apenas o quarto de tralhas, coisas que não usam mais. Haviam diversos instrumentos quebrado.
    Nesse corredor havia mais cinco portas. Mas logo na terceira, era o quarto dela.
    Um enjoativo odor adocicado toma conta do meu nariz instantaneamente. A porta está meio aberta. Ouço o som do rádio.
    Entro.
    Ela estava lá. 
    Caroline
    Caroline
    Usando apenas a camisa e uma calcinha azul com rendas. Suas pernas brancas chamavam minha atenção, ela as balança conforme o ritmo da música. 
    O ranger da porta a pega de surpresa, dá um pulo de leve e se vira, colocando a mão sobre o peito. Posso ver o volume de seus mamilos sob a camisa. Ela solta a escova de cabelo.
    O quarto é delicado como ela. Haviam inúmeros instrumentos por ali. Violões. Guitarras. Flautas. Trompete. E muitos outros.
    No canto, por ironia, está um teclado todo empoeirado. Abandonado.
    Ela sorri.
    No centro do quarto está sua cama. Grande. Muito grande.
    Ela sorri.
    Passeio pelo quarto, encaro o espelho do guarda roupa, estou arrumado, bonito.
    Sorrio.
    Um raio de sol que entra de penetra desviando da cortina lilás, paira sobre o teclado empoeirado. Um punhado de poeira dança na faixa de luz solar. Passo meu dedo, bem devagar sobre as teclas, daria para ouvir um som decrescente, se o teclado estivesse ligado. Ou com bateria. 
    Não entendo de teclado.
    Olho para Caroline. Parece não se importar. Aquele devia ter sido seu primeiro instrumento. Abandonou-o. Pergunto o porquê disso. 
    O motivo de tê-lo deixado de lado.
    - Cansei dele. – Ela diz, Sorriso.
    Cansou dele. 
    Todo o tempo que haviam passado juntos não contava mais.
    Sorrio para ela.
    Pressiono uma tecla. Não faz som. 
    Está sem bateria ou desligado. Não entendo de teclado.
    Abaixo na altura dele. Assopro. Uma nuvem de poeira se espalha pelo quarto.
    Ela desabotoa um botão.
    Coloca as duas mãos sobre o instrumento.
    Você não se importa mais com ele, pergunto esperando que ela me dê uma resposta positiva.
    - Sim, mas ele está velho, não serve mais para mim. – Ela diz. Mordiscando o lábio inferior e sorri.
    Não era a resposta que eu queria ouvir. 
    Desabotoa outro botão. 
    A porta range com o vento leve que entra pela janela. A cortina balança. Com um pouco de esforço levanto o teclado de sua base.
    - O que está fazendo. – Ela pergunta. 
    Sorrio.
    Sua camisa está quase toda aberta. Com o passo que ela dá, posso ver seu seio balançar. Vem em minha direção. 
    Sorrio. Ela não. 
    Levanto aqueles aproximadamente dez quilos acima do ombro, e então a golpeio no rosto.
    O golpe não é forte o suficiente para desmaia-la.
    Ela apenas cai e põe a mão sobre a boca. 
    Posso ver seu seio. Sangue pinga no chão de piso branco. 
    Meus braços pesam. Já estão cansados. Caminho por alguns centímetros arrastando o teclado. 
    Ela chora. 
    O sangue escorre de sua boca e pinga sobre seu mamilo marrom. Escorre por ele e pinga em sua barriga, e logo é absorvido pelo tecido da camisa de bolinhas.
    Não sei por que fiz. Apenas senti vontade.
    E então a saciei.
    Com muito esforço, ergo o teclado novamente. E a golpeio de novo. Um golpe contra sua cabeça.
    Ao tentar se proteger ela acaba quebrando o pulso. Som que posso ouvir com clareza. 
    Ela chora. Urra de dor.
    Ergo o teclado novamente.
    Então solto contra ela. 
    Ergo o teclado. Mais um golpe.
    Peças se soltam.
    Sangue espirra.
    Ergo o teclado. Mais um golpe.
    Ela não se move.
    Meus braços doem. Estou ofegante e soado.
    Suas pernas brancas estão sujas com seu sangue. Ela agora tem um motivo para não tocar o teclado. Seu pulso está roxo e inchado.
    Silêncio.
    Paro em frente ao espelho. Arrumo minha gravata. Bonito.
    Por sorte as gostas de sangue não são aparentes em meu terno.
    Olho para ela. Não está mais tão bonita. 
    Tristeza.
    Seu rosto, com o nariz quebrado e faltando alguns dentes, está coberto de sangue. Seu cabelo está molhado por uma poça enorme de seu sangue. 
    Deve ter encontrado a paz.
    Desço a escada. A cafeteira apita. Sirvo um pouco de café. Caminho pela sala. Observo novamente as fotos e quadros. 
    Seu pai não está ali. Sua mãe continua sorrindo. 
    Muito linda. Se Caroline tivesse ido embora com ela. Nada disso teria acontecido
  • A primeira ação quando a quarentena acabar será...

    As vezes o pensamento flutua em retrospectiva, olho para trás e questiono minha caminhada até aqui. Estou beirando os quarenta, alguns sonhos, poucas oportunidades mas firme, desistir jamais! A vida era normal regada de esperança por dias melhores.

    Inimaginável colapso, mundo às avessas, sofrimento e agonia. Uma pandemia fortuita trazendo destruição. Sendo emergentes o óbvio, governança pífia, brecha para espoliação de verbas e desrespeito, pois há sempre incrédulos não querendo entender a real complexidade. Em meio a reveses como sonhar? Tendo esposa, filha, a missão seria garantir renda e orar por luz no fim do túnel. A trajetória não se mostrava fácil, isolamento, reaprender a conviver, trabalhar enfim inúmeros detalhes.

    Sou do Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, estado praticamente falido, décadas de corrupção, violência urbana expandindo e as chances menores. O tempo passava, não me iludi achando ser imediata a resolução. Diferente de outros estimando um, talvez dois meses para voltar ao normal. Imaginava no encerrar da quarentena o que faria ? Qual a prioridade ? Para muitos curtir aquela noitada, boteco, temos os viajantes, cinéfilos, etc. No entanto a meu ver projetar o simples bastaria.

    O recorde negativo país a fora seguia avassalador. Mais uma vez os cariocas eram destaque. Parte da população ignorava a doença sendo alheia as medidas protetivas e indignava aqueles buscando agir corretamente. Acreditei estar fazendo papel de bobo cumprindo a reclusão, mas buscava ter equilíbrio emocional para disseminar bons fluídos. Pensava nos entes queridos, estar longe simbolizava cuidado, respeito e acima de tudo amor.

