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Crime,

  • Dois. Capítulo cinco de seis

    Capitulo cinco
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       A lua já esta cansada e tende a sair de sena, ou seja, a manhã já está pra surgir. Dois homens levam sacolas cheias de dinheiro em saída da mansão ao qual estão ao chegar ao muro Coutinho insisti:
       -Ainda podemos desistir disto!
       -E desistir de nossos empregos? Zé comentou e ouviu:
       -Este dinheiro é do povo, ou seja, é até também nosso, devemos decidir o que fazer e não seguir ordens sendo estas erradas.
       -O certo e fazer nosso trabalho esquece esta ideia e talvez eles nem mereçam esta fortuna.
       -Nós pegamos a conversa das mulheres pela metade, talvez tenhamos entendido errado.
       Zé parou o que estava fazendo que era mexer a sacola de um a outro lado preparando para jogá-la por sobre o muro e suspirou, refletiu e disse:
       -Vamos pensar, nós fomos contratados para fazer esta entrega, não é questão de eles merecerem ou não, é nosso trabalho, se não o perderemos!
       -Eu sei, mas tudo está me fazendo pensar que o certo seja deixar este dinheiro aqui com estes ex milionários. Olhando para Zé ele viu que não o convenceria e resolveu aceitar: - Tudo bem!
       -Eu preciso de meu emprego, vamos! Zé decidiu pelos dois e jogou o dinheiro por cima do muro. Coutinho subiu no muro e só quando desceu que percebeu que um mendigo os ouvia e estava agarrado ao dinheiro, o muro não era fechado e se via o outro lado, Coutinho voltou a falar:
       -Podemos deixar esta metade do dinheiro aí e esta outra para este necessitado!
    Zé subiu no muro depois de jogar a segunda sacola e disse:
       -Quem foi que inventou de entregar um dinheiro as escondidas e o colocou em sacolas transparentes? E você deixe de falar besteiras e pegue o dinheiro que aquele homem está tentando levar. O mendigo fazia esforço, mas não conseguia correr, até que Coutinho o abordou dizendo que o dinheiro era dele e ouviu:
       -Ouvi vocês discutindo que o dinheiro é do povo! Reclamou, mas Zé com moral o expulsou a gritos.
       O sol se fez belo e Zé e Coutinho entraram no carro e seguiram rumo a cumprir seu dever! Eles não se preocuparam com o mendigo ter visto o dinheiro, pois o que seguiu foi:
       Uma repórter entrevista o mendigo:
       -Recebemos deste homem a noticia de que nesta mansão estão roubando dinheiro que é do povo. Ela coloca o microfone para o mendigo falar:
       -Eu vi dois homens discutirem sobre o dinheiro que levavam em duas sacolas, era muito dinheiro! A repórter o interrompeu falando:
       -O dono desta mansão nos falou e as palavras deles foram que iria colocar a mansão a venda, pois está falido! O mendigo diz ter encontrado sacolas recheadas de dinheiro. O mendigo quis falar mais, porem nada foi audível além de:
       -O dinheiro! Em gritos e a repórter revelou concluindo a reportagem regional:
       -Esta foi a historia de um mendigo!
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    Veja a seguir o capítulo seis (Final).
  • Dois. Capítulo dois de seis

