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literatura marginal

  • Céus de Sangue

    Retrato e conclusões absurdas num caminho que ergui com maestria a vida dos mortos fúnebres agora eles não me impedem de ver o Escuro estóico eu me vou a sonhar pelos encantos do sangue oh vida de Nosferatu!... E agora? Somente peço à morte que não me falte ela me falará de caixões e rosas tudo um holocausto breve vamos Rumanesk! Agora a vida te cala nos céus dos Soturnos angélicos fálicos.
  • Cheiro de jaula

    Ainda era um pensionato aquela casa da rua Humaitá, onde Zími sempre  parava na frente quando passava por ela, e ficava olhando durante a duração de um cigarro .
    Ele havia morado lá por alguns anos, atravessando o período da pandemia ali.
    Aquele lugar não havia  sido a sua última moradia antes de dividir um apartamento com sua parceira musical Mila Cox.
    Ele alugou o quarto menor no apartamento de seu irmão mais novo, e ficou ali por seis meses. Era o prazo que tinha para tomar outro rumo.
     E então Mila Cox, que queria sair da casa em que morava com a mãe e a avó, no bairro da Penha, aceitou dividir um apartamento com Zími, num lugar mais perto do centro.
    Encontraram o lugar com melhor custo-benefício no bairro da Liberdade.
    Num domingo, Mila Cox estava de bicicleta, voltando da feira cultural do Bixiga, e parou na frente da pensão que Zími havia morado. 
    Viu um casal que morava ali sair para a rua. O portão ficava destrancado, Não havia placa indicando que ali havia aluguel de quartos.
    Então ela entrou na casa e a conheceu parcialmente a parte de baixo por dentro. Havia ainda uma escada e um andar superior.
    Pela escada, logo apareceu um sujeito que era gerente, e ele mostrou a Cox um quarto que estava disponível. Depois mostrou-lhe o resto da casa.
    Os moradores ficaram curiosos com a presença de qualquer pessoa nova na casa dela. Abriram suas portas e a viram passar com o gerente.
    O cheiro que pairava nos corredores era uma mistura de xampú, maconha e incenso.
    Nos quartos em que moravam mulheres, havia mais ordem e limpeza, mas na maioria dos quartos, onde apenas moravam homens, havia quartos em ordem e outros degradados.
    Mas havia um quarto que tinha cheiro de jaula. Dois sujeitos dividiam o cômodo.
    Havia um deles que Mila Cox já tinha visto antes, e não estava lembrando de onde. O cara também a olhou como se já a tivesse visto.
    Antes de sair, Mila Cox perguntou ao gerente se ele conheceu Zími.  
    O cara disse que sim, mas que nunca mais teve notícias desde que ele foi embora dali.
    Falou também que Zími dividia o espaço com um dos sujeitos que ainda morava no quarto com cheiro de jaula, o que esclarecia parcialmente a questão sobre como ela conhecera aquele cara.
    O gerente falava e a olhava embasbacado, quase intrigado com aquela figura tão cool. 
    Quase baixinha, jovem, cabelo chanel vermelho, com franja,  tatuada, e usando uma camiseta com estampa do álbum 'No more heroes', dos Stranglers.
     Tinha um olhar seco, sério e fulminante.
    O sujeito pensava sobre como ela conhecera Zími, se havia entre eles algum parentesco ou se havia outros motivos.
    A verdade é que antes de Mila Cox nascer, Zími foi colega de faculdade de Sara Cox, tia de Mila, e os dois ajudaram muito a moldar o gosto musical da garota.
    Zími e Sara se formaram em Jornalismo nos anos noventa. Depois, ela se mudou para a Inglaterra e ele seguiu uma jornada errante, da qual ele nunca se arrependeu.
    E agora Mila Cox  pensava novamente sobre a podridão do universo masculino, ao mesmo tempo em que tentava imaginar o que aconteceria com o apartamento que dividia com Zími, caso ela tivesse que se ausentar por alguns dias.
    Cox saiu da pensão sem memorizar a fisionomia do cara que a atendeu, mas não esqueceu do cheiro de jaula até chegar em casa.
    Ela pegou a bicicleta e desceu da Bela Vista até a Liberdade. O caminho era de descida e ela chegou rápido.
    Subiu ao apartamento e ali estava Zími.
    Com ele estava Silvano, o vizinho uruguaio que morava na porta ao lado, que é multiinstrumentista e morava sozinho em seu apartamento.
    Silvano já morava naquele prédio muito antes de Mila Cox e Zími. Seu apartamento, embora não tivesse cheiro de jaula, não primava pela ordem.
    À essa altura, Mila Cox já entendia e partilhava dessa que era a razão em comum para quem resolve morar sozinho.
     E era muito simples. Poder fazer em casa o que não se fazia quando ainda se morava com a mãe. E provavelmente o que não faria depois, se a pessoa fosse casada.
    Zími e Silvano fumavam, bebiam a comiam no sofá.
    Ainda não estavam tão horrendamente bêbados. Nunca ficavam muito loucos antes que ela chegasse em casa. 
    Ficcavam mais bêbados só depois que ela soubesse antecipadamente que isso aconteceria inevitavelmente, quando era dia de folga das atividades que exerciam para pagar as contas, ou atividades musicais.
    E preferiam beber em casa, pois é mais barato que beber na rua.
    O assunto era música e Zími dizia:
    "Pelo menos três discos dos Beach Boys são ainda melhores que o Pet Sounds, e estão naquele período posterior a ele. Nesse bloco, entram o 'Friends', 'Wild Honey' e o espetacular 'Surf's Up', que tem na faixa título a prova daquilo que estou querendo dizer. O Holland também é muito bom. Depois veio aquela coletânea que só abrangia a primeira fase, sobre surf e carros, o que estigmatizou ainda mais a banda, depois da tentativa de fazer uma música muito mais abrangente nas temáticas. Foi uma tentativa muito bem sucedida, mas não comercialmente falando O que importa é que aqueles discos ficaram pra provar a relevância que deveriam ter também na época. Mas  no fim dos anos sessenta e início dos anos setenta foram lançados tantos discos maravilhosos e as pessoas ainda associavam os Beach Boys à velha fórmula com que tiveram sucesso dez anos antes, falando de surf e carros."
    Silvano queria fazer uma cover de Beach Boys.
    Zími falou: "Se é pra fazer cover, que seja como os Byrds fizeram com as músicas do Bob Dylan, dando uma roupagem diferente, recriando as músicas."
    Quando ele falou essa frase, Mila Cox percebeu em sua voz, agora já um pouco pastosa, os primeiros sinais de embriaguez.
    Então ela falou: "Entrei na pensão que você morava, na Bela Vista."
    Zími respondeu: "Nem posso imaginar o atual estado daquele lugar. Mas a época em que morei lá será mencionada no livro que estou escrevendo."
    "E o cara com quem você dividia o quarto?" - Mila Cox perguntou.
    "É o Elton, é baterista, tocou em várias bandas."- Zími respondeu.
    Mila Cox: "Ele estava lá, e eu não lembrava de onde o conhecia. Na verdade não lembro ainda"
    Zími: "Foi num show em Catanduva, a banda dele tocou no mesmo evento. Na época ele era baterista de uma banda chamada 'Quase'. O tempo em que morei lá com ele foi o pior momento da minha vida. Eu estava sem grana e dividi quarto pra baratear o aluguel. Dividir um quarto com quem quer que seja é inconcebível pra mim. Não sei quanto aos outros, e espero que façam o que quiserem com suas vidas, mas ter um quarto individual é essencial."
    A pergunta seguinte de Mila Cox seria sobre o cheiro de jaula, mas ela preferiu deixar quieto naquele momento, já que Zími, de uma certa forma, já havia respondido.
    Antes de ter lembrado do cheiro de jaula e esperado pela oportunidade de falar sobre isso, Mila Cox pensou sobre sua antisociabilidade, já que tinha apenas vinte e um anos e também preferia beber em casa, independente da economia feita com a compra de bebidas no mercado.
    Eventualmente bebiam na padaria que havia no quarteirão onde moravam, quando o aluguel já estava pago e havia como gastar ali para beber.
    Mesmo sendo jovem, viu o declínio das competências linguísticas e intelectuais das pessoas, produto da falta de leitura e de referências culturais de qualidade.
    A qualidade humana, de uma maneira geral, parecia estar em declínio, principalmente pelo fato de tanta gente ter perdido a capacidade de pensar com a própria cabeça, ou mesmo nem ter desenvolvido essa capacidade ao longo da vida, o que resulta em vidas infelizes e a espera de uma recompensa póstuma.
    Essa é uma deixa para pastores e coachs picaretas lucrarem milhões. E a quantidade de charlatões não para de crescer.
    Então Mila Cox via aqueles dois sujeitos que só sociabilizavam realmente quando faziam shows. Quem realmente importava estava lá e havia diálogo. 
    Nessas ocasiões havia amigos que eles não podiam encontrar sempre e mulheres que gostavam de rock. 
    Por isso ela os compreendia. A diferença é que os dois já beiravam os cinquenta anos e ela tinha vinte e um.
    Ela já havia lido nos livros o que os filósofos dizem sobre não se misturar ao rebanho e sobre como é alarmante se ver ao lado da maioria, no que quer que seja.
    Zími era o baterista e eventual vocalista da banda Crop Circles, um duo formado por ele e Mila Cox, que além de tocar contrabaixo e sintetizadores, se revezava com Zími nos vocais. O mote da banda eram as angústias da existência e o som lembra o da banda Suicide.
    Quando se uniram para tocar, Zími já conhecia essa banda, mas Mila Cox, ainda não.
    Silvano era uma monobanda. Autodidata, Nos shows, ele tocava guitarra e fazia a parte de bateria minimalista de suas músicas no pedal.
    Eles e Zími diziam que Mila Cox era um prodígio em coisas que eles tanto prezavam, entre elas, buscar sempre frustrar as expectativas capacitacistas, higienistas, competivistas e produtivistas da asquerosa sociedade neoliberal em que vivem.
    Os três sabiam que qualquer solução ou revolução só pode realmente acontecer se for primeiramente pelo indivíduo, e talvez depois pela sociedade. Nunca pelo Estado.
    Eles sabiam também que o medo da opinião dos outros é a maior escravidão do mundo.
    Para ter paciência com a maioria das pessoas, lembravam que nem todo mundo é artista.
  • CONSCIÊNCIA NEGRA

    Negra não!
    Consciência!
    Consciência humana.
    Consciência sem cor.
    Tem cor! É cinza!
    Cinza da massa,
    Massa cinzenta.

    Afro brasileiro?
    Afro não!
    Brasileiro!
    Nasceu aqui,
    Longe de lá.
    Perto na cor,
    Preto da cor.

    Gente racista?
    Gente não!
    Racista!
    Homofóbico, machista,
    Ariano, ateísta.
    Gente ruim,
    Parasita!

    Quem tem cor?
    Bunda tem cor?
    Peito tem cor?
    Aquilo tem cor?
    Dinheiro não tem!
    Demagogos!
    Hipócritas!

    O manso não tem cor,
    Está na bíblia:
    “Bem aventurado
    O homem bom”.
    Qualquer cor,
    Qualquer credo,
    Qualquer família.

  • Crime na Riachuelo

    A moça não tinha muita experiência, procurava um emprego de secretária. Bem ali, na Riachuelo, foi abordada por um bêbado vacilante, que não conseguia se comunicar sem enrolar a fala.  Ela não sabia se vestir muito bem, blusa vermelha decotada, a saia acima dos joelhos e o scarpin velho prateado pareciam adequar-se ao deprimente cenário local. Soubesse antes não tinha se vestido assim para ir justamente à Riachuelo.   Desviou-se do homem, teve quase que empurrá-lo. Estava indo para uma entrevista de emprego, o número do prédio era 78, primeiro andar, sala 13. Achou a rua um pouco esquisita, mas não se importou muito.
     Na sala de espera não tinha ninguém, nem secretária, um bom sinal, afinal, essa era a vaga anunciada.  Os móveis já estavam desgastados e dava para ouvir alguém ao telefone na outra sala. Decidiu esperar um pouco para ver se a conversa parava, não evitou ouvir, o homem falava sobre horários perdidos, dinheiro à toa, falta de senso de responsabilidade. Parecia ser uma pessoa muito dura com as palavras, talvez ela tivesse que se acostumar com aquilo. “HM Representações Artísticas”, esse era o nome da empresa.
    “Maria da Glória é você?”. O homem a surpreendeu, sentada, dormindo no sofá da recepção, uma hora depois de ter chegado. Pediu desculpas pela demora em atendê-la e mandou que entrasse em sua sala. A entrevista foi rápida, o salário acertado e na manhã seguinte, já estava trabalhando.  Sua função era apenas atender às artistas que ligavam marcando horário com o Sr. Augusto, e manter a sala da recepção em ordem. Na sala do Sr. Augusto era claramente proibida de entrar, mas também não fazia questão. Toda vez que alguma mulher estava lá, as palavras do chefe não eram muito amigáveis. Essas artistas não eram gente conhecida, celebridade, mas agiam como se fossem.  Algumas vezes chegou a ouvir alguns móveis se arrastando, copos quebrando, mas no final das discussões parece que elas sempre saíam satisfeitas, ou, conformadas.
    A rotina não durou muito, apenas quinze dias depois, numa manhã de terça-feira, Augusto chegou muito agitado ao escritório. Não a cumprimentou, a atmosfera ficou sombria. O telefone tocou, ele não autorizou a transferir a ligação nem a fazer agendamentos no dia. As artistas estavam ficando irritadas, queriam ser atendidas.  Não eram famosas, mas agiam como se fossem, intransigentes, impacientes.
    Faltavam alguns minutos para o meio-dia, quando dois homens entraram na sala. Não a cumprimentaram, a atmosfera ficou mais pesada, foram direto para a sala do Sr. Augusto, não deu para ouvir nada, parece que ninguém realmente falou nada. Os dois saem rapidamente, batem a porta. Deviam ser fiscais ou algo assim.  O telefone tocou novamente, as entrevistas continuaram suspensas até segunda ordem.   

    A polícia chegou somente no outro dia de manhã.  Sr. Augusto não gostava de ser incomodado, por isso Maria da Glória sequer falou com ele durante todo o dia anterior. A verdade é que ele não havia se manifestado mais depois que os dois homens foram embora. A verdade também, é que a única pessoa no local da morte era ela, Maria da Glória, 20 anos, sem muita experiência. Na sua gaveta, uma Nove Milímetros, de uso exclusivo das Forças Armadas. Jamais usaria uma arma daquela, a polícia sabia, a imprensa também sabia. As artistas da Riachuelo perderam mais um agente, e isso era o que importava. Não dá para ficar sem artista na região, não gira o comércio. A HM Representações fechou e o ponto está sem dono. Vai ficar para alguém da polícia, ou da imprensa, quem sabe. Não se sabe se Maria foi presa, não se falou mais no assunto.