    Todos os dias quando colocava minha filha para dormir sem hipocrisia rezava agradecido. Uma menina saudável, linda e forte. Por ter dois anos, ainda não estudar e conviver socialmente facilitou alguns pontos. Lembram da retrospectiva ? Valeu a pena estar aqui nesse exato momento! Deus vem sendo generoso proporcionando estar empregado para garantir o conforto da família. Não posso reclamar e me fazer de infeliz, seria injusto. Os sonhos vão retornando gradativamente e na hora certa se tiverem que acontecer estarei pronto. Até lá, sigo trabalhando firme. Ah! Faltou dizer, após a quarentena desejo levar minha filhota em um lugar para correr bastante! A garota adora! Ser pai trouxe outro sonho vê-la crescer.

    Estou ciente das adversidades, turbulências e desafios pós pandemia. Mas estamos vivos e ainda há tempo. Muito obrigado SENHOR por essa vida! E benção para todos vocês.

    LUTE E NÃO DESISTA!
  • A Solidão e A Cidade

    Findava o dia, e a sombra, mansamente,
    os seres aliviava cá na terra
    das fadigas comuns…
    Dante, O inferno

    Desfilam, à minha frente, as dores humanas. A finitude salta aos olhos com a graça de uma bailarina triste… É a hora da vida, que perde o futuro a cada instante. O pôr-do-sol que se aproxima faz sangrar as mais doces almas com a crueldade de um deus que tortura sob o véu do desespero. Olho ao redor e vejo que perante a noite o mundo é covarde, não há nada, nem ninguém que possa encarar a noite, sua nudez é agressiva a qualquer existência, e ao pôr-do-sol essa covardia se apresenta com uma nitidez ofuscante. Uma noite é uma experiência de vida pulsante que abala a realidade visível, a indiferença se torna impossível. A consciência e a lucidez tão sólidas que todos tinham enquanto o sol brilhava vai se dissipando e escurecendo com o cair da noite, surge a incerteza do homem, travestida de alegria e embriaguez. Aqui nos tornamos humanos.

    Saí pela porta dos fundos para passar despercebido a qualquer um (é sempre bom não chamar a atenção). Tranqüilamente desci a rua que dava para a pracinha do bairro como se caminhasse no jardim de algum mundo perdido no tempo. Ouvi meu nome. Era um conhecido. Cumprimentei-o e continuei minha caminhada, mesmo sem saber pra onde iria. Não existia um “onde”, só uma infinidade de rotas vãs que não chegariam nunca a lugar algum. Pensei em voltar pra casa, mas não! Havia acabado de anoitecer e eu precisava escapar do tédio, mesmo que fosse para, em seguida, cair na melancolia. Àquela hora, ninguém estava nas ruas, os bares estavam fechados, ainda era cedo, a cidade pertencia a mim. Eu reinava absoluto sobre aquele amontoado de “nadas” e me sentia também parte daquele gigantesco “nada” que se assemelhava a uma espécie de refúgio para quem já não tem nada a perder. Um amontoado de seres que juntos eram nada.

    Só é possível existir sozinho. Era nesse refúgio que eu me perdia e me sentia ameaçado. Havia chegado agora a uma grande avenida onde encontrei algumas pessoas tão perdidas e ameaçadas quanto eu. Uma garota, bonita até, olhou nos meus olhos quando passei, tinha um rosto triste e um olhar de quem ainda não se deu conta de que pode enxergar. Passei por ela, assim, sem dedicar-lhe maior atenção. Era finalmente o existir. Sentia-me impressionantemente feliz. A alegria de quem se sentia livre e a angústia da consciência do limite, eram as causas da singular felicidade que sentia.

    Perdia-me em devaneios sob os olhos ocultos da realidade, amava aquele mundo que parecia tão pouco meu, tão distante de minha compreensão. Sentia-me como alguém que perdeu todos os sentidos, que não podia reconhecer nada, mas que ainda era capaz de amar… amar desesperadamente a solidão, amar o próprio desespero de estar só. Solidão… uma palavra com um gosto amargo que está sempre na boca de todos, pronta para ser pronunciada e se espalhar como uma peste noite adentro. Mas não a pronunciam; embriagam-se para escapar dela, encontram outras pessoas para esquecê-la, ou simplesmente se matam. No entanto, toda fuga é inútil e tudo o que se consegue é perder, visceralmente, a dignidade.

    Cheguei a um cruzamento e parei para esperar que o sinal abrisse, enquanto isso, percebi que a noite já reinava soberana sobre a cidade, e desta só restavam escombros. Ninguém mais se reconhecia, eram todos estrangeiros, que só não se matavam por um estranho senso mútuo de cumplicidade e dependência. Por que? Como é possível que vivam assim, os homens? Será que só eu tinha a consciência de que todos se odiavam e queriam acabar com o primeiro que cruzasse seus olhares? A cidade parece ter um mecanismo invisível que impede tal coisa, o império de um imperador que não existe, um império que se sustenta sobre o vazio e que não tem razão de existir, mas, nem por isso se entrega a própria ruína. Era nessa impressão de real que eu estava me afogando, me consumindo como se tragasse um cigarro … era a lei da noite, e eu não podia fazer nada que não resultasse vão. Os olhos do eterno suprimiam toda coragem e toda nobreza, o porvir era tudo e o presente se perdia como algo inatingível. Angustiado, olhei para o nada e decidi rir…


    Janeiro de 2007
  • A tríade do mau em si

    Decidiu ir muito mais além do que se possa imaginar em sua estadia no plano físico-orgânico e tridimensional. Resolveu descortinar-se, despindo do manto de ignorância da sua própria persona programada, alienada e fragmentada. Parou de culpar o mundo… as pessoas… as coisas… tudo! Vira a culpa em si mesmo, e se vendo em sua dramática lastima percebeu-se sabotador de si mesmo, porquanto, ainda não se conhecia.

    A medida em que se observava, vira a tríade mental do seu ser mundano e civilizado psicológico: o EU INTELECTUAL; o EU EMOCIONAL; o EU SEXUAL. E se viu em uma sala completamente espelhada, em que cada ‘EU’ do triângulo de si, se multiplicava infinitamente no amago de sua personalidade inconstante e provisória.

    Ao se perceber equacionado em si mesmo… expressadamente contido entre parênteses, colchetes e chaves. Multiplicado e dividido meditou em manter a ordem dos fragmentos opostos, para por último se resolver em fatores de subtrações e adições, em toda complexidade de somatórias minimalísticas, entre efêmeras igualdades e variadas situações dos seus multifacetados ‘eus’ aplicativos do mau em si.

    Muito além de sua complexidade mental psicológica… degenerativas de todos os orgânicos e inorgânicos sentidos do corpo-mente… em que o ‘EU INTELECTUAL’ se aplica, elaborando seus conceitos e preconceitos a partir das múltiplas percepções externas e internas que adultera a Arte Sagrada, a Filosofia Primordial e a Santa Religião… o que já era pesado demais para resolver… tinha ainda que lidar com o automatismo instintivo do seu corpo físico-orgânico, pelo qual confeccionara o ‘EU SEXUAL’. Porém, mais ainda perigoso e desastroso, entre outros e esses fatores… era lidar com o insaciável e temido ‘EU EMOCIONAL’, a cabeça do meio do Dragão-de-Três-Cabeças, em que os outros dois ‘eus’ eram-lhes subservientes.

