1
Era uma bela quinta feira, embora a chuva e o frio tenham castigado a maior parte da manhã. Gosto desse clima, ainda mais porque posso pagar um uber para casa e não preciso me molhar demais. Afinal, passei o dia inteiro, em minha sala, rodeado de incompetentes. Enfim, parece que tudo vai melhorar daqui para frente, sem preocupações na empresa. Amanhã é feriado, acho que vou passar o dia na piscina. Talvez ligue para Derek me buscar para bebermos algo antes de ir.
Chego em casa depois das nove da noite, foi um dia pesado de trabalho, relatórios atrasados, prazos perdidos, auditoria no meu pé, prefiro não lembrar disso agora. Jantei uma lasanha congelada, sem paciência para cozinhar nada. Apenas fiz questão de me servir uma taça de vinho tinto e liguei a televisão. Passava “Os Simpsons”, aquele pessoal amarelo sempre me faz rir. Uma das melhores formas de se encerrar uma noite depois de um dia estressante.
Depois disso, vou para meu banheiro, é pequeno mas agradável, o piso de azulejo preto dá um belo realce com as paredes brancas. A privada é preta, também, acho que dá um visual moderno, e fica ao lado do boxe com o chuveiro. Em frente a tudo isso está a pia que é de vidro transparente. As gavetas e armários são brancos e pretos, mas isso não importa, foi um arquiteto que projetou tudo, não perdi meu tempo com aquilo, apenas exigi a pia transparente com a mesa e tudo. Queria uma daquelas torneiras que acendem luz, só que meu orçamento da época era apertado e, com o passar do tempo, essa vontade diminuiu, embora não tenha sumido.
Finalmente tiro o terno, jogo-o no chão do banheiro mesmo (semana que vem levo ao tintureiro, não me importo) e tomo uma ducha quente. Deve ter durado uns 40 minutos, precisava muito relaxar. Escovo os dentes, pego o terno do chão e o levo até a área de serviço para deixar em cima da máquina de lavar.
Estou exausto, então é melhor dormir logo, checo se as portas estão trancadas, afinal, um apartamento pode ser seguro, mas “é melhor prevenir do que remediar”, já dizia meu avô. Entro em meu quarto, aquela cama é meu orgulho, uma king size com um cobertor preto de um lado e branco do outro, com pêlo de ovelha na lado branco e aveludado do outro. Tenho quatro travesseiros ali, mas três sempre acabam no chão. Penduro minha toalha e pego um moletom velho que sempre uso para dormir, é hora de fechar os olhos e encerrar o dia, finalmente. Boa noite a todos e não me esperem cedo amanhã.
2
Acordo e olho para o relógio e vejo que já são três da manhã. É uma madrugada fria e silenciosa, sem nenhuma alma na rua, tenho certeza de que é possível ouvir grilos. Essa é a vantagem de um bairro afastado e sem muitos vizinhos, o silêncio cai muito bem. Uma ou outra moto passam na rua, sempre tem um imbecil que estoura o escapamento, apenas para fazer barulho, de resto provavelmente são esses entregadores atendendo aos pedidos dos bêbados e drogados da madrugada, voltando de suas baladas ou o inferno que seja, bancados por papai e mamãe, provavelmente nem trabalham os filhos da puta.
Maldita insônia!
Tudo bem, não tem problema, amanhã é feriado e posso dormir até mais tarde, na pior das hipóteses, cancelo a piscina e apenas bebo algumas cervejas com Derek.
Levanto de minha cama, o lado direito se mantém vazio há muito tempo, desde que Stephanie pegou suas coisas e foi embora, deve ter me achado insuportável, mas não sinto falta dela, do sexo todo dia sim (então por que ainda tenho a foto dela no nosso quarto? Digo, no MEU quarto).
O laptop está desligado, não estou com paciência de ligar e a escrivaninha é longe da cama (dois passos é muito longe no meu estado), a sonolência me domina por completo (mesmo sem conseguir dormir), deixa a sensação de que o mundo ao meu redor se move mais devagar. Melhor ir para sala assistir alguma besteira até pegar no sono. O caminho é curto, apenas um pequeno corredor, de alguma maneira parece menor do que o trajeto até a escrivaninha (assuma que se ligar o laptop irá atrás de Stephanie).
Sento na minha poltrona, estico meus pés e puxo uma pequena manta, que sempre mantenho no sofá (mesmo no verão podemos ter noites frias, certo?). A tv de 58 polegadas acoplada à parede é outro orgulho que comprei com meu dinheiro. Sem Stephanie aqui, agora é tudo meu nessa casa, apenas a tv a cabo que não é.