    Aqui, na sala comercial ao lado da antiga HM, só se ouve agora um telefone tocar: o meu. Muitas artistas agendando horário, intransigentes, impacientes. Não dá para ficar sem artista na região, não gira o comércio.
  • Crônicas do Parque: A verdade está onde nunca a procuramos

    Era uma daquelas manhãs escaldantes com temperaturas que variavam de trinta e cinco a trinta e oito graus célsius, com sensação de quarenta a quarenta cinco no centro-norte de Israel. Como de costume me encontrava todos os Yom Sheni (segunda-feira) no parque de Kfar Saba, fazendo manutenção nas piscinas ecológicas.

    Pegava meu bastão de rede, uma caixa plástica preta dessas de armazenar verduras em supermercados, e um balde vazio de comida de peixes ornamentais. Entrava na piscina e submergia até os joelhos no primeiro terraço em que ficava as Nymphoides, espécies do gênero das plantas aquáticas que crescem enraizados no fundo, com as folhas a flutuar à superfície da água, de cores brancas, amarelas e variadas tonalidades de flores rosa, da família Nymphaeaceae.

    Prendia meu smartphone pela sua capa ao cordão que ficava no meu pescoço, em que segurava ao peito um Magen David (Estrela de Davi) com um rosto de leão no centro, e colocava uma música suave para iniciar o meu trabalho de cuidar dos nenúfares.

    Em especial, aquela era a piscina ecológica que eu mais gostava dentre todas outras que dava manutenção no centro-norte. Pois, além de ser a maior dessa região, estava em um parque bonito e tranquilo arrodeado de belas esculturas. Essa piscina era especial, pois era a única de todas que tinha uma original carpa cinza gigante, espécie de peixe de água doce originário da China, e também havia um canteiro com Lótus Branco (Nelumbo Nucifera), um género de plantas aquáticas pertencente à família Nelumbonaceae da ordem Proteales, e também era lotada de peixes Koi (Nishikigoi), tendo o Higoi (carpa vermelha), o Asagui (carpa azul e vermelha) e o Bekko (branca e preta), que são carpas ornamentais coloridas ou estampadas que surgiram por mutação genética espontânea das carpas comuns (carpas cinza) na região de Niigata no Japão, tendo também outras inúmeras variedades de peixes-ornamentais como: peixes-dourados, peixes barrigudinho (Guppy) de diversas cores, aruanãs, entre muitos outros.

    Nesse dia em especial, me senti constantemente sendo observado por um senhor de chapéu azul e cabelos grisalhos que aparentava ter a idade de oitenta anos. Estava bem-vestido e mantinha sempre um sorriso no rosto. Ele se encontrava sentado em um banco largo que ficava próximo à piscina. E lentamente eu me aproximava dele ao curso do meu ofício de retirar as folhas amareladas dos nenúfares. E ao me aproximar daquela figura atraente, eu o cumprimentei com um Boker Tov (Bom Dia), e ele me respondeu com um Boker Or (Manhã de Luz). Assim trocamos sorrisos, e me voltei novamente para o meu ofício matinal.

    Quando o balde em que colocava as folhas amareladas e flores mortas dos nenúfares se encontrou cheio, me retirei da piscina para esvaziá-lo, o despejando na caixa plástica preta que estava perto do banco em que o senhor de chapéu azul se encontrava sentado. E, ao me retirar para regressar a piscina, ele elevou a sua doce voz anciã, perguntando-me:

    — Atah Rotze coz cafeh (Você aceita um copo de café)?

    Então, de imediato lhe respondi:

    — Ken, efshar (sim, aceito).

    Então, ele retirou de uma sacola de pano um bojão de gás pequeno e enroscou uma pequena boca de fogo nele, acoplando. Colocou o aparato ao solo, e retirou da sacola uma garrafa pet de coca-cola com água, uma pequena chaleira e dois copos de aço inoxidável. E, enquanto ele despejava a água no recipiente e acendia o fogo com um isqueiro para ferventar, fez um sinal com as mãos para eu me sentar ao seu lado.

    Enquanto a água estava para ferver, nos apresentamos e ele me fazia inúmeras perguntas sobre mim e meu ofício. Perguntas comuns que eu já estava calejado em responder. E, depois que ele preparou o café, comecei também a interrogá-lo. Para minha surpresa, descobri que ele não era judeu, mas árabe. Sendo que falava um bom hebraico sem sotaque e se vestia elegantemente, como um velho Ashkenazi. Além dele ter olhos de uma cor azul-claros como o céu que estava sobre nossas cabeças. (…Nós, e nossos pré-julgamentos…).

    Ele me falou que viveu muitos anos em Espanha, sendo um mestre sacerdote de Sufi gari (Tasawwuf), uma arte mística e contemplativa do Islão, assim como é a Kabbalah para os judeus. Ele viu o Magen David em meu peito, e disse que era bonito esse símbolo com um rosto do leão no centro. Também, me falou que esse símbolo em que os judeus se apropriaram o colocando em sua bandeira, é de muita importância para o Tasawwuf (Sufismo). E me revelou segredos importantes sobre o significado desse símbolo.

    Conversamos sobre muitas coisas, e eu o interrogava mais e mais, pois vi que esse senhor era muito sábio e ciente de tudo que falava. Ele me revelou coisas sobre a conduta do corpo, como postura e fala. Falou-me sobre pensamentos, músicas e danças místicas, e, sobre alimentação e jejuns para se ter uma vida espiritual equilibrada com o corpo físico. Nesse assunto, perguntei a ele porque não se deve comer carne de porco. Até porque eu já tinha perguntado a muitos rabinos e religiosos judeus o porquê de não comer a carne desse animal, e muitos não sabiam me responder ao certo. E, os que respondiam, falavam que estava escrito nos Livros da Lei, a Torah, mas não sabiam perfeitamente o porquê.

    Diante da minha pergunta, ele sorriu e me disse algo em que fiquei atônito. Contava ele que os porcos eram seres humanos amaldiçoados, por levar uma vida sexual pervertida na sua última encarnação. Ele me disse que por isso dentre todos os animais o porco era o mais inteligente, e, que seus órgãos internos como fígado, rins e coração são muito parecidos com os nossos, pois na verdade era um ser humano que encarnou nessa condição com a total consciência de sua vida-passada, mas que devido fato de estar em um corpo animal atrofiado não podia se comunicar para se revelar como tal. Nasceu nessa condição devido à decadência espiritual de sua vida anterior como ser humano, ao se entregar aos prazeres sexuais nojentos e tenebrosos, por isso esse animal pode levar até trinta minutos tendo orgasmos. E, assim, veio nessa condição para viver em sua podridão, ao comer seu alimento e dormir misturado as suas fezes, mesmo tendo a inteligência de defecar em um mesmo lugar, são condicionados pelos seus criadores (seres-humanos) a viver junto ao seu excremento. Também, ele me falou que o porco não tem a capacidade de olhar para cima, não podendo ver o céu, e sua pele não pode ser exposta à luz solar por muito tempo, pois não consegue transpirar, e pela falta de umidade decorrente do suor pode sofrer fortes queimaduras. Nasceu para olhar para baixo e se esconder da luz, sendo forçado por essa natureza a viver na lama. Ele também me disse, que o porco é o animal mais amaldiçoado do que a serpente, pois os porcos são invulneráveis às suas picadas venenosas. E concluiu:

    — É por isso que não se deve consumir a carne desse animal, por na verdade ser um ser-humano totalmente consciente em forma atrofiada. — e, acrescentou me revelando algo — Você sabia que não há diferença de gosto entre carne humana da carne suína… ambas possuem a mesma textura e sabor.

    Uau! Diante desses fatos que me foram apresentados por esse velho sacerdote Sufi, fiquei estupefato. E, entendi o porquê de George Orwell escolher os porcos para serem os protagonistas da revolução em seu romance satírico (Animal Farm — A Revolução dos Bichos). Provavelmente, ele sabia desse conhecimento do Tasawwuf. E isso me fez pensar, o quanto os antigos sabem do quê não sabemos. Essas são respostas que não podemos encontrar no oráculo Google. Respostas de um velho de oitenta e poucos anos sentando em um banco de parque (se bem que agora poder ser encontrada no Google).

    O velho me vendo atônito, colocou seus aparatos de café na sua sacola, levantou-se, despediu-se e saiu sem mais nada a dizer.

    E lá no banco do parque de Kfar Saba fiquei com a mão no queixo, vendo os peixes e as nymphaeas. Tão Ignorado em minha ignorante aquariofilia.

  • Crônicas do Parque: Rápido Demais

    Já fazia cinco solitários anos em que se encontrava separado e divorciado. Se mantinha firme em sua promessa de não mais se envolver e se entregar a um relacionamento amoroso. Afinal, sofrera bastante quando se separou da sua amada e louca esposa norte-americana (USA), que de repente enlouquecera quando ele achava estar tudo indo bem.

    Lembrara-se quando, por causa da separação, se ergueu de uma depressão que quase o matou de fome, em que ao final do quinto dia sem comer desmaiara caindo da cadeira em que estava sentado solitário trancado no escuro do seu apartamento. Em um instante se viu envolto em uma luz alvamente branca, flutuando em um corredor que o erguera para cima. Aquilo o atraia majestosamente como dando um basta a sua vida terrena de sofrimentos. Porém, de repente, ao súbito, olhara para baixo vendo o seu corpo caído ao chão desgraçadamente. E disse para si mesmo:

    — Não! Não é minha hora, tenho que voltar. Por favor me ajuda!

    E, novamente, lá estava ele, desgraçadamente em seu corpo caído ao chão. Juntou forças e foi se arrastando até a cozinha. Ao chegar, viu um pedaço de baguete duro sobre a mesa, e se esforçando em seu íntimo, apoiando penosamente os seus braços na cadeira, ergueu-se com considerável esforço para pegá-lo. Já com o pão-duro na mão, rastejou até o filtro de água potável em que enchera um copo. E ali caído ao solo com as costas recostadas nas gavetas do armário da pia, comeu vagarosamente o tosco pedaço de pão-duro, junto a goladas de água.

    Quando sentiu que já tinha forças para se levantar, ergueu-se pausadamente segurando com suas mãos as gavetas da pia, como se estivesse escalando o monte Everest. E, apoiou-se sobre seus pês. Foi até o banheiro, e tomou uma longa ducha quente. Ao final, viu que carecera de um choque térmico, e virou a torneira fazendo com que água esfriasse, tomando uma outra ducha fria. E bocejava, estremecia e ofegava.

    Vestiu-se, entrou em seu carro e pegou seu smartphone o ligando depois de uma semana, e vira múltiplas notificações de mensagens e ligações em sua tela. Ignorou-as, indo diretamente ao aplicativo GPS de serviços para procurar um bom restaurante italiano mais próximo, pois muito desejara comer uma pasta com frutos do mar. Depois dessa recaída em que quase lhe valera a vida, prometeu para si mesmo viver como um monge eunuco, distante das perigosas mulheres.

    Assim, estava ele vivendo feliz sem dar satisfação a ninguém para onde ia e o que fazia. Procurava ocupar ao máximo o seu tempo fazendo classes de yoga, pilates, teatro e aprendendo a tocar flauta e piano. Evitava ler, ver e ouvir romances, séries e filmes, músicas e histórias de relações amorosas, em que baixara um moderno e super aplicativo de tarefas, para seu smartphone. Onde ao final de cada dia, dedicava meia hora da sua atarefada vida para fazer a programação do próximo dia, não dando oportunidades para surpresas, fechando assim, as portas para novos imprevistos que o poderia levar a um novo relacionamento, ao conhecer uma interessante pessoa em um lugar desconhecido, fora da sua agenda digital de compromissos fictícios.

    Portanto, acordava, se levantava e ia correr por uma hora todas as manhãs antes de ir para o seu entediante trabalho de programador, em uma dessas grandes corporações Hi-Tech Israelense.

    Em uma dessas manhãs em que corria no parque de Kfar Saba, viu a sua frente uma jovem que tropeçara na pista de exercícios, e machucara um dos joelhos, por um instante decidiu ignorar aquele acidente, ultrapassando-a. Porém, por um ataque de consciência deu meia volta, indo ao encontro da jovem que se encontrava sentada no chão chorando.

    Ao chegar até ela, agachou-se e disse ainda ofegando pelo esforço do seu exercício:

    — Você está bem?

    — Claro que não! Você não vê?

    — Desculpe! Só estou tentando ajudar. Venha, vou te levantar.

    — Ai! Ai! Ai! — resmungou a moça não podendo se apoiar em uma das pernas.

    Então, ele a carregou em seus braços a levando para grama, pondo-a debaixo de uma Tamareira que fazia uma refrescante sombra. E a perguntou:

    — Você mora por aqui por perto?

    — Moro em Rosh Haayin.

    — Não está tão longe. — falou ele enquanto estava lavando o ferimento do joelho da jovem moça, com a água de sua garrafa.

    — Você está de carro? — perguntou a jovem. — Será que pode me levar até minha casa. — acrescentou.

    Ele hesitou ao responder de imediato, e olhou para o seu smartwatch que se encontrava no pulso direito, sabendo que se a ajudasse, chegaria tarde no trabalho. E, olhando para aquela jovem e linda moça de olhos verdes molhados de lágrimas, não resistindo ao seu apelo, disse:

    — Sim, eu te levo para casa. Mas, vamos rápido, é que estou meio atrasado para o trabalho.

    Ela sorriu, e de súbito o beijou no rosto como forma de reverência. E aquele beijo repentino acendeu um chama nele que há muito tempo se encontrava apagada. E temeu, ignorando aquele beijo ao levantar a moça nas suas costas, apoiando-a como se fosse uma mochila. Ao passo em que ele caminhava com a pesada moça sobre as costas, ela ia tagarelando:

    — Nem ao menos nos apresentamos, e aqui estamos como namorados em que você me leva de macaquinho. Como é o destino, ultimamente só estou conhecendo novas pessoas através das redes sociais no meu celular, e agora te conheço assim, em um acidente, e já temos um contato físico como pessoas que se conhecem a muito tempo. Acho que só os acidentes são capazes disso. Agora me vejo em meio a uma fantasia, nessas cenas de filmes românticos dos anos 80 e 90 que as pessoas postam na internet. O que acha? Eu ainda não sei o seu nome. Como você se chama?

    — Em primeiro lugar não somos amigos, nem muito menos namorados. Em segundo você está muito pesada, e não estou conseguindo me concentrar com essa sua tagarelice. Me chamo Nimirod.

    — Desculpa Nimi, eu só estava querendo te distrair por causa do meu peso e seu esforço. Me chamo Einat. Prometo que não falo mais. Naim meod (Prazer em conhecê-lo)!

    Juntos chegaram ao estacionamento, e ele a colocou no banco da frente do seu carro. Ela ainda se encontrava calada pela dura que recebera dele, e, ele se encontrava sério, meio puto em chegar atrasado para o trabalho.