    Fora impactado pela tríade do ‘EU’ desde o nascimento, o que adoecia o corpo-mente, levando a uma total inconsciência ignorante de si, do outro e ao redor na cadeia ponto-espaço-tempo. Passara por longos e agoniantes momentos de transformações decadentes, ao receber do mundo exterior falsas imagens e impressões da realidade descendente em infra-normalidades, se afeiçoando as falsas qualidades antagônicas terrivelmente negativas do materialismo, baixo espiritualismo e vaidosas “verdades” sociais, econômicas e étnicas de si. E assim, decidira com afinco trabalhar na educação de sua forma infra-humana enfrentando o Dragão-de-Três-Cabeças, o Macho Alfa de suas bestialidades, brutalidades, temores, vaidades, traumas, vícios, costumes, psicoses e luxurias… a parte do partido egocêntrico, humanoide-animalesco em que adormece e entorpece a Sagrada Consciência Divina em sua gnose.

    Assim, almejava o retorno a sua Pureza Original, ao se render as espadas flamejantes das sentinelas-querubins que guardavam o caminho de acesso à Árvore da Vida.

    Aprofundando-se mais e mais em si mesmo, silenciou-se em sua retorta, destilou-se no Alkahest (solvente universal) de sua vontade, para ser posto em uma das câmeras do At-tannur (forno alquímico) de sua consciência, almejando ser purificado dos constituintes de seus ‘eus’ em sua solitária espargia espiritual.

    Os muitos questionamentos… as muitas perguntas… o excesso de gesticulações… as queixas e tagarelices de si, e as reclamações do mundo externo… o que não era ou estava bom em sua vivência… a falta de atenção e elogios alheios não mais o perturbavam em sua busca meditativa, em íntima contemplação.

    Apenas deixou-se ser arrastado pelo Rio (o Criativo), guiado em inércia e não-ação para o Mar (o Receptivo).

    Assim!

    O Amante, em Amor, uniu-se ao Amado…

    O Masculino penetrou o Feminino…

    O Homem conheceu a Mulher…

    O Pai gerou o Filho na Mãe…

    O Céu cobriu a Terra…

    O Sol em sua potência iluminou a Lua…

    O Criador, na Criação, manifestou-se em Criatura…

    E o Fogo Sagrado derreteu o tenebroso gelo nos empedrados corações.
  • A união do complexo medo atraente

    Penetrara no karma atual da moderna sociedade virtual em que nasceu, cresceu e ainda vive, mergulhado numa atmosfera de medos e complexos que lhe foi imposto por uma sociedade de valores hipócritas e sentimentos ilusórios. Essa triste “realidade” que até então vivenciava, teve sua extrema abrangência com o poder que lhe foi outorgado através da internet e seus recursos digitais. Passara em muito pouco tempo de um simples telespectador para um aspirante astro internauta autodidata.

    Através da internet e suas redes sociais, como um cyberpunk moderno, percebeu que a espada encantada cravada na grande pedra, não pertencia somente ao lendário e valente Rei Arthur e seus cavaleiros da távola-redonda, como era antes o caso monopolista da grande mídia. Agora sabia que também ele obtivera o direito de possuir sua própria espada mágica, e, foi encantado e possuído por ela.

    No início não podia prever as consequências de tal poder. Tudo era maravilhosamente maravilhoso. Estava perplexo diante dos inúmeros portais mágicos que lhe fora aberto por esses dispositivos radiativamente encantados, onde tudo começou com o poder telepático de enviar e receber nossos pensamentos, desejos e sentimentos nos virtualizando em palavras, falas e imagens. Abrangendo nossas perspectivas limitadas, além dos nossos vínculos sociais mais próximos, alcançando o desconhecido em milésimos de segundos, entre os milhares quilômetros de distâncias. Até o Mago Merlim se aqui entre nós, nesse momento, estivesse, ficaria impressionado com tamanho poder e proeza outorgado a todos.

    Porém, a espada de Arthur continha dois gumes e cortava dos dois lados.

    Percebeu-se ainda, que, não tarde, o poder que lhe foi ofertado pelos deuses tecnológicos exigia de nós sabedoria para possuí-lo. Essa poderosa espada mágica Kaledvouc’h como se outrora pensava, estava inacessível ao grande público há tanto tempo, encrustada na grande pedra, pelo nobre motivo daquele a quem seria o seu possuidor, ter que passar por ensinamentos de vida rigorosos, pelo qual o seu espírito e o seu coração fossem meticulosamente testados. Só assim, teriam a primazia de obter a força dos deuses para puxar a espada da grande pedra. Essa sagrada espada é raramente denominada “Excalibur”, e é retirada por Arthur como símbolo milagroso de sua Nobreza e direito ao trono da Bretanha.

    Entretanto, agora se questionara: Será que todos possui esse direito e nobreza do Rei Arthur?

    Fomos preparados e disciplinados para empunhar tamanho poder?

    Virtualmente, se deparou com os muitos casos de jovens que por uma simples brincadeira nas redes sociais, acabaram causando dor e destruição a si mesmos e aos outros. Como foi o caso da menina russa de 17 anos que morava nos Estados Unidos, que filmou um ato de estrupo em um aplicativo de postagens de vídeos, com duração de nove minutos, só para obter likes. Intentara que naquele momento durante a filmagem, a jovem poderia usar o seu dispositivo para pedir ajuda ligando para polícia, ou um adulto responsável, também notara, que as pessoas que estavam assistindo o vídeo online, em vez de dar likes, poderiam aconselhá-la para impedir aquele ato brutal. Que alcançou milhares de visualizações.

    Daí, meditara, que o poder sem a responsabilidade é cegamente egoísta e brutal.

    Entretanto, dualisticamente, não esquecia ele, que Excalibur é uma espada pontuda afiada de dois gumes que corta, penetra e dilacera. Podendo afastar as pessoas, ou uni-las. Mas, nesse bidimensional mundo de algoritmos binários computacional e ilusório, afirmava ele somente conhecer causas e efeitos mecânicos, e nunca as Sagradas Leis Naturais em si mesmas. Por isso, que ao unir as pessoas, afastava a solidariedade entre elas, em que camuflado e protegido em sua privacidade, por detrás das telas negras caleidoscópicas brilhantes, o indivíduo se julgava ir além do respeito e dos sentimentos fraternos, soltando sua naja língua pensante, em seus rápidos dígitos dedos, envenenada nos seus mais mesquinhos sentimentos obscuros de inveja, cacoetes, ego e porcas maldades. Que no mundo fenomenal das aparências, só percebia bidimensionalmente ângulos e superfícies, e nunca o integral das coisas.