Neste horário passam apenas reprises, nem o canal pornô está interessante. Porra, quero apenas pegar no sono. Mudando de canais acho a gravação de algum talk show. É a entrevista de um jogador de futebol qualquer que me arranca algumas risadas com algumas histórias bestas. Que vida fácil esses caras têm, ganham em dez anos mais do que ganharei em 5 vidas e mesmo assim sempre querem mais em seus contratos.
Dou duas piscadas, bem demoradas. Passei o dia todo trabalhando naquela merda de empresa, só queria que meu chefe morresse, aquele gordo, careca, filho de uma puta, ou eu poderia comer a mulher dele, tenho certeza que metade da empresa já passou por ali. É...uma... bela... esposa... trofé....
Na terceira piscada meus olhos não abrem.
Fui dominado pelo cansaço, senti o relaxamento por todo o corpo, a sensação era boa demais, aquela manta que peguei no voo de volta de Paris era muito confortável e aconchegante. Esses pequenos cobertores de avião são sempre muito bons. Mas se vou dormir é melhor voltar para cama.
Abro os olhos e vejo que as paredes sangram ao meu redor, o chão está coberto de carne decomposta, com vermes se mexendo e moscas voando, além de ossos quebrados espalhados por toda a parte. A cena me causa um frio no estômago, meus olhos estão arregalados, o coração pulsando acelerado e o frio domina meus músculos.
Um pequeno vulto branco escorregou da janela para o além, mas era possível ver algo escrito no orvalho, “estou chegando...”. O horror daquela imagem me fez cair da cadeira, fecho os olhos com a dor do impacto. Quando os abro, o cômodo está intocado, não havia nem orvalho na janela. Devo ter sonhado e não me dei conta.
(Deus, que sonho horrível.)
Essa fresta na janela tira todo o ar quente da sala. Porcaria de brisa fria vai acabar com a minha saúde. Aos poucos vou me aproximando da janela, para fechá-la, ainda enrolado em minha manta. Quando o faço, reparo em um pequeno rastro, quase imperceptível, de suor formando a frase “estou chegando...”.
Que porra é essa? Quem escreveu isso aí? Devo ter visto acordado e acabei sonhando, sim, faz sentido. Mas quem conseguiria escrever isso na janela do nono andar? Estico meu braço, com a manta, e esfrego ali até a frase sumir. Bosta, perdi o sono agora. Vou dar uma mijada.
O alívio no banheiro é muito bom, deve ter saído uns dois litros de mim, como pode ser? Acho que não bebi dois litros de água o dia todo. É um bom ponto, preciso me hidratar mais, só que no frio é difícil. Não sinto tanta sede. Acho que é mais uma daquelas promessas, que farei no amanhã que nunca chega.
Lavo as mãos com água quente, chega a sair fumaça da torneira, cara como eu amo essa pia transparente, olha ela toda embaçada. Foi muito cara, mas valeu cada centavo e ela ainda acende umas luzes psicodélicas.
Fecho a torneira e enxugo a mão, é quando sinto uma sensação estranha no fundo da garganta, começou como uma tosse leve e, logo, parecia que um pequeno grão de arroz entrou no buraco errado. Continuo tossindo e a sensação não passa, tusso mais alto e mais forte. Tento escarrar o que está em minha garganta e vou perdendo o fôlego aos poucos, arranho minha garganta forte ao ponto de minhas unhas ficarem vermelhas.
Caio no chão e bato minha cabeça na parede de azulejo, o barulho é oco, não me importo, forço todo o meu pulmão naquela maldita tosse e é quando finalmente sai, aquela coisinha branca...
Isso é um dente?
Passo a língua dentro de minha boca para ver se não tenho nenhum faltando. Não tenho. Como isso foi parar dentro de mim?
Olho para a pia e na condensação no vidro está escrito “estou chegando...”.
A crise de tosse me ataca de novo, e mais forte, sinto vontade de vomitar, foi quando as primeiras gotas de sangue saíram de minha boca. O pânico me domina
(o que diabos está acontecendo comigo?),
a tosse segue incessante e não consigo me levantar. Com esforço fico de joelhos sinto como se todo o meu estômago estivesse prestes a vir para fora. Faço uma concha com as duas mãos. Então, de minha boca saem inúmeros dentes, sangue e pedras de gelo.
(Incrivelmente, o que mais me chocou foram as pedras de gelo.)
Contudo, sinto-me melhor e consigo me levantar, aquilo que não escorreu por entre meus dedos, joguei na privada e dei descarga. Fui até a pia novamente, apaguei aquela mensagem, lavei as mãos e molhei o rosto.