    Capitulo dois
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         Os dois entraram na mansão, o jardim era imenso, com muitas árvores. Até chegar a casa foi um longo caminho, pois entraram se escondendo de planta a planta.
         -Após o crepúsculo rondaremos a casa sem sermos vistos!
         -Concordo que ir agora seria entregar o jogo. Coutinho estava mais com medo que Zé, ou menos seguro. - Porque será que eles roubaram o dinheiro, e como souberam?
        -Só sei que o pegaremos de volta e entregaremos no prazo! O nariz de Zé estava empinado quando proferiu isto.
    Pararam na árvore mais próxima do casarão e por ali ficaram a tagarelar de vez em quando.
         -Aí minha mulher! Coutinho começou a repetir e desta vez isto apoquentou Zé que passou a perceber tal coisa e não parava de repetir até que Zé perguntou:
         -Porque tu tanto pensas em sua mulher?
        -É que se perdermos o emprego minha mulher vai se sentir muito mal, tanto que ela desejou que eu me empregasse e tivéssemos um pingo de sossego. Nós não vamos perder nossos empregos era o que Zé acreditava e o disse.
         A noite caiu os dois desceram da árvore e de fininho rondaram a casa até pararem em uma das janelas onde viam o casal de ladrões e após ouvi-los por um tempo Coutinho soltou estas palavras:
         -O faxineiro é o ladrão!
       -O estranho é ele morar nesta mansão, não acha? Zé referiu a pergunta a Coutinho e foi como se fosse para os ladrões, pois a conversa deles chegou à resposta para este assunto:
         -Finalmente não precisarei trabalhar como um escravo, dês de que perdi o meu emprego milionário trabalhei como um cachorro para não termos de vender esta mansão, tivemos que despedir vários empregados, mas a sorte nos bateu! Disse o ladrão, na conversa que parecia ser para sua mulher, ou seja, eles eram realmente um casal e ex milionários.
       -Isto explica porque não há vigias neste lugar, isto facilita nosso trabalho, temos que encontrar onde eles guardaram o dinheiro! Ficaram a escutá-los por bastante tempo, mas de nada serviu para seus propósitos.
         -Foi como o planejado, e olha que não tivemos muito tempo. A mulher comentou e ouviu:
       -Sim o dinheiro é nosso! Os seguranças rondaram a casa, mas ainda com cuidado, pois poderia sim ter alguém de olho por ali.
       -Sairemos daqui como vimos sem sermos vistos. Zé estava certo, devido este ser seu trabalho, ouviu bem do chefe. Pegariam o dinheiro de volta e o entregariam no prazo. Tinham tempo, conheceram o lugar de cabo a rabo e ainda na noite voltaram à árvore mais próxima do casarão e Zé dizia-se cansado, exausto, tinha que tirar um sono foi vencido pelo cansaço. Coisa que os dois fizeram e logo o sol nasceu. Depois Zé acordou ouvindo o bom dia de Coutinho que também disse apontando para baixo:
         -Olha eles colocaram uma mesa, vão tomar café ao ar livre, vê só que chique eles são!
         -Acordou faz tempo, porque não me acordou?
         -É que cai daqui e a pancada doeu. Coutinho tinha a pouco caído da árvore.
       -Alguém te viu? Zé quis saber assustado e o amigo o confortou dizendo que ninguém o notou. Com o alivio Zé comentou:
         -Bom, daqui podemos ouvi-los e assim podemos descobrir onde esta o dinheiro.
       Os ladrões chegaram, estavam sendo servidos por uma empregada, esta talvez tivesse trabalhando para eles sem receber, seria alguém de confiança Zé pensou e continuou a assistir com muito interesse.
         -Com este dinheiro vamos poder voltar a contratar pessoas e criar um meio de renda, que nos mantenha nas condições ao qual estamos acostumados.
         -E em fim poderemos ter nosso filho, tanto, tanto desejado. A mulher proferiu e ao repetir a palavra que repetiu isto emocionou Coutinho, os dois agora sabiam que aqueles dois agora miseráveis tinham uma historia e uma das boas.
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    Veja a seguir o capítulo três.
  • Dois. Capítulo quatro de seis