    Obviamente, ele sabia que a dialética da consciência da proximidade física dos corpos pensantes, que tudo entende por intuição, através das palavras audíveis, figuras simbólicas, gestos, movimentos, olhares e expressões voluntárias e involuntárias fora cruelmente ofuscada pela dialética racional do intelecto presente nas redes sócias, fóruns e plataformas proprietárias de mensagens instantâneas baseadas em nuvem, que nada tem de essência natural humana, e sim, apenas o ilusórico poder formulativo de ideias e conceitos lógicos preconcebidos, que por mais brilhante que seja, e por mais que se julgue de qualidade e de utilidade nos inúmeros aspectos da vida prática e cotidiana, nada tem de valor para existência e ecologia humana, resultando apenas em obstáculos subjetivos, incoerentes, torpes e pesados para nossa simbiose como seres fraternais coletivos, e que nada tem de verdade.

    No fim, diante da verdade, percebeu-se sendo o pobre poderoso, precisando de alento (likes, em legais polegares opositores), precisando de algo que o anime (coraçãozinhos vermelhos, e rostos redondos sorridentes amarelados), sentiu-se com o ego demasiadamente forte e personalidade terrivelmente débil, por sua própria mesquinha natureza apodrecida em si mesmo, encontrando-se numa situação completamente desastrosa, e sem vantagens, em que o sono lhe foi roubado, a ansiedade descontrolava as batidas do seu coração, e a vaidade tomara o controle de sua alma, tendo a depressão como amante e companheira.

    E no seu estado deprimente, porém, contemplativo, sabia ele que nos primórdios da nossa existência como uma das muitas espécies que habita esse ecossistema terráqueo, éramos simplesmente um ser coabitando e interagindo com os outros inúmeros seres aqui existentes. Não víamos a natureza como esse belo quadro pintado a óleo ou aquarela, ou como as ‘pixeladas’ imagens digitais no fundo dos nossos desktops eletrônicos e dispositivos móveis. Não ansiávamos pela chegada do tempo limitado do fim de semana para passear com a família nos bosques e pradarias, e nem tão pouco esperávamos a chegada das férias para curtir os muitos lugares paradisíacos, ou nos aventurar em trilhas, escaladas e caminhadas nos ditos ambientes naturais e ecológicos. Essa coisa alheia que hoje denominamos “NATUREZA” era intimamente o único e o primeiro mundo vital e cultural que existíamos. Nossos antepassados não só viviam em contato íntimo com as outras criaturas vegetais, animais e inanimadas, como se comunicavam diretamente com os seus espíritos e coração. Daí que surgem as fabulosas histórias e contos de fadas, gnomos, duendes, devas, ninfas, curupiras, orixás, anjos, caboclos, entre outras inúmeras manifestações do que hoje classificamos como “espíritos inorgânicos da natureza” em diversas culturas humanas espalhadas pelo mundo.

    Por isso, ficou muito difícil para o seu entendimento humano separar a sua espiritualidade, cura e boa qualidade de vida da Mãe Natureza. E, entendeu o porquê dos diversos movimentos esotéricos, xamanísticos, taoístas, hinduístas, budistas, cabalistas, sufistas, gnósticos, wicca, candomblé, entre outros da busca da espiritualidade, como também os movimentos de cura, saúde mental, e medicina ancestral e alternativa se situarem em ambientes naturais abertos e ecológicos.

    Nisso, percebeu que ao longo do nosso rigoroso processo civilizatório, em que gradualmente nos separamos do nosso natural habitar, que o SAGRADO em nós foi naturalmente esquecido. Deixamos de ouvir as MENSAGENS DOS VENTOS, paramos de falar a LÍNGUA DAS ÁRVORES E MONTANHAS, abandonamos o afeto de SENTIR COM O CORAÇÃO, e os nossos olhos se cegaram para o MUNDO INVISÍVEL. E, para piorar mais ainda a sua situação, vira que como espécie se transformara no pior predador que já existiu em todos os tempos, ‘Satânico Aniquilador’ das muitas culturas existenciais em todos os aspectos da natureza, e, dele mesmo.

    Meditara ainda mais profundamente de que como espécie, nos tornamos existências humanas desencantadas, prisioneiras de nós mesmos em frente a uma tela Touch Screen de valores, e, de falsas concepções virtuais, mendigando uma irreal atenção em salva de palmas, likes e emotions de coraçãozinhos vermelhos, rostos redondos amarelados (caras de bolachas) e legais polegares opositores. Vira que as proximidades humanas se basearam em distantes conexões WI-FI, em que ignoramos cruelmente os nossos presentes íntimos entes queridos a nossa volta, em ser um direto participante na criação do Aqui e Agora, para nos tornar um observador e um observado distante do passado alienado dos desejos, anseios, críticas e felicidades do desconhecido “amigo” internauta. Preferimos viver solitários com políticas de privacidade essa virtual ruptura do contato natural, nos separando plenamente do sentido existencial da vivência humana, e minimizando a nossa consciência social, afetiva e emocional ao estado simplista do observador e do observado, e de que a tecnologia não promove e nunca promoverá, assim, como, as propostas da comunidade científica, uma fusão harmoniosa com a existência humana e a natureza. Sua meta desde a revolução industrial é unicamente modificar. Acreditando melhorar, otimizar, maximizar, implantar, oportunizar e assegurar um conceito evolucionário de humanidade ciberneticamente supranatural, onde poderíamos viver sem depender dos recursos naturais e afetos sociais para nossa existência. Para assim, em vez de (como eles acreditam) subsistirmos, ‘sobre-existirmos’ na lua, em Marte, ou em uma cosmológica galáxia distante como prega e aliena a NASA e Hollywood.

    Sentira que perdera a simplicidade da vida e o seu primeiro amor, e se tornara um ser imediatista, arrogante, conformista, impaciente, tempestuoso, depressivo e penoso. Ignorava suas crianças, e assim, fazia com que elas o ignorasse, transformando-as no subproduto mesquinho dele mesmo. Nisso, vira que ignoramos os nossos semelhantes como nunca antes já vivenciado no mundo, em todos os tempos de nossa comunal existência, ofertando para os nossos irmãos e irmãs o que tem de pior em nós mesmo. E, dessa forma e maneira, acumulamos dores e sofrimentos para o nosso último sopro de vida, e assim, morremos existencialmente porque matamos nossa essência dentro dos nossos filhos e filhas, chegando a tal ponto de não mais nos perpetuarmos nos novos corpos.

    Percebera que a verdadeira expressão para o mundo tecnológico de hoje é ABSOLUTA TRISTEZA. E isso dói na alma… adoecemos! E o pior é de que não sabemos que estamos existindo enfermos. Acumulamos muitos bens do Aqui e pouca coisa do Agora, e a Magia da Alegria abandonou a Morada do Coração, e o Sagrado Entendimento que em tudo dança se ocultou. Então, eis a questão e desafio existencial da nossa cultura humana: ATÉ QUANDO FICAREMOS CALADOS E INERTES, TRANSMITINDO PARA AS GERAÇÕES FUTURAS ESSA GRANDE DEPRESSÃO EXISTENCIAL, PELO QUAL NOS CONVERTEMOS NO TIRANO PROBLEMÁTICO DESTRUIDOR DA BELEZA DE TODAS AS COISAS? Entretanto, quem se movimentará e falará com loucura e paixão para o despertar da grande massa? Quem será esse novo Meshiach e Avatar? Mas, enquanto ELE ou ELA não chegar ficaremos inertes, atrofiando nossa mente e coração nas telas e internet? Imbuído nessas íntimas e totalitárias questões, analisara que os desafios para o retorno do SAGRADO em nossas vidas são tremendamente numerosos.