    Então, ela resolveu quebrar o gelo que existia entre os dois, perguntando-o:

    — Você corre no parque de Kfar Saba todos os dias?

    — Ken (Sim). — respondeu ele secamente.

    — Você mora em Kfar Saba?

    — Lo (Não). — deu outra resposta seca.

    — Onde mora?

    — Próximo. — disse isso não querendo respondê-la.

    — Sim. Não. Próximo. Você fala hebraico? — disse ela o provocando.

    — Você é da polícia? Não pode se calar um pouco, apenas por um momento. Não gosto de ser interrogado, e por sua causa estou me atrasando para o trabalho hoje.

    Ao ver essa resposta arrogante, mais uma vez os olhos da jovem se encheram de lágrimas, e ela pediu para descer ali mesmo em qualquer lugar, já que estava incomodando.

    Diante disso, vendo as lágrimas descendo pelas lindas pálpebras que ao chorar se encontra avermelhadas no belo rosto inocente da jovem ao seu lado, arrependido ele disse:

    — Desculpe-me Einat. Apenas fiquei irritado por me atrasar para ir ao trabalho hoje, tenho muitas tarefas e meu chefe está já há uma semana no meu pé para que eu termine. Vou te levar para casa e tentar responder suas perguntas, ok.

    A jovem enxugou suas lágrimas, deu um grande sorriso, e perguntou:

    — Quantos anos você tem?

    — Trinta e sete. E você?

    — Vinte e três.

    — Você é nova. Fez o exército?

    — Sim. Terminei faz um ano.

    — E não viajou?

    — Acabei de chegar da Índia, estive lá por dez meses.

    — E como foi?

    — Louco. Já foi a Índia?

    — Sim.

    — E como foi?

    — Louco.

    — Então, não preciso lhe dizer nada — disse ela sorrindo.

    Ele sorriu em resposta, e a perguntou já chegando em Rosh Haayin:

    — Em que direção fica sua casa aqui.

    — Eu não sei direito lhe instruir, pois sou nova aqui, mas posso ver no celular. — disse ela pegando o seu smartphone, e abrindo o aplicativo GPS digitando o nome da rua.

    — Você é daqui? Quero dizer, dessa região? — perguntou ele, enquanto ela ainda digitava.

    — Não. Sou de Tel Aviv. Vim morar aqui por causa do emprego de ajudante de enfermeira veterinária, pois quero estudar veterinária no futuro. Amo animais, principalmente gatos.

    — Eu odeio gatos. São egoístas e interesseiros.

    — Assim como nós. — disse ela.

    — Prefiro os cachorros. São amáveis e amigos. — disse ele ignorando o que ela disse.

    — Já eu, não sou muito afeiçoada a eles. São dependentes de mais e bagunceiros.

    — Assim como nós, principalmente quando crianças. — disse ele.

    Ambos se olharam e sorriram como se concordassem um com o outro, e a voz robótica do aplicativo falou dizendo que se encontravam no local de chegada.

    — É aqui, nesse prédio. — disse ela apontando, e continuou — Quer entrar para tomar um café? Afinal, você já está atrasado mesmo.

    — Não, obrigado! Não quero me atrasar mais ainda.

    — Só que tem um probleminha! — disse a jovem o pegando pelo braço — Esqueceu que não posso andar, e no meu prédio não tem elevador, e vivo no terraço no quarto andar. — disse ela sorrindo.

    — Ok! Te levo até lá, mas não tenho tempo para o café.

    Ela sorriu. Ele saiu do carro, foi até a porta do assento lateral, a carregou em seus braços, e ela disse:

    — Agora parece que acabamos de nos casar, e você me leva para lua de mel.

    Ele a encarou com seriedade não gostando nada do que ela disse, e a colocou em suas costas indo em direção ao prédio a sua frente. Chegando à porta, ele se virou de lado para que ela pudesse digitar o código chave de cinco dígitos para abrir, fazendo um barulho entediante afirmando que já estava destrancada. Ele empurrou a porta de vidro com o pé, e enquanto adentrava ela ajudou com uma das mãos, sendo que o seu outro braço estava envolvendo o busto e pescoço dele.

    E seguiram subindo a escada. A cada andar ele parava um pouco para pegar um fôlego e descansar. E ela resolveu dessa vez ficar em silêncio, pois ele não estava nada gostando daquela situação. Então, chegaram a porta do apartamento dela. E ela disse:

    — Não vai nem ao menos entrar para um copo d’água e descansar um pouco.

    E, ofegante ele disse:

    — Não. Melhor não. Estou muito atrasado, tenho que ir.

    — Vai me deixar aqui na porta para que eu me arraste até a cama? — perguntou ela com uma dengosa voz.

    — Acho melhor você já aprender a se virar sozinha com essa situação. Depois você vai me pedir para te levar para o banheiro, e te dar banho e depois fazer comida.

    — Eu bem que poderia comer você. _ disse ela, e vendo a cara dele de extremo espanto, rapidamente exclamou — Brincadeirinha! — disse isso, querendo desfazer o que disse.

    — É por isso que não quero entrar. É disso que eu tenho medo. Vocês jovens são rápidos demais. Bye! — disse ele descendo as escadas.

    — Hei, espera aí! Você não me disse onde mora. — disse ela gritando.

    — Moro em Kfar Saba. — respondeu ele já de baixo.

    — Me dá o número do seu telefone. — ela gritou de cima.

    — Rápido demais, já disse! E se eu for casado…

    — Você é casado? — Ela gritou o mais alto que pode.

    — Não! Mas, enquanto o meu número de telefone, vai ter que descobrir por si só.

    — Isso já é bom! — gritou ela, e já não houve mais respostas. — “Ele se foi” — pensou ela entrando no seu apartamento.

    Ele entrou no carro e dirigiu rapidamente para o local de trabalho, fazendo consideráveis esforços para esquecer aquele imprevisto e inconveniente acontecido, repetindo um milhão de vezes em sua mente — “Isso nunca existiu” — tentando assim ignorar os fatos, que já fora fisgado pelas garras amorosas do destino.

    Ela estava maravilhada com ele, achava ele bonito e responsável, o tipo certo para uma mulher se casar. Ela era tão jovem, mas já pensava em um bom partido. Estava meia que traumatizada pelo motivo de suas duas irmãs mais velhas não conseguirem ter relacionamentos por serem gordas, não suprindo as exigências dos homens israelenses, numa sociedade que admira e fortalece a indústria da moda e cosméticos. Sendo que sua irmã mais velha de trinta e oito anos, fizera bebês em um laboratório de banco de espermas, tendo assim filhos gêmeos. E sua segunda irmã de trinta e quatro, já estava pensando em fazer a mesma coisa. Ela não era assim tão gordinha, mas geneticamente tinha formas arredondadas, e isso a preocupava. Passava muito tempo na frente do espelho, e se achava gorda e feia.

    Porém, não era bem assim, suas amigas a invejavam pela sua cintura bem definida, seu bumbum farto e arredondado, seus seios medianos e seu rosto de anjo com olhos verdes e cabelos loiros e encaracolados cor de mel. Um belo corpo de violoncelo, unida a um belo rosto e altura de um metro e setenta e cinco invejável. Não era gorda de jeito e maneira, era dessas mulheres mutantes de forma gigantesca.

    O despertador do smartphone tocou as cinco horas da manhã como de costume, ele se levantou em um único pulo de sua cama indo diretamente ao banheiro, lavara o rosto e escovara os dentes apressadamente. Vestiu-se com sua roupa e assessórios de correr, colocou seus fones de ouvidos bluetooth, e pendurou o seu smartphone por uma capa detentora em seu braço esquerdo, começando o seu exercício matinal ao som do piano de Richard Clayderman. Pelo esforço que fizera anterior e interiormente para esquecer do evento inconveniente do dia passado, já não se lembrara com emoção daquela moça linda e alta de olhos verdes e cabelos loiros encaracolados, sua mente se voltara a sua rotina diária de solteirão feliz.

    Mas para o seu desgosto, lá estava a jovem linda moça correndo em sua direção pela contramão com o joelho enfaixado. Ao passo em que se aproximava dela, ele pensava em ignorá-la. Dizendo em seus pensamentos: “Puta-merda! O que ela quer de mim. Droga! Porque logo hoje fui me esquecer de colocar meus óculos escuros”.

    Ao se aproximarem, param ainda correndo e trocaram sorrisos, e ela disse:

    — Olá como está?

    — Bem. Vejo que seu joelho já está bom.

    — Quase. Mas não resistir ter que parar com os meus exercícios matinais.

    — Entendo. Bom! Não quero me atrasar mais um dia para o trabalho. Bye!

    — Bye! Lehitraot (Até mais ver)!

    E, continuaram os seus percursos, entretanto, enquanto se distanciavam ela se virou correndo de costas e disse em alta voz:

    — Ainda quero o número do seu telefone.

    — Ainda vai ter que descobrir. — disse ele não olhando para trás.

    E, isso se repetia dia após dia, semana após semana.

    Até em que um belo dia de Yom Rishon (domingo) ensolarado, em que ele estava a correr como de costume no parque de Kfar Saba, não a viu durante todo o percurso. E, pensou: “Ela não veio correr hoje. O que será que aconteceu. Não importa! Bom para mim”. E, Yom Sheni (segunda-feira) a mesma coisa. E, Yom Shilishi (terça-feira), Yom Revyi (quarta-feira), Yom Hamishi (quinta-feira), Yom Shishi (sexta-feira) a mesma ausência.

    Yom Shabat (sábado), ele despertara já sem o apito do seu despertador. Continuou ainda deitado em sua confortável cama elétrica com colchões de astronauta, e não conseguia pensar em outra coisa, senão, nela. E vislumbrara em seus pensamentos o sorriso contagiante que enfeitava seu belo e limpo rosto redondo. Sua meiga voz de menina mimada. E seu gigante corpo perfeito. A ausência dela o fisgara, como as coloridas iscas artificiais dos profissionais esportistas pescadores. Aconteceu o que ele mais temia, se viu apaixonado, e sabia que esse sentimento era o mesmo que estar enfermo. Mas, agora, o que fazer, pensou. Ir procurá-la. Não! Isso era se entregar a loucura novamente. E se lastimou pelo fato de não ter dado o número do seu telefone a ela.

    Levantou-se da cama, foi ao banheiro, levantou a tampa da latrina e fez xixi. Deu descarga, e foi ao lavatório. Se olhou no espelho, e pela primeira vez viu um fio de cabelo branco em sua cabeça e dois em sua barba. “Meu deus!” Pensou. Abriu rapidamente a gaveta do lavatório procurando uma tesoura, e achando-a, rapidamente com cuidado fora até a raiz dos seus intrusos cabelos brancos para expulsá-los.

    — Estou ficando velho. — disse em alta voz para si mesmo.

    Teve medo por um instante de pânico de envelhecer sozinho. E pensou nela. Rapidamente entrara na banheira, ligara a ducha tomando um banho. Pegou a tolha, se enxugou apressadamente, passara um creme facial no rosto e se perfumara. Correu até o quarto, se vestindo elegantemente com roupas de verão. Uma curta bermuda branca, uma camiseta verde e uma sandália de couro esportiva. E, pensou em convidá-la para ir à praia em Herzliya.

    Ao chegar no prédio em que ela morava, correu em direção a porta, e não se lembrando o número do seu apartamento, não sabia em que botão devia apertar para chamá-la pelo interfone. Esperou um pouco, e teve a oportunidade quando um casal estava para sair, aproveitou essa oportunidade em que a porta fora aberta, adentrando-a. E subiu as escadas em direção ao terraço no quarto andar. Lá chegando, parou e fez um pequeno exercício de respiração para aliviar a tensão. E, antes de bater à porta hesitou, não sabendo bem o que dizer a ela. E quando fora bater, a porta se abriu. Sendo, que ambos se assustaram. E ela disse:

    — Você aqui! Eu já estava prestes a sair.

    — Pois é, resolvi ainda que tarde aceitar seu convite para tomar um café. Mas, vejo que tens compromisso.

    — Eu estava indo à praia.

    — Uau! Foi isso mesmo que vim fazer aqui, te convidar para ir à praia.

    — Ainda quer entrar e tomar um café antes?

    — Seria um prazer!

    Ele entrou, e viu que ela morava em um pequeno apartamento de solteiro de apenas um quarto, com uma pequena cozinha e banheiro acoplados. Mas, que continha uma enorme varanda no terraço com muitas flores, plantas, um cagado, um papagaio branco, uma iguana e três gatos. O apartamento era pequeno, mas estava muito bem organizado com uma cama de casal ao meio, a cozinha no estilo americano a frente, o banheiro ao lado e uma grande mesa com impressora e computador, improvisando um escritório de trabalho. Do outro lado havia também uma porta e uma larga janela que dava para varanda. O ambiente estava bem iluminado e confortável, havia odores de incenso, e um toque alegre maravilhosamente feminino. Muito distante do seu escuro apartamento, triste e sem graça. E, enquanto ela aprontava o café, ele disse ao se sentar a cama:

    — Bonito e aconchegante aqui.

    — Foi isso que você perdeu antes. Muito lento você, Sr. Lesma.

    — E você, apressada demais, Sra. Papa Léguas.

    — Viu!

    — Viu o quê?

    — Agora já estamos nos comportando como um casal rotineiro, discutindo por besteiras.

    — Rápida demais, menina! — Ele a alertou, e continuou — Nem começamos ainda a namorar, e você fala em casamento. Mas me diga, porque não foi ao parque correr essa semana.

    — Funcionou!

    — Funcionou o quê? — perguntou ele sem nada entender.

    — Não está vendo. — disse ela sorrindo, e fazendo um gesto obvio ao erguer a palma de suas mãos para cima, ao dobrar os cotovelos a linha do umbigo.

    — Como sou idiota! Shalom! — disse ele indo revoltado em direção a porta.

    — Bye! — disse ela tranquilamente sem olhar para traz, enquanto ainda preparava o café.

    Rapidamente ele saiu, e descendo as escadas às pressas, parou no meio, colocou a mão na cabeça, e dizia para si em voz alta:

    — Como sou idiota! Hahhhh!

    Continuou a descer, e ao chegar a porta. Hesitou em abri-la. E se viu completamente apaixonado e envolvido por ela. Tão rápido, mais rápido do que a velocidade dos pensamentos era a velocidade dos sentimentos. Sua cabeça lhe dizia: “Saia imediatamente dessa arapuca, e esqueça essa garota que só vai atrapalhar a sua vida”. E o coração rebatia, dizendo: “Volte imediatamente, peça desculpas e diga que gosta dela”.

    O coração foi mais forte, assim deu meia volta e subiu as escadas. E lá estava ela a porta, com duas xícaras na mão, uma de café e outra de chá de folhas de Luíza Limão do seu pequeno canteiro de ervas. Ele subiu a passos lentos em sua direção. E pediu desculpas, e ela abrindo os braços com as mãos ocupadas com as xícaras cheias, disse:

    — Só desculpo se me der um beijo.