O que está acontecendo comigo? Será que ainda estou sonhando? Vou acordar na sala de novo?
Foi então que olhei no espelho e, atrás de mim, através da porta, consegui um vislumbre do corredor e aquele mesmo vulto branco apareceu. Virei-me no susto.
BLAM!
A porta bateu.
(Mas que porra foi essa?)
Meu coração parou por um segundo, senti o forro da minha calça esquentar e umedecer. Em meu desespero agarrei a maçaneta, estava gelada, como nada que já havia sentido antes. Minha mão queimou e a retirei rapidamente, apenas para ver que um pedaço de pele que ficou para trás, naquele metal.
Senti um ardor onde a pele se desprendeu, olhei para minha mão e vi a ponta do anelar escurecer, até a primeira dobra.
Então começou a sensação de dor...
A pior dor que já senti na vida...
Aquela dor acompanhava o rastro negro e era excruciante. Se alastrava rapidamente e, em instantes, chegou na segunda dobra. Procurei alguma tesoura ou algo do tipo. Não achei nada que pudesse me ajudar.
(Meu Deus não acredito que vou fazer isso.)
Coloquei o anelar inteiro na boca, fechei os dentes em volta dele e apertei com força. Soltei um grito abafado, a dor aumentava. Em meu desespero comecei a abrir e fechar a boca mais rápido e mais forte, os gritos de horror consumiam minha alma e usavam todo o meu pulmão. A dor intensificava cada vez mais, foi quando senti um pequeno peso em minha língua e reparei no sangue morno escorrendo pelo meu queijo.
As lágrimas escorriam e encontravam o catarro que saia de seu nariz. Cuspi aquele dedo preto no chão e vi o líquido nefasto sair dele. Não tive tempo de ir até a privada, não consegui nem me levantar, apenas vomitei no chão a minha frente. Foi quando apaguei.
Ao recobrar a consciência, por um breve momento, imaginei ter sonhado tudo aquilo. Foquei meus olhos e reconheci aquele maldito dedo preto no chão. O odor parecia pior do que todo o sofrimento que senti até então. Com cuidado peguei aquela membro macabro, joguei na privada e dei descarga. Foi quando fechei os olhos e não contive as lágrimas incessantes.
O vidro do boxe estourou e me arremessou contra a parede. Bati meu rosto e vi o sangue escorrendo por meu olho direito. Senti diversos cortes e tive medo de olhar, para saber minha condição de fato. Tudo que queria era sair dali, nada mais. Nunca fiz coisa nenhuma para merecer isso. Retirei minha pantufa e bati com ela na maçaneta até a porta abrir. Fiquei com medo de mais dor.
Cada passo era difícil, o rastro de sangue escorrendo de meus cortes e, principalmente, de meu dedo decepado, diziam para eu desistir. O esforço que fiz era tremendo, contudo, consegui chegar à porta do quarto, onde poderia pegar meu celular para ligar para alguém. Sei que ninguém usa o anelar como impressão digital para desbloqueio, mas o pensamento me fez cair sentado gargalhando. Acho que minha sanidade se esvaia.
Fiquei de pé novamente e entrei no quarto, quando olhei para minha cama, vi diversas marcas de mãos em sangue ali, estavam espalhadas no cobertor, nas paredes, na escrivaninha, nas cortinas, no armário e todas tinham o anelar faltando.
(Eu fiz isso? É impossível, acabei de sair da merda do banheiro.)
Não precisei me preocupar em procurar o celular, ele estava no chão, todo despedaçado.
Foi então que olhei para o teto e vi aquela mensagem escrita em sangue “ESTOU CHEGANDO...”
Foda-se essa merda, eu vou embora daqui...
A dor me consumia e mal conseguia andar. Consegui passar pelo corredor, a custo de muito empenho, e fui até a porta de saída de meu apartamento. Estiquei minha mão, com todas as minhas forças, e abaixei a maçaneta. Já conseguia sentir o ar frio da rua e um breve sorriso invadiu meu rosto.
Quando puxei a porta, ela não veio.
Claro, está trancada, eu chequei isso antes de dormir. Peguei a chave que deixo pendurada por ali. Minha mão tremia de desespero e pavor. Tive que usar as duas para enfiar aquela porcaria no buraco, mas consegui.
Giro a chave e ouço o click da liberdade.
Puxei a porta.
É então que vejo...
Ali parada...
Aquela mulher de branco com seus dentes pontiagudos em um sorriso maléfico.