    E, contemplando todo aquele panorama, se viu com sua poderosa espada na palma de sua mão, a mágica Kaledvouc’h, o espelho negro. E como um pedaço de madeira arrastado pelo rio, tentando resolver as coisas por sua própria conta, reagindo ante qualquer dura palavra, qualquer problema e qualquer dificuldade, lamentavelmente, o medo empoderou o seu ser, fabricando nos cinco cilindros da máquina orgânica, em que lhe compunha e que o seu SER habitara, os inumeráveis multifacetados eus-demônios, aplicativos escravos de si mesmo.

  • A união do complexo medo atraente

    Penetrara no karma atual da moderna sociedade virtual em que nasceu, cresceu e ainda vive, mergulhado numa atmosfera de medos e complexos que lhe foi imposto por uma sociedade de valores hipócritas e sentimentos ilusórios. Essa triste “realidade” que até então vivenciava, teve sua extrema abrangência com o poder que lhe foi outorgado através da internet e seus recursos digitais. Passara em muito pouco tempo de um simples telespectador para um aspirante astro internauta autodidata.

    Através da internet e suas redes sociais, como um cyberpunk moderno, percebeu que a espada encantada cravada na grande pedra, não pertencia somente ao lendário e valente Rei Arthur e seus cavaleiros da távola-redonda, como era antes o caso monopolista da grande mídia. Agora sabia que também ele obtivera o direito de possuir sua própria espada mágica, e, foi encantado e possuído por ela.

    No início não podia prever as consequências de tal poder. Tudo era maravilhosamente maravilhoso. Estava perplexo diante dos inúmeros portais mágicos que lhe fora aberto por esses dispositivos radiativamente encantados, onde tudo começou com o poder telepático de enviar e receber nossos pensamentos, desejos e sentimentos nos virtualizando em palavras, falas e imagens. Abrangendo nossas perspectivas limitadas, além dos nossos vínculos sociais mais próximos, alcançando o desconhecido em milésimos de segundos, entre os milhares quilômetros de distâncias. Até o Mago Merlim se aqui entre nós, nesse momento, estivesse, ficaria impressionado com tamanho poder e proeza outorgado a todos.

    Porém, a espada de Arthur continha dois gumes e cortava dos dois lados.

    Percebeu-se ainda, que, não tarde, o poder que lhe foi ofertado pelos deuses tecnológicos exigia de nós sabedoria para possuí-lo. Essa poderosa espada mágica Kaledvouc’h como se outrora pensava, estava inacessível ao grande público há tanto tempo, encrustada na grande pedra, pelo nobre motivo daquele a quem seria o seu possuidor, ter que passar por ensinamentos de vida rigorosos, pelo qual o seu espírito e o seu coração fossem meticulosamente testados. Só assim, teriam a primazia de obter a força dos deuses para puxar a espada da grande pedra. Essa sagrada espada é raramente denominada “Excalibur”, e é retirada por Arthur como símbolo milagroso de sua Nobreza e direito ao trono da Bretanha.

    Entretanto, agora se questionara: Será que todos possui esse direito e nobreza do Rei Arthur?

    Fomos preparados e disciplinados para empunhar tamanho poder?

    Virtualmente, se deparou com os muitos casos de jovens que por uma simples brincadeira nas redes sociais, acabaram causando dor e destruição a si mesmos e aos outros. Como foi o caso da menina russa de 17 anos que morava nos Estados Unidos, que filmou um ato de estrupo em um aplicativo de postagens de vídeos, com duração de nove minutos, só para obter likes. Intentara que naquele momento durante a filmagem, a jovem poderia usar o seu dispositivo para pedir ajuda ligando para polícia, ou um adulto responsável, também notara, que as pessoas que estavam assistindo o vídeo online, em vez de dar likes, poderiam aconselhá-la para impedir aquele ato brutal. Que alcançou milhares de visualizações.

    Daí, meditara, que o poder sem a responsabilidade é cegamente egoísta e brutal.

    Entretanto, dualisticamente, não esquecia ele, que Excalibur é uma espada pontuda afiada de dois gumes que corta, penetra e dilacera. Podendo afastar as pessoas, ou uni-las. Mas, nesse bidimensional mundo de algoritmos binários computacional e ilusório, afirmava ele somente conhecer causas e efeitos mecânicos, e nunca as Sagradas Leis Naturais em si mesmas. Por isso, que ao unir as pessoas, afastava a solidariedade entre elas, em que camuflado e protegido em sua privacidade, por detrás das telas negras caleidoscópicas brilhantes, o indivíduo se julgava ir além do respeito e dos sentimentos fraternos, soltando sua naja língua pensante, em seus rápidos dígitos dedos, envenenada nos seus mais mesquinhos sentimentos obscuros de inveja, cacoetes, ego e porcas maldades. Que no mundo fenomenal das aparências, só percebia bidimensionalmente ângulos e superfícies, e nunca o integral das coisas.

    Obviamente, ele sabia que a dialética da consciência da proximidade física dos corpos pensantes, que tudo entende por intuição, através das palavras audíveis, figuras simbólicas, gestos, movimentos, olhares e expressões voluntárias e involuntárias fora cruelmente ofuscada pela dialética racional do intelecto presente nas redes sócias, fóruns e plataformas proprietárias de mensagens instantâneas baseadas em nuvem, que nada tem de essência natural humana, e sim, apenas o ilusórico poder formulativo de ideias e conceitos lógicos preconcebidos, que por mais brilhante que seja, e por mais que se julgue de qualidade e de utilidade nos inúmeros aspectos da vida prática e cotidiana, nada tem de valor para existência e ecologia humana, resultando apenas em obstáculos subjetivos, incoerentes, torpes e pesados para nossa simbiose como seres fraternais coletivos, e que nada tem de verdade.

    No fim, diante da verdade, percebeu-se sendo o pobre poderoso, precisando de alento (likes, em legais polegares opositores), precisando de algo que o anime (coraçãozinhos vermelhos, e rostos redondos sorridentes amarelados), sentiu-se com o ego demasiadamente forte e personalidade terrivelmente débil, por sua própria mesquinha natureza apodrecida em si mesmo, encontrando-se numa situação completamente desastrosa, e sem vantagens, em que o sono lhe foi roubado, a ansiedade descontrolava as batidas do seu coração, e a vaidade tomara o controle de sua alma, tendo a depressão como amante e companheira.