    Ele se aproximou o mais perto possível, encostando barriga a barriga, e sentiu o calor atraente do corpo dela o chamando. Olho a olho se olhavam, e o olhar dela ficou meio vesgo, tornando-a mais linda e atraente, ainda mais do que já era. Suas respirações estavam ofegantes, e seus corações pulsavam tão alto, que faziam os líquidos das xícaras que estavam nas mãos dela ondularem pelas laterais, respigando todo o chão. E por um instante se cheiravam, enquanto seus narizes se tocavam. Rapidamente ele se afastou, pegando a xícara de café da mão dela, e disse:

    — Rápido demais, menina. Rápido demais…

    Ela sorriu, e ambos caminharam até a varanda. Assim, se sentaram um a frente do outro em uma pequena mesa de ferro, com a plataforma de cimento com mosaicos feitos de pedaços de azulejo que ela mesma confeccionara. E, apenas se olhavam por longos minutos sem nada dizer, enquanto saboreavam o gosto do café e chá, e os gatos se enroscavam em seus pés.

    Então, ele rompera o silêncio dizendo:

    — Vamos devagar, Ok! Assim será melhor e mais prazeroso. Não quero ter uma relação de palito de fósforo.

    — Como assim, palito de fósforo? — indagou ela.

    — Você tem uma caixa de fósforos? — perguntou.

    Ela sem nada dizer, adentrou a casa para apanhar. E trazendo, foi vagarosamente por detrás dele o abraçando em tons provocativos, enquanto estendia com uma das mãos a caixa de palitos de fósforos a frente dos seus olhos. Ele pegou a caixa, ela voltou ao seu assento, e ele disse:

    — Tome essa caixa, pegue um fósforo e acenda.

    E, assim como foi dito, ela fez. E ele disse:

    — Está vendo! O fósforo acendeu ligeiro se inflamando rapidamente, e da mesma forma ligeiro se apagou. O mesmo acontecerá conosco se formos tão depressa nisso. Tudo não passará de uma inflamante paixão. Devemos começar como uma pequena fogueira de acampamento. Catar folhas e palhas secas, colocar gravetos em cima, depois paus grossos e duros, e acendê-la com muita atenção cuidadosamente, e ir alimentando-a com esse combustível de matéria orgânica dura aos poucos, para que permaneça acesa, e venha nos aquecer por toda noite, até a vinda do sol.

    — Mas, essa sua fogueira só poderá ser acesa com um palito de fósforo, não é? — questionou a moça a sua frente com ironia.

    Nisso, ele se irritou novamente. E ela rapidamente disse:

    — Brincadeirinha, Sr. Nervosinho. — e sorriu como uma esperta menina, que ganhou a aposta.

    — Ok! Nada de telefones, SMS, Telegram, WhatsApp, Facebook, Skype e todas essas parafernálias da internet. Usaremos cartas. E só nos encontraremos no local especificado por elas. Faremos a moda antiga, antes da tecnologia. _ rebateu ele, irritado por se sentir derrotado.

    — E se as cartas não chegarem? Você sabe como são os correios aqui em Israel.

    — Vamos usar então uma empresa de correios privada. Não se preocupe, eu cobrirei todos os custos.

    — Está bem, Sr. A Moda Antiga — disse ela ironicamente concordando.

    Assim, terminaram com o café e chá, e foram para praia em Herzliya. Lá, conversaram bastante abrindo o livro de suas vidas um para o outro, e o tempo em que passaram juntos foram mágicos para os dois.

    Ele a levou de volta para o apartamento dela em Rosh Haayin. E, ao se despedir saindo do carro, enquanto ainda caminhavam até a porta do prédio, ela o surpreendeu com um beijo apaixonante em sua boca, em que ele nem ao menos teve chance de resistir, apenas pela altura dela, teve que ficar suspenso nas pontas dos pés. Então, ela percebendo o seu desconforto, o puxou ainda o beijando descendo para rua, enquanto ele ainda ficava sobre o paralelepípedo da calçada, dessa forma ele ficou mais alto e ela mais baixa. Esse beijo em que se abraçaram amorosamente, durou por quase dois minutos. Ao terminar ela disse se despedindo:

    — Isso foi apenas o palito de fósforo que acendeu a fogueira no nosso acampamento.

    E assim, ele e ela, Nimi e Einat se encontravam esporadicamente através de cartas que indicavam locais estratégicos como um jogo de RPG. Ela o escrevia cartas amorosas, as desenhando com lápis de cor, ou aquarela, e fazia também colagens de flores e folhas do seu jardim suspenso. Ele a enviava cartas com bombons e flores, sempre ditando os lugares de encontro como o mestre do jogo. Até que um dia, ela recebeu uma encomenda vinda em um carro forte de alta segurança, tendo que dar várias assinaturas nos protocolos de papeis para recebê-la. Parecia-lhe algo extremamente de muito valor financeiro, para vim com aqueles seguranças todos bem armados, com pistolas e escopetas Glock 9mm e .40 S&W. Era uma caixa grande que envolvia outras pequenas caixas, como degraus de escada de caixas sobre caixas. E, ao chegar à última e pequena caixa preta. Encontrou um pequeno papel vermelho, dobrado em quatro partes. E ao abri-lo, viu um número de telefone escrito em tinta negra: 0529516651. De imediato foi a sua bolsa procurando o seu smartphone, e ao achá-lo ligou imediatamente. E ao dizer alô, ouviu uma voz que emocionado perguntava:

    — Quer se casar comigo?

    — Rápido demais, seu moço. Nem ao menos ficamos noivos e você já pensa em casamento.

    Então, ele ao ouvir essa resposta, desligou de imediato o telefone.

    E, ela se desesperou dizendo para si: “Droga! Eu brinco demais com ele, e ele sempre me leva a sério. Apenas só repeti as suas palavras. Droga!”.

    Todavia, enquanto ela tentava ligar para ele novamente, desesperada para lhe dizer: “Sim! Era isso que eu mais desejava desde quando nos conhecemos”. Ela ouviu um toc, toc em sua porta. E abrindo-a, lá estava ele de joelhos com uma caixa de anéis na mão dizendo:

    — Case-se comigo agora Einat, mesmo que seja rápido demais! É que não precisamos mais da fogueira no nosso acampamento. Pois, o sol raiou, e já é dia!

  • Degeto

    Eu sou um gomo
    de hemorróida
    Um pouco de coma 
    na escada

    Tudo que começa comigo
    quando eu converso
    me afoga,
    me apaga

    Eu falo sobre de onde vim
    imerso em merda
    o que eu sou
    se afoga
    Nada

    Eu devo 
    não ser boa gente

    Pago
    pelo que eu penso
    inverso

    Em versos meu corpo
    caga.
  • Deixe o Karl Cair - 10

    I. Amar denovo
    Não lembro a data e hora da primeira vez em que vi o Kaio, mas lembro perfeitamente o cheiro do seu perfume.
     Kaio era um completo estranho para mim: não havia estudado comigo nem frequentado os mesmos lugares. Tudo indicava que nossos círculos de amizade também não se cruzavam.
     Você pode se perguntar o por quê de eu ter me aproximado 
    repentinamente de um desconhecido, certo? Ele tinha duas coisas muito 
    peculiares: uma coragem insana e um passado misterioso (para mim que não conhecia).
     Praticidade fez parte dos nossos encontros... inclusive, marcamos esse primeiro contato na tarde anterior. Não tínhamos conversado mais do que um 
    "Oi, tudo bem?" , "Quem é você?" , "Legal e tu?" . 
     Foi tudo muito rápido então lá estava eu sentada no banco de uma praça muito ampla e arborizada, com o vapor do sol dos meio dia lutando para tirar   
    A primeira coisa que eu achei bem estranha foi que ele se atrasou mais do que eu. Quando ele chegou eu entendi o por quê: estava bem mais arrumado (desnecessariamente) que a personagem que vos narra.
     Vou descrever para vocês, tô tentando não rir disso, mesmo mesmo... 
     Assim que o vi, parecia gótico, vestindo preto dos pés a cabeça. A única coisa com cor ali era o cabelo dele no sol, que por sinal estava grande, do tamanho do meu para mais. Depois de uma breve conversa, entendi o "style".
     Perguntei-o várias coisas, que de fato eram respondidas rapidamente - 
    tramontina, corte rápido - Ele era sincero, muito sincero. Não demorou muito até que estivéssemos longe dali em um canto mais tranquilo e vazio.
     Eu conhecia aquele bairro e sua vizinhança como a palma da minha mão, por mais que eu tentasse me perder, alguém ia me achar. Foi dito e feito, sentamos em frente a um apartamento em que havia uma curiosa senhora nos observando do terceiro andar. 
     Ela ficava de minuto em minuto entrando e saindo para a sacada, parecia desesperada como se tivesse visto um fantasma.
     Avisei o Kaio que era melhor a gente parar de conversar para ver o que ela iria fazer. Ele quis saber o motivo, então eu disse: fica calado e senta direito que eu acho que ela vai descer para o térreo.
     A senhorinha depois de alguns minutos desceu para o térreo e começou a checar ansiosamente uma pequena bolsinha que carregava na mão direita. 
     Vendo ela assim mais de perto, percebi que era muito parecida com o meu professor de química: se ele fosse uns 20 anos mais velho e uns 15 centímetros mais baixo. 
     O que realmente me fez perceber quem ela era, foi o cabelo cor de fogo que tinha. Não sou muito de reparar em cores, mas que, na iluminação certa, posso ver outras.
     Kaio diferentemente de mim não perde tempo, perguntou se ela era professora. 
    A velhinha riu e disse que tinha sido professora, mas que havia se aposentado há muito tempo (provavelmente antes de eu nascer e com certeza do Kaio também). 
     Quando a senhora perguntou o por quê, respondi que suas feições me lembravam alguém, mas não era nada demais, me despedi dela antes que o Kaio ousasse fazer mais perguntas: a mulher já estava visivelmente incomodada

    II. Vinicius o retorno

    Já fazia três anos que eu não conversava direito com o Vinicius. Eu tinha inventado a maldita ideia de sempre parabenizá-lo em seus aniversários.
    Queria dar parabéns para ele por ter aguentado mais um ano, mas também queria dar um soco na cara dele e chamá-lo de idiota.
     Não sou boa com datas, de verdade. Datas e nomes somem da minha mente numa rapidez impressionante. Já a minha memória fotográfica é ótima, até porque lembrar de nomes parecidos tipo: Mariana, Maria, Mariano, Mariane, Marrie... é difícil. 
     E tem mais: Mateus, Matheus, Marcelo, Miguel, Michel, Manoel (ou Manuel ou Emanuel)...
     O que sobra de criatividade nos pais na hora de escolher o nome do filho, falta na minha capacidade de lembrar tantos nomes parecidos.
    Triângulos amorosos são o tema mais clichê que existe em histórias de romance - colegial - ficção e seus relacionados.
     Agora cá estamos, a personagem principal e dois garotos completamente diferentes (inclusive de idades diferentes, o Vini tinha 20 e o Kaio 17) e a decisão final recaiu sobre quem? ---
     Obrigada vida, por suas consequências e cobranças.
    ** Oh mama oh la oh la, 
    Don't know what this is
    Oh mama oh la oh la,
    What do I do know? **
     Fui encontrar o dito cujo "só o pó da rabiola"*
    * - cansada, exausta, de ressaca.
     Se eu dormi 5 horas foi muito. Me meti em confusão e dessa vez nem tinha sido eu a causadora.
     Só respirei fundo e fui dar de cara com o passado.
     Enquanto eu enterrava tudo, os sentimentos renasciam nele. Injusto, não? 
    KARMA, kar-ma. Não tinha para onde eu correr: ele estava parado em frente a porta do colégio.
    (Vinicius tinha estudado lá também, não sei se vocês estão lembrados). 
     É como se após ter assinado a carta de alforria, um escravo quisesse voltar a estaca zero e libertar outro. *
     * * Nota do autor
    Claro que isso é um tremendo exagero, porém o melodrama está aí para ser vivido.
    Fim da nota do autor * * 
     Disse que havia passado para uma Universidade Estadual com tudo incluso, uma das melhores do país.
     Nossa, fiquei super feliz! Apesar dos apesares eu tinha presenciado cada esforço da parte dele para chegar até esse momento.
     Os olhos dele brilhavam de emoção, os meus também.
     Opa opa, não pode rolar beijo aqui, vamos com calma _ disse a voz da consciência. 
    meus parabéns, disse que agora não precisaria mais aguenta-lo. 
     Detesto despedidas, com todas as minhas forças. Aquele momento definitivamente era um adeus.
     Dei as costas para ele, entrei na portaria, virei em direção ao campo de futebol e 
    meu celular apitou.
     Abri para ver de quem era, adivinha de quem? Só tinha três palavras escritas: 
    Eu quero você. 
     Ele estava se declarando para mim, tudo que eu queria era aceitar tudo isso. 
     "(...) mas foram tantos sim, que agora digo não. Porque a vida é louca mano, a vida é louca." Iza





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    Capítulo 12
    O que você fez comigo Kaio?
  • Depois da merda no ventilador [conto]