    E no seu estado deprimente, porém, contemplativo, sabia ele que nos primórdios da nossa existência como uma das muitas espécies que habita esse ecossistema terráqueo, éramos simplesmente um ser coabitando e interagindo com os outros inúmeros seres aqui existentes. Não víamos a natureza como esse belo quadro pintado a óleo ou aquarela, ou como as ‘pixeladas’ imagens digitais no fundo dos nossos desktops eletrônicos e dispositivos móveis. Não ansiávamos pela chegada do tempo limitado do fim de semana para passear com a família nos bosques e pradarias, e nem tão pouco esperávamos a chegada das férias para curtir os muitos lugares paradisíacos, ou nos aventurar em trilhas, escaladas e caminhadas nos ditos ambientes naturais e ecológicos. Essa coisa alheia que hoje denominamos “NATUREZA” era intimamente o único e o primeiro mundo vital e cultural que existíamos. Nossos antepassados não só viviam em contato íntimo com as outras criaturas vegetais, animais e inanimadas, como se comunicavam diretamente com os seus espíritos e coração. Daí que surgem as fabulosas histórias e contos de fadas, gnomos, duendes, devas, ninfas, curupiras, orixás, anjos, caboclos, entre outras inúmeras manifestações do que hoje classificamos como “espíritos inorgânicos da natureza” em diversas culturas humanas espalhadas pelo mundo.

    Por isso, ficou muito difícil para o seu entendimento humano separar a sua espiritualidade, cura e boa qualidade de vida da Mãe Natureza. E, entendeu o porquê dos diversos movimentos esotéricos, xamanísticos, taoístas, hinduístas, budistas, cabalistas, sufistas, gnósticos, wicca, candomblé, entre outros da busca da espiritualidade, como também os movimentos de cura, saúde mental, e medicina ancestral e alternativa se situarem em ambientes naturais abertos e ecológicos.

    Nisso, percebeu que ao longo do nosso rigoroso processo civilizatório, em que gradualmente nos separamos do nosso natural habitar, que o SAGRADO em nós foi naturalmente esquecido. Deixamos de ouvir as MENSAGENS DOS VENTOS, paramos de falar a LÍNGUA DAS ÁRVORES E MONTANHAS, abandonamos o afeto de SENTIR COM O CORAÇÃO, e os nossos olhos se cegaram para o MUNDO INVISÍVEL. E, para piorar mais ainda a sua situação, vira que como espécie se transformara no pior predador que já existiu em todos os tempos, ‘Satânico Aniquilador’ das muitas culturas existenciais em todos os aspectos da natureza, e, dele mesmo.

    Meditara ainda mais profundamente de que como espécie, nos tornamos existências humanas desencantadas, prisioneiras de nós mesmos em frente a uma tela Touch Screen de valores, e, de falsas concepções virtuais, mendigando uma irreal atenção em salva de palmas, likes e emotions de coraçãozinhos vermelhos, rostos redondos amarelados (caras de bolachas) e legais polegares opositores. Vira que as proximidades humanas se basearam em distantes conexões WI-FI, em que ignoramos cruelmente os nossos presentes íntimos entes queridos a nossa volta, em ser um direto participante na criação do Aqui e Agora, para nos tornar um observador e um observado distante do passado alienado dos desejos, anseios, críticas e felicidades do desconhecido “amigo” internauta. Preferimos viver solitários com políticas de privacidade essa virtual ruptura do contato natural, nos separando plenamente do sentido existencial da vivência humana, e minimizando a nossa consciência social, afetiva e emocional ao estado simplista do observador e do observado, e de que a tecnologia não promove e nunca promoverá, assim, como, as propostas da comunidade científica, uma fusão harmoniosa com a existência humana e a natureza. Sua meta desde a revolução industrial é unicamente modificar. Acreditando melhorar, otimizar, maximizar, implantar, oportunizar e assegurar um conceito evolucionário de humanidade ciberneticamente supranatural, onde poderíamos viver sem depender dos recursos naturais e afetos sociais para nossa existência. Para assim, em vez de (como eles acreditam) subsistirmos, ‘sobre-existirmos’ na lua, em Marte, ou em uma cosmológica galáxia distante como prega e aliena a NASA e Hollywood.

    Sentira que perdera a simplicidade da vida e o seu primeiro amor, e se tornara um ser imediatista, arrogante, conformista, impaciente, tempestuoso, depressivo e penoso. Ignorava suas crianças, e assim, fazia com que elas o ignorassem, transformando-as no subproduto mesquinho dele mesmo. Nisso, vira que ignoramos os nossos semelhantes como nunca antes já vivenciado no mundo, em todos os tempos de nossa comunal existência, ofertando para os nossos irmãos e irmãs o que tem de pior em nós mesmos. E, dessa forma e maneira, acumulamos dores e sofrimentos para o nosso último sopro de vida, e assim, morremos existencialmente porque matamos nossa essência dentro dos nossos filhos e filhas, chegando a tal ponto de não mais nos perpetuarmos nos novos corpos.

    Percebera que a verdadeira expressão para o mundo tecnológico de hoje é ABSOLUTA TRISTEZA. E isso dói na alma… adoecemos! E o pior é de que não sabemos que estamos existindo enfermos. Acumulamos muitos bens do Aqui e pouca coisa do Agora, e a Magia da Alegria abandonou a Morada do Coração, e o Sagrado Entendimento que em tudo dança se ocultou. Então, eis a questão e desafio existencial da nossa cultura humana: ATÉ QUANDO FICAREMOS CALADOS E INERTES, TRANSMITINDO PARA AS GERAÇÕES FUTURAS ESSA GRANDE DEPRESSÃO EXISTENCIAL, PELO QUAL NOS CONVERTEMOS NO TIRANO PROBLEMÁTICO DESTRUIDOR DA BELEZA DE TODAS AS COISAS? Entretanto, quem se movimentará e falará com loucura e paixão para o despertar da grande massa? Quem será esse novo Meshiach e Avatar? Mas, enquanto ELE ou ELA não chegar ficaremos inertes, atrofiando nossa mente e coração nas telas e internet? Imbuído nessas íntimas e totalitárias questões, analisara que os desafios para o retorno do SAGRADO em nossas vidas são tremendamente numerosos.

    E, contemplando todo aquele panorama, se viu com sua poderosa espada na palma de sua mão, a mágica Kaledvouc’h, o espelho negro. E como um pedaço de madeira arrastado pelo rio, tentando resolver as coisas por sua própria conta, reagindo ante qualquer dura palavra, qualquer problema e qualquer dificuldade, lamentavelmente, o medo empoderou o seu ser, fabricando nos cinco cilindros da máquina orgânica, em que lhe compunha e que o seu SER habitara, os inumeráveis multifacetados eus-demônios, aplicativos escravos de si mesmo.

  • A verdade está onde nunca a procuramos — Crônicas do Parque

    Era uma daquelas manhãs escaldantes com temperaturas que variavam de trinta e cinco a trinta e oito graus célsius, com sensação de quarenta a quarenta cinco no centro-norte de Israel. Como de costume me encontrava todos os Yom Sheni (segunda-feira) no parque de Kfar Saba, fazendo manutenção nas piscinas ecológicas.