    [Dona Gertrudes - 53 anos - Dona de Casa]
    Quando eu virei para a segunda rampa eu vi os dois lá em cima, se esfregando encostados no canto da grade. Mas ainda não sabia o que eles estavam fazendo. Foi quando fui chegando perto e escutando o barulho que percebi o que estava acontecendo. Foi horrível. Eu não sabia o que fazer e comecei a gritar. Aí todo mundo começou a chegar e um Senhor muito simpático e elegante veio me confortar com uma água e perguntando se estava tudo bem, o que tinha acontecido, essas coisas. Ele foi muito reconfortante.
    [Bernardo Pereira - 36 anos - Pedreiro]
    Lá de baixo eu já tinha ganhado o que estava rolando com os dois lá em cima. Os dois tavam se pegando forte. A tia lá começou a gritar não sei muito bem porque e um pessoal começou a correr do ponto para cima da passarela. Eu fiquei na minha. Tava na rampa do outro lado e voltei lá para baixo para esperar a coisa esfriar. Lá em cima começou o empurra empurra e a gritaria. A galera tava com sangue nos olhos. Aí começou o falatório, a polícia chegou e aí que não cheguei perto mesmo. Tava na cara que ia terminar em confusão.
    [Renato Seixas - 23 anos - Auxiliar de produção]
    Eu não estava entendendo o que estava acontecendo, pra falar a verdade eu nem queria me meter em nada. A confusão estava rolando lá em cima na passarela e eu fiquei aqui no ponto de ônibus só olhando. Então um cara saiu correndo do meio da confusão e veio na direção do ponto. Os dois policiais saíram na caça. O povo veio atrás deles gritando “estuprador, estuprador”. Aí quando ele passou na minha frente eu enfiei o pé nele e ele caiu. Sei lá, achei que era o certo a fazer. Ele estava correndo da polícia com todo mundo gritando estuprador. Daí todo mundo caiu em cima dele e eu me afastei.
    [Fátima Abrilina - 39 anos - Professora]
    Acho que ninguém sabia o que estava acontecendo. Eu fiquei aqui em baixo no ponto o tempo todo. Primeiro começou uma agitação lá em cima na passarela. Dois policiais que estavam com mais um numa viatura aqui em baixo foram para lá ver. Alguém passou por aqui e disse alguma coisa sobre estupro. Aí um homem desceu a passarela correndo e caiu quase na minha frente. Aí eu saí de perto. Olha, nesse mundo de hoje o melhor que a gente pode fazer é não entrar em confusão. Sempre falo isso pros meus alunos: trabalhem e não se metam com confusão.
    [Léo Kleim - 25 anos - Estudante]
    Acho que fui um dos primeiros a chegar lá. Eu tava no meio da passarela e nem tinha percebido o que estava acontecendo. Escutei um grito e quando vi o cara fechando a braguilha todo desajeitado entendi tudo e não tive dúvida, parti para cima dele. Se a grade não fosse tão alta tinha jogado ele lá para baixo. Daí começou a chegar gente e soltei o infeliz porque tavam batendo em mim sem querer tentando acertar ele. O cretino aproveitou para correr, mas a gente pegou ele no ponto. Aí veio um monte de viatura e levaram o marginal.
    [Seu Agenor - 60 anos - Aposentado]
    Para falar a verdade não vi nada. Eu vinha subindo a primeira rampa da passarela tão pensando na vida que nem percebi o tumulto. Quando virei para segunda rampa vi uma Senhora chorando perto de toda confusão e fui tirar ela de lá. Ela estava chocada e tremia. Falava umas coisas sem sentido, não dava para entender nada. Até agora não sei direito o que aconteceu. Acalmei um pouco ela e trouxe ela aqui para baixo, longe da confusão. A gente ficou conversando e nem vimos como tudo acabou. O nome dela era Gertrudes, se não me engano. Peguei o telefone dela também.
    [Mariana Carla - 29 anos - Publicitária]
    Minha nossa, foi uma selvageria. Eu já tinha passado pelos dois se pegando lá, mas nem tinha ligado, me pareceu normal. Então uma mulher começou a gritar e um monte de gente correu na direção deles. Um cara passou por mim como se fosse um animal. Antes que começassem a bater na menina também eu tirei ela do meio da confusão. Coitada. Ela gritava desesperada para pararem com aquilo, mas ninguém escutava. Então o menino saiu correndo do meio da briga e ela foi correndo atrás. Tentei segurar ela, mas não consegui. Achei que já tinha feito tudo que podia e me afastei.
    [Marília Estorme - 19 anos - Estudante]
    O que aconteceu aqui foi um absurdo. Eu vi tudo. Os dois só estavam dando uns pegas na passarela quando um cara partiu para cima deles do nada. Aí começou uma gritaria e toda confusão. Não sei da onde tiraram essa história de estupro. Eu já vi os dois na faculdade, eles estudam lá também. É revoltante.
    [Carlos Betolho - 41 anos - Policial]
    Nós estávamos realizando a vigia da passarela quando observamos uma aglomeração se formar no topo da segunda rampa. Eu e o cabo Martins subimos para averiguar o que estava provocando a desinteligência. Cinco cidadãos estavam contendo o elemento, que quando percebeu nossa aproximação se desvencilhou dos homens e tentou se evadir do local correndo. Iniciamos uma perseguição e capturamos o elemento no ponto de ônibus do outro lado da Avenida com a ajuda dos cidadãos que estavam no ponto. Ele reagiu se debatendo no momento de ser algemado, e tivemos de usar de força física para imobilizá-lo e colocá-lo na viatura.
    [Marcela Camorga - 21 anos - Secretária]
    Não vi nada, eu estava sentada no ponto ouvindo música no fone de ouvido e mexendo no celular. De repente uma mulher caiu em cima de mim e quebrou meu telefone. Quem vai pagar isso? O ônibus passou e não parou por causa da confusão. A gente não pode mais nem esperar o ônibus em paz. É sempre o povo que paga pelos problemas dos outros. O que eu tenho haver com isso? Tem que colocar esse monte de animais na cadeia e esquecer lá.
  • Depois do sonho [conto]

    Eram trinta e sete minutos do segundo tempo e o time da casa perdia por 2x0. Os visitantes se defendiam bem e levavam perigo nos contra-ataques. Pareciam ter tudo sob controle. Josias estava afoito no banco para fazer sua estréia. O técnico fez um sinal para que ele se  levantasse. “Você percebeu como eles estão marcando em linha? Eu vou tirar um volante e colocar você para infernizar eles. Quero movimentação e toque de bola. Vai lá e faz como treinamos.” Josias entrou tímido, apontando aos companheiros onde ia se posicionar. A bola saiu de sua área e veio sendo tocada até o meio campo. Então o meia lançou o lateral da esquerda e Josias acompanhou a jogada pelo meio. O lateral cruzou da linha de fundo e lá estava ele para completar de cabeça e fazer seu primeiro gol logo no primeiro toque na bola de sua estreia. Por dentro ele quase explodia, mas o time ainda estava perdendo faltando pouco mais de cinco minutos para terminar o jogo. Não havia muito a comemorar. Soltaram a bola e o volante apertou a saída e a bola sobrou para o ala, que viu Josias se projetando na área e lançou. Ele cortou o zagueiro, tirou o goleiro e colocou para dentro empatando o jogo.
    Agora o estádio inteiro gritava seu nome. Duas jogadas e dois gols. A partida estava nos últimos minutos e se fizesse mais um Josias viraria a partida num hat-trick histórico. Os donos da casa pressionavam motivados pelo novo ritmo que Josias imprimiu. O zagueirão deu um balão para área do meio campo e no bate rebate a bola sobrou para o novo atacante goleador que só empurrou para dentro. Virada consumada e fim de jogo. O estádio explodiu em felicidade. Josias era saudado como o novo herói. “Impressionante”, “nasce um fenômeno”, eram algumas das manchetes que ilustravam os jornais. Apesar disso o treinador não estava convencido de que Josias devia ser titular, e ele começou o próximo jogo na reserva. A primeira etapa foi melancólica e terminou 0x0 com a torcida clamando por Josias. Pouco depois dos 75min ele entrou, para delírio da massa, e foi batata, primeiro toque na bola e um canhão de fora da área tirou o 0 do placar. Josias foi pra galera e não parou por aí. Aos 82min ele escorou um cruzamento na segunda trave e marcou o segundo. Cinco minutos depois, sem forçar muito, fechou a conta de mais um triplete recebendo um passe primoroso e finalizando de primeira um contra-ataque.
    A esta altura Josias já era uma unanimidade entre torcedores e a crítica. Até alguns de seus companheiros faziam parte do coro dos que pediam ele desde o começo. Mas o treinador era do tipo durão, que parece que nunca dá ouvidos para nada. Dizia apenas que a hora dele ia chegar. E não tinha chegado até aquele momento, em que ele mais uma vez, agora sob protesto da torcida e da crítica, começava junto com aqueles que aguardavam ansiosamente sua chance. No final da primeira etapa saiu o gol deles, e na saída para os vestiários todos clamavam por Josias. O time voltou sem alterações, e logo no começo do segundo tempo veio também o segundo golpe. 2x0. Foi a gota d’água. Josias levantou do banco e escutou do técnico: “Vai lá e faz seu truque.”
    O jogo estava truncado, e a pelota não chegava nos pés certeiros do matador. Quando chegou, já perto dos 80min, Josias não perdoou. Numa bola espirrada pela defesa ele arrancou do meio campo, passou pela linha de zagueiros como um raio e com um leve toque tirou por cima do goleiro que veio como um boi brabo rolando pelo chão. Sem comemorar ele buscou a bola do fundo das redes, colocou no meio campo e se posicionou para o jogo recomeçar. Os caras estavam preparados, não se abatiam. Todo lançamento ou toque na direção de Josias era interceptado. Haviam sempre dois ou três marcadores a sua volta. Mas o lateral escapou pela esquerda depois de fazer um dois com o meia e viu Josias se projetando no primeiro poste. O cruzamento veio rasteiro e na dividida com o zagueiro deu Josias e seu toque mágico, que empatou o jogo já quase aos 90min. Ao apagar das luzes o volante deles fez uma falta boba no meio campo para parar a jogada. Josias só tinha feito dois gols e era o último lance da partida. A torcida gritava seu nome como uma ordem para lançarem um chuveirinho em sua direção. Todos do time adversário o cercavam. Para não se comprometer o lateral bateu a falta com um balão para área. Os zagueiros correram para trombar com Josias que subiu imprensado por quatro deles. A bola resvalou em sua cabeça e entrou. Todos foram a loucura. Josias correu para torcida que pulava e gritava em êxtase. O treinador e toda comissão técnica corriam como baratas tontas. Mais uma vez Josias entrava e em menos de dez minutos, fazia três gols e resolvia o jogo.
    A enxurrada de elogio e louvações que veio em seguida diziam que nem Pelé tinha tido um início tão estrondoso. Assim, atendendo a voz do povo, Josias foi escalado como titular para o próximo certame. “Será que Josias fará 20 gols?” estampava a manchete de uma jornal esportivo. A linha fina exaltava a chance que ele teria de marcar mais de três gols numa partida. Logo no começo do jogo veio o susto: Josias chutou uma bola para fora pela primeira vez. O estádio silenciou. Foram mais duas tentativas frustradas no primeiro tempo. A segunda etapa seguia dura, com Josias perdendo chances. Aos 82min veio o castigo: gol deles. O da vitória. Depois de mais dois jogos sem marcar Josias voltou para o banco de reservas, além de ter sido substituído em todos. Entrou nos três jogos subsequentes, mas nada de balançar as redes. Ainda surgiram mais algumas oportunidades ao longo do campeonato, mas em nenhuma delas a bola entrou. No final da temporada foi emprestado a um time menor, para adquirir experiência. Não emplacou. Foi dispensado na volta, perambulou por aqui e por ali e dois anos depois conseguiu um emprego de porteiro.
  • Desabafos de uma Ana

    Tem um momento da vida que você tem que parar para refleti sobre tudo o que você fez,que quer fazer é que está fazendo. Esse momento tem que acontecer não apenas uma vez,mas várias. Até hoje tento realizar as coisas com racionalidade, mas será que é o suficiente? Mágoas do passado não são simplesmente apagadas de uma hora para outra,ou até mesmo perdoadas,ainda mais quando são pessoas que você menos quer se magoa. Pedir perdão de um dia para o outro não resolve nada, inventar mentiras também não, e aquele tempo todo que passou sem falar um palavra se quer comigo? E aqueles momentos que mais precisei ou mais felizes da minha vida que foi perdido por um mero orgulho? Hoje percebo que toda mágoa que quardava não valia a pena, não existe volta para o que não quer ser concertado,não existe perdão para quem não admite o erro,não existe aproximação para quem não tenta. E pensando nesse momento,todo o tempo perdido valeu a pena?Sim,porque pude percebe a cada segundo quem realmente quis estar comigo resolvia o problema na hora,não deixava o orgulho vencer e reconhecia que estava errado. E se era eu a errada,me mostrava isso,não apenas sumia. Então reveja o seu julgamento de quem está certo ou errado,pois se despender de mim,vai continuar sendo apenas mais uma pessoa que passou pela minha vida.
  • DESPREZO

    Amar sem ser amado
    Masoquismo desse lado
    Viver sem ser notado.

    Ser amado sem amar
    Sadismo do outro lado
    Vive sem me notar.

    Esperar para ser amado
    Não alcança resultado
    Está preso e condenado.

    Quem sempre é esperado
    Ficou acostumado
    Está livre e perdoado.
  • Elucidações elucidativas sobre os elucidados [conto]

    A menor possibilidade das coisas darem certo ainda não é o suficiente para deslindar a necessidade de as coisas darem certo. Se as coisas não derem certo para Renata isso poderia significar que não vão dar certo para ninguém. Não porque as coisas dela sintetizam todo os sentimento do universo ou sua solução culminaria na confirmação ou negação da hipótese de Riemann. Ninguém nunca conseguiu solucionar esta fabulosa combinação de números e letras romanas e gregas, cheio de linhas e sinais gráficos, muito bem matutada por Bernhard Riemann, um alemão que morreu na Itália e viveu no período da nababesca era Vitoriana. Renata certamente não seria quem desvendaria este pomposo enigma, visto que ela era uma notória lunática, e não dominava as artes numeroletradas. Ela nunca poupou nenhum tipo de tempo, passado, presente ou futuro, para fazer as coisas darem certo, mas isso não garante nada, se é que alguma coisa pode ser garantida nesta época de carros que não voam e exceções generalizadas. Falo isso por causa das coisas que Renata falava para a lua antes de dormir. Não que ela falava com a lua como um galo que fala para o mundo que o sol chegou ao mesmo tempo que avisa as estrelas para se esconderem, era mais parecido com um canário que canta todo dia de manhã na esperança de encontrar outros canários que também queiram cantar.
    Para as coisas darem certo para Renata ela precisava que uma série de acontecimentos aleatórios se alinhassem numa sequência imponderável. É uma coisa parecida com o efeito borboleta, mas sem tantas cores e com um degradê mais opaco. É esta variação de cor limitada pelo espectro retro dimensional que determinará a completa ocasionalidade dos eventos. Sendo assim, o fundamentalismo paraláxico da situação determina que as coisas darem certo para Renata é elemento decretório para que as coisas também deem certo para todos os seres vivos, pensantes e não pensantes, ou mortos (aí tanto faz como e porque). Se Deus existe, só ele sabe se as coisas vão dar certo para Renata, mas se ele não existir, aí ninguém sabe. Neste caso, de ninguém saber, quem descobrir pode estar em grande risco de ser considerado sabedor demais. Assim como Galileu ou Tesla. Para eles as coisas não deram certo, o que impactou o mundo inteiro, que teve que viver mais tempo que o necessário achando que a terra era quadrada e sem iluminação para cidadãos noctâmbulos. Não se pode dizer aqui que Renata não era cumpridora de seus deveres e merecedora de todas as graças de Nossa Senhora da Bicicletinha (o que não significa que eram de graça, Renata deprecava fervorosamente na igreja ou fora dela, além de sempre contribuir na cestinha), porque ela era.
    Traçando um paralelo entre a curva ascendente da transversalidade do cosmo, e os instintos reprimidos de um boi que pasta durante semanas antes de virar hambúrguer, um alucinado poderia concluir que os coisas dariam certo para Renata se ela fosse para a Conchinchina. Supondo, para todos os efeitos laterais e colaterais, que a Conchinchina fizesse fronteira com o Amapá, e alguns metros separassem a prosperidade da completa precariedade do ser (alguma coisa, humano ou animal), e que as coisas dessem certo com Renata lá, o sistema de irrigação dos circuitos que ligam os fatos entrariam em processo de estiagem aqui. Em todo caso, parece lógico afirmar que as inexoráveis relações de espaço-tempo seriam afetadas de formas reparáveis somente com a invenção de novas máquinas ou uso de tecnologia cinematográfica. Ambas as soluções estão além dos pressupostos básicos democráticos estabelecidos pelo senso comum.
    É de suma importância lembrar dos estudos conduzidos pela própria Renata sobre a influência da lua nos sorteios dos números do bingo na igreja. Como lunática formada e diplomada numa das grandes universidades da vida, Renata tem todos as credenciais necessárias para dizer o que quiser ou entrar em qualquer lugar, desde que a vontade e os lugares existam. Dito isso, suas pesquisas provam categoricamente que pedras lunares que cantam aqui não cantam lá, e vice-versa. Então não adianta teimar que água mole não fura pedra dura. No sapato ou no caminho, no bingo ou na lua, a pedra é sempre algo que vai bater. Que seja pós-verdade, pós-mentira ou pós-feijoada, as coisas tem que dar certo para Renata nem que seja por sorteio, fórmula mais conhecida por selecionar a meritocracia.
    No fim os macacos nunca morderam o Robin, e o Batman jamais conseguiria morder uma bala como John Wayne. Quando uma borboleta bate as asas ela espalha por toda atmosfera uma grande quantidade de pó de pirlimpimpim, e este pode ser o segredo do milagre. Tudo corrobora para que não acontecimentos continuem a não acontecer. Existem mais de 80 grupos étnicos no Sudão do Sul, e todas essas formidáveis culturas fazem um esforço descomunal, há séculos, para se manterem culturando, independente da vontade do sapo de se alimentar unicamente de mosquitos. O que se pode dizer, ainda que se incorra no terrível erro de se estar errado, considerando aqui que a dicotomia certo e errado corresponde às duas únicas possibilidades irracionalmente viáveis de definição a cerca da moral, é que não se pode fazer uma omelete sem se quebrar os ovos. Não sendo a omelete uma substância essencial para a preservação da espécie, fauna e flora, ao contrário do ovo, ao qual a vida está uniformemente envolta, se conclui que para as coisas darem certo para Renata basta não fazer omelete.
  • Entrevista com Bruno Vieira – CEO da Craftcomicbook

    1- Como surgiu a ideia da Craftcomicbook?
    R- A Craft surgiu a partir de uma necessidade. Antes de criar a empresa eu era dono de um estúdio de histórias em quadrinhos e livros formado por mim e um grupo de amigos, no ano de 2017 tentamos lançar uma hq pelo Catarse para participarmos de um evento, a campanha infelizmente não deu certo e nos vimos diante à um problema, já que não levaríamos nada para vender no artist alley que confirmamos presença. Ao me deparar com um vídeo ensinando como fazer um bullet journal artesanal eu acabei tentando adaptar a ideia para a nossa hq, mesmo que de forma bastante amadora, confeccionei cerca de 30 exemplares e participamos do evento, vendemos todos. Depois do fim do estúdio por diversas razões, vi neste modelo uma oportunidade de apoio a autores que passam pelos mesmos problemas que enfrentei durante a minha carreira, como as grandes tiragens obrigatórias por parte das gráficas, altos custos para a impressão e grandes estoques. Com o modelo de impressos por demanda e sem custos para autores consegui resolver estes principais pontos e busco resolver outras questões, como a capacitação por parte dos autores na parte mais administrativas e distribuição dos exemplares em território nacional.
    2- Como a crise editorial afetou a Craftcomicbook em 2018?
    R- Na verdade não sentimos a crise com tanta intensidade, pelo contrário, a Craft no ano de 2018 superou minhas expectativas tanto nos avanços referentes a qualidade gráfica quanto no volume de autores e leitores dentro da plataforma. A crise na verdade foi uma forma de alerta ao nosso modelo de negócios e me fez pensar em como eu posso usar o meu trabalho para ajudar de alguma forma neste momento.
    3- A ideia de que o brasileiro não gosta de ler, o artista nacional não é valorizado e as editoras não gostam de investir é um mito ou uma realidade?
    R- Infelizmente tudo leva a crer que sim, é uma realidade. Nós brasileiros não temos o hábito de leitura e isto piora quando se diz respeito a obras nacionais, já que sofremos com um preconceito onde somente trabalhos internacionais são valorizados e isso resulta em falta de investimento por parte das editoras. Mas não podemos ficar quietos diante a esta realidade, já passamos muito tempo de braços cruzados, reclamando principalmente da postura das editoras, mas só veremos resultados se pararmos de cobrar os outros e cobrarmos de nós mesmos. O que eu como plataforma posso fazer para mudar isso? O que eu como autor posso fazer para chamar a atenção dos leitores? O que eu como autor posso fazer para chamar a atenção das grandes editoras? E claro, para descobrirmos as respostar para estas questões é preciso colocar a mão na massa.
    4- Como funciona o modelo de publicação da Craftcomicbook?
    R- É só enviar sua obra para o e-mail: craftcomicbooks@gmail.com
    Depois envio o orçamento para o seu e-mail e você decide quanto receberá por cada venda feita. Desta maneira iremos adicionar o valor do seu lucro junto ao preço de custo para definir o valor de venda. Depois criarei uma página na loja onde a sua obra será vendida, caso queira um exemplar para conferir a qualidade pessoalmente, cobramos o valor correspondente a confecção e envio. O autor terá acesso a uma página onde conseguirá acompanhar os seus ganhos em tempo real. Ao reunir o valor mínimo de R$100,00 o autor poderá efetuar o saque e o valor obtido será depositado em sua conta bancária.
     5- Como você definiria o atual mercado nacional de editoração?
    R- Estou esperançoso. Mesmo que as grandes editoras e livrarias estejam passando por momentos difíceis os autores independentes se destacam com trabalhos excepcionais. Claro, ainda temos muito a conquistar, mas aposto nos independentes, tenho fé que são estes autores que irão fazer o mercado de editoração nacional se movimentar e se recuperar.
    6- Qual o diferencial da Craftcomicbook?
    R- Outras plataformas oferecem a impressão por demanda, mas quando o assunto é a customização dos exemplares, nos destacamos. Brinco que na verdade a Craft é um self-service de histórias em quadrinhos e livros, onde o leitor pode escolher a obra que mais lhe agrada, no tamanho que é mais confortável para ele e com a qualidade de impressão que deseja.
    7- Quais tipos de títulos a Craftcomicbook oferece?
    R- Histórias em quadrinhos, livros, revista, artbooks, entre outros materiais impressos.
    8- Como o Correio atrapalha a Craftcomicbook?
    R- Os atrasos, a extrema falta de cuidado e os extravios. Infelizmente a empresa não presa pelo respeito aos seus clientes e isso interfere de forma direta a nossa relação tanto com o leitor, quanto com o autor que confia nos nossos serviços.
    9 – Quais os seus projetos para o futuro?
    R- Bom, confesso que são um pouco ambiciosos, mas vamos lá. Para 2019 pretendo lançar as histórias em quadrinhos oficiais da Craft Comic Books, obras onde o leitor conseguirá customizar até mesmo a história, escolhendo os caminhos das personagens, as suas atitudes, diálogos e até o estilo da mesma. Criarei um sistema de assinaturas para que o leitor receba mensalmente uma caixa com exemplares da Craft com capas e brindes exclusivos. Buscarei novos modelos de apoio a autores, como fornecer exemplares sem custos para lançamentos e participações em artist alleys. Fornecerei novas opções de customização nos exemplares, como obras em capa dura, formato americano, impressos em papel couchê, capas com orelhas, entre outros. E por fim, testarei um modelo estratégico que busca disponibilizar exemplares independentes nacionais em bancas de revistas e livrarias em todo o território brasileiro.
    10 – Faça um convite para os seus leitores.
    R – Se você leitor deseja ter total controle quanto aos seus livros e histórias em quadrinhos quando se diz respeito ao formato que mais lhe agrada, a Craft Comic Books é o lugar certo pra você. São mais de 100 obras originais e feitas por autores brasileiros que estão disponíveis no nosso catálogo e novas hqs e livros são lançados toda semana! Faço também um convite aos autores, se busca uma maneira de lançar o seu impresso, entre em contato conosco, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que esta parceria gere bons frutos para todos nós.
    Deixe abaixo links e endereços para que os leitores possam visitar:
    Site: craftcomicbooks.com
    Facebook: facebook.com/craftcomicbooks
    Instagram: @craftcomics
    Youtube: Craft Comic Books
  • Entrevista com Matheus Braga – autor de O Landau vermelho

    1 – Quem é Matheus Braga e porque você resolveu contar a história de um carro assassino?
    R – Já começamos com uma pergunta difícil, porque sou péssimo para falar de mim mesmo, rsrsrsrs. Bem, posso dizer que sou um sonhador. Sou uma pessoa que sonha com a cabeça nas nuvens e os pés no chão e corre atrás da realização desses sonhos. Sou uma pessoa determinada, resiliente, apaixonada pela natureza, que ama animais e a-do-ra carros desde que se entende por gente. Pode-se dizer que aprendi a nomear carros antes mesmo de aprender a falar “papai” e “mamãe”, rsrsrs. Quando pequeno, meus brinquedos favoritos eram as miniaturas de carros e meu Ferrorama, e sempre gostei muito dos filmes cult sobre perseguição de carros como Encurralado e Christine – O carro assassino, e foi daí que, anos mais tarde, vieram algumas das inspirações para meu livro.
    2 – Como foi o processo de produção do seu romance de terror O Landau Vermelho?
    R – Gosto de dizer que O Landau vermelho foi um livro construído ao longo de muitos anos. Como já disse, sempre nutri uma paixão muito grande por carros e sempre tive vontade de escrever algo dentro desse universo, mas nunca havia tido a ideia para isso. Eu estava sempre esboçando plots e cenas separadas, mas nunca havia chegado a um enredo satisfatório. Este só veio quando num dia, ao organizar minha pasta de arquivos no computador, acabei lendo todas as cenas separadas em sequência e, baseada numa dessas cenas em específico, intitulada Corrida Infernal, formou-se a ideia para o livro. Também me inspirei nos filmes clássicos do gênero “carro assassino” para me ajudar a enxergar melhor a história. A partir desse ponto, foram mais dois anos e meio de escrita e muita pesquisa para finalizar o livro, e depois ainda precisamos de uns 5 ou 6 meses de revisões pontuais antes que a versão final finalmente saísse em e-book e, agora, em versão impressa. Cabe aqui uma curiosidade: quase todo esse processo aconteceu tendo como trilha sonora a música Two black Cadillacs, da Carrie Underwood, cujo videoclipe também conta a história de um carro assassino.
    3 – Quais suas maiores influências no mundo da escrita?
    R – Sempre me identifiquei muito com o gênero de romance policial, e minha maior influência foi o mestre Sidney Sheldon. É dele o primeiro romance policial que li, Conte-me seus sonhos, e o estilo narrativo dele sempre foi o que mais me fascinou. Ele constrói as cenas de forma quase cinematográfica, explorando as sensações e percepções tanto dos personagens quanto do ambiente em si, de forma a obrigar o leitor a continuar lendo, e lendo, e lendo até que, quando dá por si, o livro já acabou. Venho praticando muito para conseguir escrever dessa forma também, como pode ser percebido no meu romance O Landau vermelho. Mas além do Sidney Sheldon, também sempre li muito Harlan Coben, Stephen King e Agatha Christie.
    4 – As editoras independentes estão dando um show de como se publicar livros no Brasil, muitas vezes exportando esses livros para a Europa e EUA. Como você percebe essa mudança no nosso mercado literário?
    R – Infelizmente a mudança ainda é relativamente sutil no mercado como um todo, mas já é perceptível para quem está atento. As grandes livrarias e editoras sempre dominaram o mercado literário de forma cavalar, quase sempre valorizando autores já expressivos ou que possuam o famoso “Q.I.”, mas com o advento da internet é possível perceber um crescimento das publicações de editoras menores e autores independentes, principalmente no que diz respeito aos e-books. Tal crescimento tem se mostrado uma grata surpresa aos leitores de plantão, pois tem revelado autores talentosíssimos e histórias extremamente deliciosas de se ler. É bastante notável que estes novos autores quase sempre vêm do mundo das fanfics, que já é bastante popular desde a época dos fóruns, no início dos anos 2000, e temos sido agraciados com grandes talentos que até então estavam ocultos ou não tinham uma divulgação expressiva de seu trabalho, e estes talentos acabam por ser a nossa esperança de que, apesar do mercado literário ter entrado em declínio nos últimos anos, ainda poderemos desfrutar por muito, muito tempo deste prazer indescritível que é a leitura de um bom livro.
    5 – Quais as maiores dificuldades para um escritor iniciante conseguir sua primeira publicação?
    R – Sinceramente não tenho propriedade para responder esta pergunta, pois a editora Immortal foi a primeira e única para a qual enviei o original de O Landau vermelho e ele já foi aceito para publicação, rsrsrsrs. Mas acredito que a dificuldade maior seja justamente encontrar a editora certa para a publicação. Escrever em si já é algo muito difícil, mas encontrar uma editora onde sua história se encaixe da forma devida pode ser um tanto delicado, pois pode haver divergência entre a mensagem que o autor quer passar com a história e a interpretação que a editora dará para ela. Além disso pode haver também o fator financeiro, pois não são todas as editoras que se dispõem a publicar o livro antes para colher os lucros depois, e também não é fácil para um autor iniciante dispor de determinada quantia financeira para investir na publicação, mesmo que a realização de um sonho não tenha preço. De qualquer forma, acredito que com a devida paciência tudo pode se ajeitar.
    6 – Qual sua preferência de leitura: e-book ou impresso? E porquê?
    R – Impresso, com certeza. Além de adorar o cheiro de um livro novo, sou muito tradicional nesse quesito, e ter o livro em mãos me proporciona uma experiência de leitura muito melhor. Gosto da sensação de folhear as páginas e consigo imergir melhor na história e absorver a mensagem do livro de forma mais satisfatória. Ler e-book é algo que requer muita disciplina, pois nos aparelhos eletrônicos as distrações são constantes (WhatsApp, Facebook, Instagram, etc...) e eu sempre acabo desviando minha atenção com outras coisas. O engraçado é que leio fanfics com constância no meu celular e não desvio tanto minha atenção, rsrsrs, mas simplesmente não consigo ler um e-book.
    7 – O autor tem outros hobbies além de escrever? Quais são?
    R – Meus principais hobbies além da escrita são o colecionismo/modelismo e o trekking. Tenho várias coleções, desde miniaturas de carros e trens até minifiguras de Lego e moedas raras, e sempre que disponho de um dia livre ou feriado prolongado gosto de fazer caminhadas ao ar livre para serras ou cachoeiras, pois adoro estar em contato com a natureza. Ainda tenho o sonho de montar um “carro projeto” apenas por hobby, que é comprar um carro antigo e fazer alterações no estilo e na performance dele para um uso mais divertido, mas ainda não tenho condições financeiras para isso, rsrsrs.
    8 – O mercado editorial passa por mudanças, elas já são perceptíveis ao ponto de dizermos que temos um novo mercado ou não?
    R – Acredito que a maior mudança que o mercado editorial vem passando nos últimos tempos é a popularização dos livros digitais. Apesar de admitir isso a contragosto, os e-books são bem mais práticos e acessíveis do que os livros impressos, principalmente para fins acadêmicos e profissionais, e podem ser a melhor opção para pessoas que querem passar a ter o hábito de ler mas não abrem mão da conectividade. Com isso, acredito que é seguro dizer que sim, temos um novo mercado, com novas estratégias de vendas, marketing e lucros adaptadas à nova realidade dos leitores.
    9 – Nos conte quais os planos para o futuro desse escritor?
    R – Adoro fazer planos e sonhar com o desenrolar deles, mas sempre mantendo os pés no chão. Entre os principais planos na minha vida hoje estão: morar sozinho, para finalmente conquistar minha independência; publicar mais um livro até o fim de 2019; conseguir mais uma promoção no meu emprego para me estabilizar financeiramente; e no segundo semestre, quem sabe, começar uma das minhas pós-graduações.
    10 – Como e onde os leitores podem adquirir o seu livro e em que projetos está envolvido ultimamente?
    R – Meu livro pode ser adquirido diretamente com a Editora Immortal ou pelos sites Amazon e Clube de Autores, tanto o e-book quanto a versão impressa. Os links estão no meu perfil e na página da editora. Meu próximo projeto é uma participação na antologia Contos do desconhecido, também da Editora Immortal, que será uma compilação de contos de terror onde estarei participando com os contos originais Ferrorama e Sussurros à meia-noite.
  • Errado