    Pegava meu bastão de rede, uma caixa plástica preta dessas de armazenar verduras em supermercados, e um balde vazio de comida de peixes ornamentais. Entrava na piscina e submergia até os joelhos no primeiro terraço em que ficava as Nymphoides, espécies do gênero das plantas aquáticas que crescem enraizados no fundo com as folhas a flutuar à superfície da água, de cores brancas, amarelas e variadas tonalidades de flores rosa, da família Nymphaeaceae.

    Prendia meu smartphone pela sua capa ao cordão que ficava no meu pescoço, em que segurava ao peito um Magen David (Estrela de Davi) com um rosto de leão no centro, e colocava uma música suave para iniciar o meu trabalho de cuidar dos nenúfares.

    Em especial, aquela era a piscina ecológica que eu mais gostava dentre todas outras que dava manutenção no centro-norte. Pois além de ser a maior dessa região, estava em um parque bonito e tranquilo arrodeado de belas esculturas. Essa piscina era especial, pois era a única de todas que tinha uma original carpa cinza gigante, espécie de peixe de água doce originário da China, e também havia um canteiro com Lotus Branco (Nelumbo Nucifera), um género de plantas aquáticas pertencente à família Nelumbonaceae da ordem Proteales, e também era lotada de peixes Koi (Nishikigoi), tendo o Higoi (carpa vermelha), o Asagui (carpa azul e vermelha) e o Bekko (branca e preta), que são carpas ornamentais coloridas ou estampadas que surgiram por mutação genética espontânea das carpas comuns (carpas cinza) na região de Niigata no Japão, tendo também outras inúmeras variedades de peixes ornamentais como: peixes dourados, peixes barrigudinho (Guppy) de diversas cores, aruanãs, entre muitos outros.

    Nesse dia em especial, me senti constantemente sendo observado por um senhor de chapéu azul e cabelos grisalhos que aparentava ter a idade de oitenta anos. Estava bem vestido e mantinha sempre um sorriso no rosto. Ele se encontrava sentado em um banco largo que ficava próximo a piscina. E lentamente eu me aproximava dele ao curso do meu oficio de retirar as folhas amareladas dos nenúfares. E ao me aproximar daquela figura atraente, eu o cumprimentei com um Boker Tov (Bom Dia), e ele me respondeu com um Boker Or (Manhã de Luz). Assim trocamos sorrisos, e me voltei novamente para o meu ofício matinal.

    Quando o balde em que colocava as folhas amareladas e flores mortas dos nenúfares se encontrou cheio, me retirei da piscina para esvazia-lo, o despejando na caixa plástica preta que estava perto do banco em que o senhor de chapéu azul se encontrava sentado. E ao me retirar para regressar a piscina, ele elevou a sua doce voz anciã, perguntando-me:

    _ Atah Rotze coz cafeh (Você aceita um copo de café)?

    Então, de imediato lhe respondi:

    _ Ken, efshar (sim, aceito).

    Então, ele retirou de uma sacola de pano um bojão de gás pequeno e enroscou uma pequena boca de fogo nele, acoplando. Colocou o aparato ao solo, e retirou da sacola uma garrafa pet de coca-cola com água, uma pequena chaleira e dois copos de aço inoxidável. E, enquanto ele despejava a água no recipiente e ascendia o fogo com um isqueiro para ferventar, fez um sinal com as mãos para eu me sentar ao seu lado.

    Enquanto a água estava para ferver, nos apresentamos e ele me fazia inúmeras perguntas sobre mim e meu oficio. Perguntas comuns que eu já estava calejado em responder. E depois que ele preparou o café, comecei também a interroga-lo. Para minha surpresa descobri que ele não era judeu, mas árabe. Sendo que falava um bom hebraico sem sotaque e se vestia elegantemente, como um velho Ashkenazi. Além dele ter olhos de uma cor azul claros como o céu que estava sobre nossas cabeças. (…Nós, e nossos pré-julgamentos…).

    Ele me falou que viveu muito anos na Espanha, sendo um mestre sacerdote de Sufi gari (Tasawwuf), uma arte mística e contemplativa do Islão, assim como é a Kabbalah para os judeus. Ele viu o Magen David em meu peito, e disse que era bonito esse símbolo com um rosto do leão no centro. Também, me falou que esse símbolo em que os judeus se apropriaram o colocando em sua bandeira, é de muita importância para o Tasawwuf (Sufismo). E me revelou segredos importantes sobre o significado desse símbolo.

    Conversamos sobre muitas coisas, e eu o interrogava mais e mais, pois vi que esse senhor era muito sábio e ciente de tudo que falava. Ele me revelou coisas sobre a conduta do corpo, como postura e fala. Falou-me sobre pensamentos, músicas e danças místicas, e, sobre alimentação e jejuns para se ter uma vida espiritual equilibrada com o corpo físico. Nesse assunto, eu perguntei a ele porque não se deve comer carne de porco. Até porque eu já tinha perguntado a muitos rabinos e religiosos judeus o porquê de não comer a carne desse animal, e muitos não sabiam me responder ao certo. E os que respondiam, falavam que estava escrito nos Livros da Lei, a Torah, mas não sabiam perfeitamente o porquê.

    Diante da minha pergunta, ele sorriu e me disse algo em que fiquei atônito. Contava ele que os porcos eram seres humanos amaldiçoados, por levar uma vida sexual pervertida na sua última encarnação. Ele me disse que por isso dentre todos os animais o porco era o mais inteligente, e, que seus órgãos internos como fígado, rins e coração são muito parecidos com os nossos, pois na verdade era um ser humano que encarnou nessa condição com a total consciência de sua vida passada, mas que devido ao fato de estar em um corpo animal atrofiado não podia se comunicar para se revelar como tal. Nasceu nessa condição devido a decadência espiritual de sua vida anterior como ser humano, ao se entregar aos prazeres sexuais nojentos e tenebrosos, por isso esse animal pode levar até trinta minutos tendo orgasmos. E assim, veio nessa condição para viver em sua podridão, ao comer seu alimento e dormir misturado as suas fezes, mesmo tendo a inteligência de defecar em um mesmo lugar, são condicionados pelos seus criadores (seres-humanos) a viver junto ao seu excremento. Também, ele me falou que o porco não tem a capacidade de olhar para cima, não podendo ver o céu, e sua pele não pode ser exposta a luz solar por muito tempo, pois não consegue transpirar, e pela falta de umidade decorrente do suor pode sofrer fortes queimaduras. Nasceu para olhar para baixo e se esconder da luz, sendo forçado por essa natureza a viver na lama. Ele também me disse, que o porco é o animal mais amaldiçoado do que a serpente, pois os porcos são invulneráveis às suas picadas venenosas. E concluiu:

    _ É por isso que não se deve consumir a carne desse animal, pôr na verdade ser um ser-humano totalmente consciente em forma atrofiada. _ e, acrescentou me revelando algo_ Você sabia que não a diferença de gosto entre carne humana da carne suína… ambas possuem a mesma textura e sabor.