    Eu não escrevo sobre nada
    é só me ler
    não tem nada lá

    Se eu falar sobre algum caminho
    não ande ali, vai por mim
    não vá

    Não quero isso pra ninguém
    Não aprecio o que existir me dá

    Não pague o preço
    que eu pago 
    comigo

    Meu ninho
    é o inferno
    que eu converso 
    e penso

    A forma que eu enxergo
    a vida
    é intensa. Imersa no imenso
    e má.
  • Espelho

    No órgão a solidão me comia e no meu ostracismo, as luvas brancas dos meus veludos. 
    Estava sonhando com a Morte, presença ímpar na minha vida sorumbática e nos meus lustros de sangue.
    Ela veio.
    Desceu as escadas com um cálice na mão, vazio. 
    Eu ouvia seus passos.
    Ela brincou comigo e com ares fantasmagóricos sussurrou ser meu espelho.
    Eu estava travestido dela e a Morte então, me invadiu com velas e perfumes.
    No meu quarto apenas o meu esqueleto e... Ela.
  • Estrofe do amor

    amo-te mais do que a mim mesmo,
    não leve isso a esmo,
    nem mesmo do mais
  • Estrofe do dialogo

    os momentos são únicos;
    as sementes são únicas;
    os gritos são surdos
    as palavras nuas
  • Estrofe do perdão

    o que fiz de mal,
    perdoa-me,
    o que sobrou do céu,
    componha-me
  • Eu conto ou tu me conta um conto?

    Inícios para mim são sempre mais difíceis. Começos são desafiadores. Não sei bem ao certo quando esse desafio começou, mas para mim tem alguma relação com meu nascimento. Não sei bem. Tenho dúvidas.
    O nascer é luz, mas o sobreviver é imensidão. Nem sempre só de luz vive nossa vida e, parece que, a única coisa que querermos quando saímos e entendemos o que está acontecendo do lado de fora, é voltar para a caverna quentinha da mãe e ali, imaginar, ideias, sem certezas. Só ideias. E aqui estou, sobrevivendo em palavras. Começando e recomeçando pensamentos, revirando e tirando poeira de memórias para dar a alguém de presente. 
    Imensidão. Dúvidas. Reflexões, começos e recomeços. 
    Ah! E por falar em nascimentos, escolhas e essa coisa toda da crise existencial básica humana, essa semana uma amiga apareceu aqui em casa, pra colocar o papo em dia e aquelas coisas todas. E,  entre uma pitada e outra, acabei comentando que precisava contar uma história, fazer um trabalho e teria que ser uma memória, lembrança...sei lá, alguma coisa nesse sentido, mas não sabia nem por onde começar e nem qual assunto escolher. Faltei nesse dia e perdi a atividade que ia me ajudar a “desbloquear” o assunto, internet ruim.  Um adendo: processos criativos são importantes, não falte às aulas, tudo fica mais complicado!  Um caso engraçado, aqui quando venta a internet por fibra para de funcionar, vai saber... mas voltando ali para meu conflito do que escrever...
    Imensidão. Dúvidas. Reflexões. Essa coisa toda. Estava com duvida primeiro do que contar e depois de “como”. Antes que eu sentisse fome e comesse o texto todo, procurei uma forma de organizar as ideias e mandá-las pra fora. Pois bem, em casa estava eu e minha amiga e ela desembestou a falar. Me contou uma infinidade de encontros frustrantes e cômicos de sua longa jornada nos apps da nossa solteirice moderna. Novo social, sabe como é, né?
    Passamos desde tatuagem inusitada do Pinóquio até “dividimos o IFood e ele ficou me devendo, acredita amiga?”. Rimos. De desespero, talvez. Comemos. Dividimos. Agora divido com você, mas não era bem sobre isso que queria falar...encontros frustrantes na internet? Intimidades não...
    Imensidão. Vida. Dúvidas. Faz parte de tudo que respira? Que loucura isso! Alguém para o mundo...porfa.
    Ouvindo ela só pensava em como nós somos reféns das nossas escolhas e como escolher era difícil, pelo menos para mim era. Já para ela, mais fácil do que se imagina. Olha que doido, ela escolhendo pares românticos na internet para tampar um pedaço vazio de vida e eu escolhendo memórias e palavras para tampar um buraquinho na minha imensidão de vida.
    Dúvidas. Como faria isso? Como ela faz isso? E, então, do nada ela me disse “eu mereço mais que isso. Você não acha, amiga? Não vou mais usar esses apps.”
    Decidir. Escolher. Pensar. Para mim, muito mais que epifania. Para minha amiga é uma escolha, um “match perfeito”.
    Imensidão. Qual o tamanho da vida? Quem delimita o espaço ou tamanho que as coisas do mundo ocuparão em nossa existência? Quem define o tamanho de uma responsabilidade ou uma certeza? Por que decidir o que comer, vestir, achar ou falar para mim era tão complicado? Eu sempre me enrolo. Meto os pés pelas mãos, saca? Não é simplesmente só escolher um que te agrada mais e fim? E se eu me arrepender...?. Dúvidas.
    Quando comecei a ouvir aqueles montes de histórias que minha cabeça revirada contava e meus ouvidos metralhados de memórias iam ganhando da amiga, comecei a refletir sobre essa imensidão, minha e dela. Se nascemos todos iguais, do mesmo buraco, então como nos tornamos tão diferentes e com vidas tão únicas? São tão únicas que aqui estou, depois de vários carácteres e sentidos, tomando um café e fumando, escrevendo e pensando em que tipo de memória compartilhar, consigo entender essa singularidade. Para uns, escolhas são luzes. Abrem caminhos, divertem e iluminam sorrisos. Para outros, imensidão... trazem dúvidas, pensamentos, escolhas gris e... não sei ainda o que escrever. Escolhas. Não sei fazer. Como eu deveria encarar? Luz? Imensidão? Mistérios?luzes e sombras? Será? Mas então, eu  sempre falo da minha mãe e da minha criação. Principalmente do ano em que a cromoterapia com cristais pintou em casa e tinha cristais até no suco para filtrar as impurezas e energias e tal. Ah! E quando era o ano da prosperidade e a água era tingida de azul? Esse ano foi épico, descobri que o suco de laranja fica roxo. Ideias. Não queria mais falar de mim, também. Porque igual a minha amiga, tenho conflitos sentimentais, mas por falta deles. Não sei escolher. E se a gente juntasse tudo numa coisa só? Os gostos das pizzas e cores da natureza e, então, tomasse uma capsula por dia. Uma especie de fórmula. Ser adulto é uma constância de escolhas, difícil pra quem não sabe manusear a ferramenta da escolha...pensei então em falar de como meu pai era especialmente inteligente e criava, dentro da área dele, coisas super inovadoras.  Ele era eletrotécnico de uma multinacional alemã e o seu tcc entraria para a historia da FATEC, mas como o pequeno príncipe, ele cansou de carregar sua matéria e foi viver nas estrelas. É triste e eu não queria. Pensei então em contar como minha avó fazia caramelo e sabia o ponto da calda pelo cheiro e pelo barulho que a bolha fazia quando estourava na panela e que por outro lado, não sabia de jeito nenhum fazer arroz. Ficava tipo, unidos venceremos. Ou então que meu avô era rico e perdeu tudo na esbórnia. Fardos de família, também não. Não sei.... dúvidas. Imensidão, reflexões, começos e recomeços. E minha amiga ali, falando, falando. Comemos. Rimos da desgraça nossa. E agora estou aqui, na dúvida de qual momento compartilhar. Pensando bem, acho que essa arrumação aqui nos arquivos me fez reviver. Talvez ficar na dúvida fez bem. Iluminou a minha imensidão, me ajudou a organizar as memórias e vivê-las em palavras, que por sorte minha será compartilhada por voz. Foi preciso revirar e arrumar essa imensidão toda que existe para saber a importância que uma memória tem. Podemos revivê-las a qualquer momento e eternizá-las em palavras. E agora quanto a decisões e escolhas, melhor deixar para uma outra hora. E o assunto da minha historia? Também não sei. O que eu sei é que a única coisa que meu pensamento grita é... “como você pode ser tão indecisa, menina?”
  • Experiência n°67 [conto]

    - Introdução: É feriado.
    - Objetivo: Ser feliz.
    - Justificativa: Nenhuma.
    - Metodologia: Tentativa e erro.
    Relatório final
    [6:15] - Início dos procedimentos
    250ml da substância 1 administrada na forma líquida.
    2g da substância 2 administrada de forma fumófita.
    [7:15] - Leitura dos parâmetros
    Temperatura: 37,5°C
    Pulso: 95 bpm
    Pressão: 13\9
    Respiração regular.
    Foco se expandindo.
    [8:15] - Sintomas físicos
    Ondas de calafrios.
    Aumento exponencial da atividade das glândulas sudoríparas.
    Dilatação máxima da pupila.
    [9:15] - Sintomas quânticos
    Sentimento abrupto de bem estar e euforia.
    Risos compulsivos.
    Referências inconscientes confusas.
    [10:15] - Sintomas psíquicos
    Oscilação de humor.
    Longas pausas para reflexão encarando o infinito com a boca aberta.
    Completa desorientação temporal.
    [11:15] - Registro de alucinações
    Elefantes voando.
    Conversa com Deus.
    Criação de asas.
    [12:15] - Manutenção dos procedimentos I
    1 pílula da substância 3, diluído na substância 4, administrado via oral.
    2g da substância 2 administrada de forma fumófita.
    [13:15] - Atualização dos parâmetros
    Temperatura: 38,5°C
    Pulso: 119 bpm
    Pressão: 15\11
    Respiração regular.
    Foco expandido e infinito.
    [14:15] - Sintomas físicos
    Descontrole parcial dos movimentos.
    Atividade das glândulas sudoríparas em evolução constante.
    Olha distópico.
    [15:15] - Sintomas quânticos
    Choro compulsivo.
    Captação de energia extra-sensorial através da emissão de grunhidos.
    Dispersão de raios gama e manipulação da luz.
    [16:15] - Sintomas psíquicos
    Comunicação com o mundo via espasmos ritmados em Lá.
    Criação de realidades paralelas e multiplicação de personalidades.
    Descolamento total da imaginação.
    [17:15] - Registro de alucinações
    Paredes derretendo.
    Chão afundando.
    Telhado voador.
    [18:15] - Manutenção dos procedimentos II
    1 comprimido da substância 5 administrado via sublingual.
    40ml da substância 4 administrada na forma líquida.
    2g da substância 2 administrada de forma fumófita.
    [19:15] - Atualização dos parâmetros
    Temperatura: 38,5°C (estável)
    Pulso: 122 bpm
    Pressão: 9\7
    Respiração lenta.
    Total perda de foco.
    [20:15] - Sintomas físicos
    Tremedeiras constantes por todo corpo.
    Glândulas sudoríparas alucinadas.
    Relaxamento completo dos músculos e movimentos congelados.
    [21:15] - Sintomas quânticos
    Experimentação de sensações extra-corporais.
    Percepção interestelar da força das galáxias.
    Liberação intensa de calor via anal.
    [22:15] - Sintomas psíquicos
    Letargia paranóica delirativa.
    Concepção de ideias sem sentido combinado com movimentos aleatório dos membros.
    Sorriso estampado na cara.
    [23:15] - Registro de alucinações
    Não foi possível diferenciar as dimensões.
    [00:15] - Procedimento encerrado
  • Fatos Cotidianos 15 - Zé Ninguém [conto]

    [cena do crime]
    - Dois tiros no peito e um na cabeça. Não foi de longe. Espirrou sangue para todo lado.
    - Foi a queima roupa. Dois no peito para cair e um no meio da testa para ter certeza. Foi execução.
    - A execução de um viciado. Tem cachimbo usado para todo lado aqui. Talvez um acerto de contas.
    - Alguma testemunha?
    - Nem a gente estaria aqui se não estivesse fedendo. Foi um guarda fazendo ronda que sentiu o cheiro, remexeu aqui e achou o corpo.
    - Quem é o vapor dessa área?
    - O Néquinho. Vamos atrás dele.
    [beco do centro]
    - O cara era um nóia. Vivia perambulando por aí enchendo o saco dos outros. Tinha mais gente querendo matar ele do que gente querendo salvar o mundo.
    - Qual era o nome dele e a quanto tempo ele estava nessa merda?
    - Quem chamava ele de alguma coisa que não fosse nóia chamava de Cheiroso. Tava se matando aqui a mais de ano. Não tenho ideia de onde ele veio.
    - E quanto ele te devia? Que servicinhos ele fazia para te pagar?
    - Eu tenho cara de BNDS, meu chapa? Acha que eu dou crédito para qualquer nóia? Para mim ele não devia nada. Nem sabia que tinham deletado ele.
    - Você tem cara de vagabundo, e não me confunda com os seus “chapas”. Precisamos de mais do que isso para você não precisar de um advogado.
    - Calma aí. Sei lá, o cara vivia de pedir, roubar e pedra. Morava na rua. Fedia. As Tias tinham medo. Não ia ser a primeira vez que os donos das lojas se unem para resolver um problema. Quer saber, é mais fácil ter sido um de vocês do que um dos nossos.
    - Fica esperto que qualquer hora dessas o problema pode ser você.
    [bar do centro]
    - O que temos da cena do crime?
    - Se mandarmos as balas para a balística podemos ter um resultado daqui uns dois meses dizendo que era um três oitão sem registro. O ferimento de entrada diz com letras luminosas: 38 sem origem, registro ou estrias. As únicas provas de que ele existe estão cravadas no corpo. A bala no meio da testa grita: execução. Quer voltar lá e procurar cabelos nas roupas dele ou verificar as gotas gravitacionais? Vamos colher DNA de debaixo das unhas também?
    - Podemos enviar para Abby junto com o molde da sola de sapato na poça de sangue do lado dele. E as digitais?
    - A gente processa no super laboratório da Abby. Ou talvez seja melhor mandar pro Grissom. A Srta. Sutton está sobrecarregada com DNA, cabelo, sangue, foto e tudo mais.
    - E a autópsia?
    - É onde ele vai ficar antes de ser enterrado como indigente. São uns 20 dias, certo?
    - Putz, que merda. Porque no meu turno? Na sexta. Eu não vou fazer a papelada disso.
    - Tudo bem, mas o próximo é seu.
  • Fetiches

    Desde que assumiu sua condição aos quinze anos, a vida de Hugo nunca mais foi a mesma. A primeira dificuldade foi dizer a sua conservadora família de cristãos protestantes! Sofria assédio de toda a vizinhança. Ele se via uma mulher presa num corpo de homem, sentia-se culpado, estressado e sem perspectivas. Era duro não atender as expectativas de seus pais e irmãos nessas condições.
           A oportunidade de sair de casa surgiu quando seu amante – um homem mais velho que morava no outro lado da cidade – lhe propôs que fosse morar com ele. Aceitou de pronto, e na calada da noite, Hugo fugiu e se tornou Charlote.
           Seu companheiro se mostrou um sanguessuga, vivia bebendo e usando drogas, a tratava como uma escrava doméstica e ainda a agredia fisicamente. Ela cresceu, e um dia, não aguentando mais as agressões, revidou, a briga foi feia, a polícia foi chamada e o homem foi preso por pedofilia. O bangalô ficou para ela, mas por mais que a casa fosse humilde, como sustentá-la?
           Charlote procurou emprego, mas nenhuma loja ou empresa por mais não davam emprego para travestis ou transexuais. Assim como em sua casa, as barreiras do preconceito não podiam ser rompidas tão facilmente. Com um nó na garganta, foi ao banheiro, tomou uma ducha, perfumou-se, vestiu sua melhor e mais provocante roupa e saiu a rua.
           Não precisou andar muito para conseguir o primeiro freguês, foi abordada por um carro de última geração e depois de negociar o preço, Charlote entrou no carro e foram a viela mais escura da vizinhança. Depois de receber o seu pagamento, sentiu-se um pouco melhor. Quando avistava um carro, exibia-se, os carros buzinavam, alguns amaldiçoavam-na, outros no entanto, vinham satisfazer suas necessidades e pagavam por elas.
           O plano dera tão certo que todas as noites de segunda a domingo, exceto o sábado, saía as ruas para ganhar algum. Metade do dinheiro era para pagar as contas, a outra metade para investimento em seu corpo, além de Charlote, muitas outras viam fazer programa, a concorrência chegava a ser desleal. Precisava estar cada vez mais bonita e feminina para os seus clientes. Seu sonho era fazer a cirurgia de mudança de sexo, mas até lá, precisava dar um mega hear e pôr silicone nos seios.
           Ao longo do tempo em que se prostituiu, ganhou muitos presentes, inimizades e até brigas com outras garotas trans, mas a sua pior experiência foi quando um cliente além de não pagar a sua prata, a agrediu até ser hospitalizada.
           O que mais lhe incomodava enquanto estava entubada eram as notícias de jornais e dos programas jornalísticos da TV, daquelas que temos vontade de nem saber que estão acontecendo. O maníaco da vez era chamado de o “Maníaco dos Fetiches”, de acordo com a única testemunha, uma mulher que sobrevivera ao ataque, ele vestia uma roupa de couro preta e usava uma navalha.
           Quando ela teve alta, ela não deixou de fazer programas por causa disso, ao contrário, depois de sair do hospital, teve que pagar as despesas médicas e passou a fazer sexo sem camisinha, pois assim recebia mais. O risco de pegar alguma doença venérea era alto, mas estava endividada até o pescoço. Suas companheiras de ofício recomendaram estar sob as asas de um cafetão, pagavam uma comissão, mas tinham garantia de segurança nesses casos.
           Os dias transcorreram intercalando miséria e sofrimento. Ninguém mais se arriscava a ficar tão tarde da noite, apenas Charlote resistia, mesmo com todas as ressalvas do cafetão e das outras meninas. E todos as noites, saía a rua.
           Naquela noite, o movimento estava baixo, todos temiam o criminoso. Quando resolveu ir para casa, sentiu uma presença estranha, um vulto que ora ou outra se ocultava na escuridão. Quando andava, ouvia atrás de si um som rascante, como plástico se dobrando. Um cheiro encarniçado se sentia no ar, como se uma cova de um defunto apodrecido estivesse sido aberta ali na rua. O coração de Charlote ficou sobressaltada. Por duas vezes ensaiou uma corrida, mas o salto alto não ajudou. Resolveu esconder-se em um beco, a rua estava escura e a lua pálida ficou encoberta pelas nuvens nubladas. Ocultou-se atrás de uma lata de lixo e prendeu a respiração, segurou a bolsa numa posição em que pudesse se defender. Esperou minutos seguidos, seja lá o quem fosse, tinha ido embora.
           Quando ergue-se, algo frio tocou seus ombros, virou-se batendo com a bolsa no agressor, mas foi ferida no antebraço. E para seu azar era ele, o Maníaco dos Fetiches. Dos pés à cabeça, ele usava uma roupa de couro negro polida, pelas frestas da roupa, via-se um corpo em carne-viva, exalando um fedor pútrido, seus olhos, boca e nariz despejavam um muco purulento. Na mão, ele portava uma navalha. Charlote imaginou se aquilo era humano? Mas seu medo a levou reagir instintivamente. Tentou revidar, mas a dor a fez vacilar. O golpe errou o oponente e acertou a parede, Charlote amaldiçoou o infeliz, mas quando girou o corpo, a navalha acertou seu pescoço. A veia esguichou sangue manchando a lata de lixo. Charlote caiu, e enquanto a vida se esvaia lentamente, e em silêncio, viu seu corpo ser mutilado por aquele monstro. Quando finalmente expirou, o encourado desapareceu no ar deixando uma poça de sangue no chão. Charlote deixou a vida e se tonou um número frio nas estatísticas policiais.
  • FUI TESTEMUNHA DE UMA CHACINA

    Lembro claramente daqueles olhos a me encarar, brilhantes e azuis como o céu, frios de fazer tremer a alma. A última coisa que pensei foi: “Essa será minha última respiração”. Não aconteceu comigo como vejo os outros dizerem, que a vida passa como um filme na hora da morte, não, comigo foi um medo e uma ansiedade sem fim, podia ver refletido nos olhos dos outros dois o mesmo medo, antes daquele barulho ensurdecedor e depois a morte.
         Não sei o que foi pior testemunhar, se o medo antecipado ou a própria morte refletida em seus olhos sem vida.
         Ele era o rapaz mais bonito da minha rua, sempre via as moças suspirarem e falarem dele, mas nunca dei a devida atenção ao que diziam. Chamavam de “boy”, sempre bem vestido e educado, cumprimentava a todos com cortesia de uma pessoa simpática. Sua casa tinha muros altos, não se via como era por dentro. Muito discreto e sua família era do mesmo jeito, eram tão artificiais quanto ele, eu tinha a impressão que apenas representavam, era intuição.
         Como sempre trabalhava não percebia nada de estranho naquelas pessoas, até aquele dia. Jesus como foi ruim!
        Saí do trabalho tarde demais naquele dia, corri quanto pude para chegar a tempo na escola, mas não consegui, o portão estava fechado e não me deixaram entrar. “Merda, atrasada novamente”, pensei. Resolvi ir andando para casa, estava cansada e pensativa e por isso me distraí, logo estranhei o silêncio da rua, não era comum aquilo na periferia, algo não ia bem. Fiquei tensa e todos os meus instintos em alerta. Foi aí que aconteceu.
         Os três meninos vieram correndo em minha direção, os três com armas na mão. Vi o desespero deles e soube naquele instante que eles fugiam da morte. Conhecia os meninos desde sempre, vendiam na  esquina e viviam do corre.
         Naquele momento não consegui reagir, não sentia minhas pernas era como se elas estivessem enraizadas ao chão. Queria correr, mas estava pesada demais. Segundos de decisões, não quero morrer preciso reagir, era a voz em minha cabeça. Olhei para o lado e busquei uma saída, vi um beco que tinha um escadão deserto e meio destruído, com muito esforço subi para me esconder, nesse beco havia uma casa em construção, assim que a vi soltei os livros e entrei. Corri até os fundos e me abaixei no cantinho, eu tremia, tremia muito. Não demorou e logo ouvi tiros, passos apressados e gritos, não queria ver nem ouvir nada, mas meu corpo não obedecia minha mente e tive que assistir a tudo.
        Dois dos meninos já desarmados e sangrando entraram na construção, um chorava e o outro veio andando de costas até esbarrar em mim, esse menino virou e me olhou, pude ver sua alma gritando através de seus olhos, secos e desesperados diziam para mim que iríamos morrer. Ouvi o tiro e ele olhando para mim caiu, continuou me encarando derrotado, a morte o levou.
        De muito longe ouvi uma voz que falava zangado, aos poucos virei minha cabeça para aquele som que dizia: “Ah, não acredito. Veja o que você fez seu verme, sujou todo o rosto da menina”.
         Quando olhei naquela direção veio o reconhecimento, vi os olhos azuis do rapaz mais lindo da rua, ele se abaixou perto de mim e me pediu desculpas. Pensei: ele vai me matar agora. De repente um barulho me chamou a atenção, o outro menino que chorava agora estava descalço e se arrastava sangrando, porém ele apontava uma arma para mim, não entendi mais nada, por que eu?
         O rapaz bonito levantou-se e olhou para o menino ensanguentado, disse: “Larga a arma seu lixo, sabe que vou te matar”. Em resposta o menino me olhou raivoso, senti o ódio em suas palavras: “Essa cadela assistiu a tudo e nem pra gritar presta”, depois o tiro, depois o líquido quente descer no meu rosto, depois o frio. Quando olhei para o rapaz bonito, ele estava em cima do menino caído, ouvi um tiro, dois, três, perdi a conta quando tudo apagou. Mergulhada na escuridão ouvi uma voz distante que dizia para que eu não morresse, “morre não mocinha, você tem que estudar e sair daqui”....daí mais nada, acabou.
         Quando acordei estava no hospital, pois é não morri. Nem eu mesma acredito. Não sabia o que estava fazendo ali, aos poucos comecei a recordar, o medo de tudo voltando, parecia que tinha tido um pesadelo, não poderia ter sido real, era macabro demais. Porém ao perceber que havia policiais em meu quarto, caí na real, aconteceu sim, comecei um choro compulsivo. Eles me disseram para ficar calma, haviam me encontrado caída com meus livros naquela casa em construção, juntamente com três mortos, um na entrada e dois no mesmo cômodo que eu. Tinham recebido uma ligação anônima informando um tiroteio com uma moça sobrevivente. De imediato queriam saber o que eu lembrava, mas eu estava em choque. Os médicos avisaram que eu não tinha condições naquele momento de falar.
        O medo cresceu ao me dar conta que eu era a principal testemunha de um crime, uma pessoa marcada para morrer. Por que não morri? Era algo que eu me perguntava todos os dias, nunca entendi essa maldita sorte. Levei um tiro na cabeça e não morri, ele passou de raspão, não afetou em nada, sobrevivi.
        Quando voltei para casa minha tia disse que todos os dias, aparecia um rapaz muito educado perguntando por mim. O medo voltou rapidamente e fiquei pálida. Lembrei-me daqueles olhos azuis que me encararam na hora da minha morte. Não saí de casa, fiquei isolada de tudo, repetia sempre que não me lembrava de nada, a polícia insistia, foi pior que morrer.
         Logo começaram a ligar em casa, ameaçavam, queriam saber quem matou os meninos do corre, não era a polícia, era o crime que queria cobrar vingança. Eu estava sendo pressionada de todos os lados, não suportava mais.
        Passando os dias fui tentando me acalmar, não tinha o que fazer, já estava feito. Certo dia minha tia conversando comigo, pediu que eu fosse aquela casa em construção, tentar recordar, não queria, mas de tanta pressão fui. Quando vi já estava dentro daquela casa, fui ficando sem ar, minhas pernas ficaram moles e veio o medo, medo que congela. Senti cansaço, queria correr dali, mas não pude. Ouvia vozes falando comigo, me perguntando coisas, não falava, só ouvia e olhava aquele lugar muda, foi quando ao me virar para sair o vi. Em pé no canto usando uniforme e capuz, estavam àqueles olhos azuis, não eram outros olhos, reconheci o gelo, e um aviso mudo, não gritei apenas caí numa escuridão.
         Como um fantasma ele me seguia, podia sentir sua presença em qualquer local que eu estivesse, aparecia do nada e eu sempre fugia, eu sabia que uma palavra errada e eu morreria. Não havia nada que eu pudesse fazer, ele tinha um uniforme.
         Tentei recomeçar minha vida, voltei à escola, mas nada estava igual, perdi o interesse e não conseguia me concentrar em nada, na hora da saída foi o mais difícil, o medo me consumia. Depois de uma semana decidi que não iria mais estudar, precisava fugir daquilo tudo, estava sufocada demais. Num impulso fui até a esquina comprar com os meninos. Estava lá ansiosa e apreensiva, nunca pensei em fazer nada disso, mas o medo, a angústia e o desespero faz a gente agir como louco.
         De repente parou um carro, alguns uniformes saíram de lá, gelei quando reconheci quem estava ali, o assassino. Os meninos da esquina correram, eu não pude, não tive chance. Ele me pegou pelo braço com mais dois, me colocaram dentro daquele carro, eu tremia sem parar, só pensava que agora não tinha jeito, eu ia morrer. Porém com o medo da morte também veio à libertação, porque assim como tinha medo de  morrer também passei a desejar a morte e assim me libertar daquilo que vivia, dizia a mim mesma: “não vou mais ter que esperar, agora acabou”.
        Não, não, não morri.
         Depois de ouvir por duas horas vozes e vozes, fui colocada em um ônibus para algum lugar, com a sentença de sumir e viver, fui embora com uma caixa de segredos e motivos.
         Nunca mais voltei.

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