    Uau! Diante desses fatos que me foram apresentados por esse velho sacerdote Sufi, eu fiquei estupefato. E, entendi o porquê de George Orwell escolher os porcos para serem os protagonistas da revolução em seu romance satírico (Animal Farm — A Revolução dos Bichos). Provavelmente, ele sabia desse conhecimento do Tasawwuf. E isso me fez pensar, o quanto os antigos sabem do que não sabemos. Essas são respostas que não podemos encontrar no oráculo Google. Respostas de um velho de oitenta e poucos anos sentando em um banco de parque.

    O velho me vendo atônito, colocou seus aparatos de café na sua sacola, levantou-se, despediu-se e saiu sem mais nada a dizer.

    E lá no banco do parque de Kfar Saba fiquei com a mão no queixo, vendo os peixes e as nymphaeas. Tão Ignorado em minha ignorante aquariofilia.
  • A vida e um fio de linha muito frágil

    A vida e um fio de linha muito frágil, hoje estamos aqui,com nossos sonhos, metas e objetivos, amanha podemos ser só lembranças
  • A vida no inferno

    O trabalho nunca assustou Natália. Muito ao contrário. Desde os 15 anos ela já acordava antes do sol nascer para poder estudar e ser secretária do seu tio dentista. Podia até ser uma forma de ele ajudar a família do irmão, que não tinha paradeiro conhecido, mas as seguidas investidas com a mão embaixo da saia de Natália, e seu olhar psicótico, diziam outra coisa sobre as intenções do homem por detrás da máscara. Qualquer coisa seria melhor que ter que conviver diariamente com um boçal. Por isso, quando fez 18 anos e acabou a escola, saiu da clínica para trabalhar numa empresa de telemarketing. Sua missão agora era convencer pessoas que não podem pagar um plano de saúde a pagar por um que não funciona. “O Senhor esta ciente de que, segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil tem um dos piores serviço público de saúde do mundo? Pior que o da Argélia, Senegal e Cabo Verde, por exemplo.” Ao lado do seu teclado havia uma folha sulfite plastificada com algumas frases que ela poderia recorrer. Tudo sempre começava com um “bom dia, meu nome é Natália e estou contactando o Senhor, em nome da ExploraMed, para oferecer uma oferta especial válida só por hoje.”
    Assim que ela desligava o telefone vinham as metas absurdas e os prazos corrosivos. “Pessoal, aqui nós trabalhamos com números.” Eram uma ligação a cada três minutos e no mínimo 20 contratos assinados por dia. “Parece muito, mas se vocês seguirem as técnicas que nós ensinamos é possível.” Informações como a superlotação, “segundo o Tribunal de Contas da União 64% dos hospitais estão sempre com lotação superior a sua capacidade”, ou “consultando os dados do Conselho Federal de Medicina o Senhor vai ver que, entre 2005 e 2012, o Sistema Único de Saúde eliminou 41.713 leitos.” Teoricamente, de posse destes dados, qualquer um deveria se desesperar e pagar até o que não podia para dormir com a consciência tranquila de que se acordasse no meio da noite, tendo um ataque cardíaco, não morreria num chão qualquer esperando a boa vontade de um bom samaritano que se importasse. Mas não era o suficiente. As pessoas precisavam de muito mais que um plano de saúde, assim como Natália, que precisava de muito mais que um salário mínimo para ter alguma perspectiva de não chegar aos 40 anos sem ter atravessado as fronteiras do ritmo casa-trabalho / trabalho-casa.
    Foi pensando num futuro melhor que ela começou a ver as etiquetas coladas nos orelhões do centro da cidade com outros olhos. “Oi garanhão, procurando prazer e diversão?” A voz meio masculifeminilazida do outro lado da linha fez ela reparar na palavra Travesti depois do nome Sheila no adesivo. Por um momento ela se sentiu envergonhada, mas não foi o suficiente para parar. “Oi, eu queria saber quanto você cobra.” “Ai gatinha, é só você que quer brincar ou seu namorado também quer participar da festa?” “Que?” “Hum, é só você que quer saborear novas aventuras, não é? São R$250 para fazer essa carinha doce suspirar amor por uma hora, e eu atendo no meu apartamento aqui no centro.” Natália respirou fundo com o valor e desligou o telefone. Em uma hora ela podia ganhar mais que em uma semana sentada numa cadeira incomodando alguém pelo sistema de discagem randômico. Olhando por esse ponto de vista parecia até mais decente. Trabalhando umas duas vezes por dia ela podia até pensar em fazer uma faculdade e ajudar a sua mãe, que sofria limpando banheiro de crianças irritantes filhas de adultos imbecis. Quanto mais pensava mais tinha certeza de que valia a pena correr os riscos, que na verdade não eram consideravelmente maiores que ser menina num ônibus lotado, chegar em casa depois de ter escurecido ou trabalhar como secretária do seu tio.
    Enquanto tirava fotos dos anúncios colados pelos orelhões e postes da cidade pensava nos detalhes. Primeiro: ia ter que ter um número de celular secreto, só para aquilo. Ninguém poderia ficar sabendo. Atenderia seus clientes em algum dos hotéis que alugam quartos por hora no centro, e como o cliente que ia pagar ele poderia até escolher qual. Depois, cobraria o dobro para dar a bunda e exigiria que o cliente sempre usasse camisinha. Acreditava que assim estaria evitando os maiores problemas que a profissão oferecia. Agora era a hora de elaborar o anúncio. Com um caderno na mão sentou na cama e começou a ver as fotos que tinha tirado no celular. “Paula Ninfeta. Insaciável. Depiladinha. Anal total. 93327-9869.” Parecia muito vulgar. “Brenda Casada. Para fetiches e fantasias. Homens, mulheres e casais. 93267-9765.” Esse não era chamativo. Depois de olhar dezenas de imagens, e escrever outra dezena de rascunhos, Natália chegou ao anúncio perfeito: “Paola (sempre achou esse nome chic) Amor (ora, do que aquilo se tratava?). Carinho e sexo para homens (não saberia o que fazer com mulheres e se sentiria estranha em 3). 24h (era importante estar sempre a disposição). NOVO NÚMERO DE CELULAR.”
    Cheia de confiança e expectativa Natália acordou mais cedo que o habitual. Vestiu sua melhor roupa e se maquiou como quem vai para uma festa de gala. Na entrada da estação de trem comprou um chip novo para o celular e começou a olhar para todos os homens como potenciais clientes. Pensou que eles estariam bem vestidos, afinal, quem pode pagar R$250 por hora tem que ganhar muito bem, e quem trabalha bem vestido geralmente ganha muito bem. Passou na Tele CO. e se demitiu resumindo os motivos em “arrumei um emprego melhor”. Eles insistiram em saber aonde a ponto de Natália se sentir acuada, mas ela se manteve firme. Assinou o que tinha que assinar e dali foi para uma lan house. As risadinhas que o moço dava enquanto ela ditava o que queria escrever na etiqueta a deixaram um pouco envergonhada. Com os adesivos em mãos começou a divulgar seu novo emprego. Deu preferência para os orelhões perto de prédios de vidro ou postes perto de lojas caras. Quando acabou com tudo Natália se sentou num banco na praça e, meio nervosa e meio ansiosa, ficou esperando o telefone tocar.

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