    Capitulo quatro
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         Zé e Coutinho desceram da árvore, Coutinho a mexer na coluna com suas dores. Os dois seguiram para a cozinha, onde se depararam com duas mulheres que trabalham no casarão onde estavam os dois ouviram as duas dizerem que não poderiam perder o emprego e isto fez Coutinho voltar a dizer que eles deveriam deixar o dinheiro, esquecer aquela entrega e sendo assim esquecer também seus devidos empregos.
         -Talvez você esteja certo! Por fim Zé estava aceitando que deveriam deixar o dinheiro, os dois comeram o quanto aguentaram, se saciaram depois que as empregadas saíram. Porem quando eles iam se retirando a dona do casarão chegou e os dois seguranças tiveram que se esconder debaixo da mesa, pensaram rápido e foi o que fizeram. A dona reclamou:
         -Cadê minha torta? Tinha um pouco ainda e eu estava louca por ela. Estas empregadas acham que ainda somos ricos, e se aproveitam como antes, não parecem ver que as coisas estão mudando, ainda bem que tudo vai voltar ao normal. Ela suspirou e deixou a cozinha, coisa que tinha alguém esperando ela fazer e os dois saíram dali, porem não voltaram para árvore Zé disse decidido:
         -Vamos deixar o dinheiro para eles e esquecer nossos empregos, vamos para casa! Coutinho deu um sorriso e eles caminhavam para sair foi então que Zé parou:
         -O que ouve, não diga que já mudou de ideia?
         -Sim, eu preciso de meu emprego! Ele respondeu e os dois voltaram à árvore, Coutinho aceitando e entendendo, de vez por vez ele também acredita que o certo é cumprirem o seu dever. Nisto eles viram uma mulher com duas crianças entrarem pelo portão e seguirem em direção ao casarão, onde a dona da casa estava e as duas seguiram para a sombra de uma árvore ao qual tinha dois balanços, Zé e Coutinho de fininho foram de planta a planta para escutá-las e subiram sem serem percebidos no pé em que elas estavam e ouviram a conversa pela metade:
         -Me recebendo em casa, tendo consideração com a família que é pobre, sendo simpática, o que a pobreza não faz com as pessoas? A recém chegada dizia e ouviu:
         -Não é isto irmã você sabe que meu marido não vai com sua cara.
         -Não venha com esta você também quando com dinheiro em mãos não quer saber de mais ninguém além de seu marido.
         -Mudando de assunto, como tens passado? As crianças chegaram correndo e subiram no colo delas e a conversa fluiu até que se despediram por ali. Zé comentou irritado:
         -São ricos e não ajudam os familiares, ao invés disto se distanciam, está decidido vamos pegar o dinheiro e sair logo daqui que a noite venha! Coutinho apenas concordou.
         A lua brilha intensamente e os dois intrusos na mansão vão tentar cumprir seus papeis, porem eles ficam a esperar os donos do casarão ir dormir e isto demora, eles conversam coisa que os dois desta vez não conseguem escutar, os veem assistir filmes juntos, é uma demora.
         Até que o casal segue para o quarto e os seguranças conseguem entrar:
         -Se este é o quarto do casal então logo ao lado só pode ser o do futuro filho! E Zé tem razão ou sorte e se deparam com a fortuna.
         -É o dinheiro! Disse Coutinho contente e os dois agarraram as sacolas, como um abraço forte e comovente e um sorriso radiante. Ouve um barulho, Zé olha e é o ladrão indo a cozinha, os dois esperam que ele volte para o quarto e isto acontece sem que suspeitas sobre o que está acontecendo surjam.
         Os seguranças saem por onde entraram e vão em direção à saída da mansão.
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    rio165 mansion for sale in jardim botanico 17Veja a seguir o capítulo cinco.
  • Dois. Capítulo seis de seis

    Capitulo seis
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         Vocês devem estar se perguntando por que Zé precisa tanto de seu emprego, a resposta é que este conto é baseado em um sonho que eu tive e neste sonho por algum motivo eu precisava de meu emprego não sei por que razão, sendo assim esta a resposta.
         Eles fazem a entrega antes do combinado e curtem o tempo que lhes restou como um bom dia de férias.


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         Fim.


         Este é o final deste conto. Você que acompanhou, leu todo, deixe seu comentário. Espero que tenham gostado da leitura, abraço, até o próximo texto. Podem me adicionar como amigo e continuar lendo meus escritos.
  • Dois. Capítulo um de seis

    Capitulo um
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         Tudo começa com um policial chefe dando ordens a dois seguranças, estes teriam que entregar duas imensas sacolas com dinheiro em determinado lugar, e dizia ele:
         -Ninguém pode saber deste carregamento, só quem sabe somos eu, meu chefe, vocês dois e o futuro receptor, caso alguém saiba ou este dinheiro não for entregue em três dias vocês serão demitidos!
         Os dois deram o positivo, tudo ocorreria bem. Saíram e os dois conversavam:
         -Vamos entregar este dinheiro logo hoje, assim teremos os próximos dias como férias!
         -Muito bom, mas não acha que deveríamos ter planos para entregar com segurança?
         -Ninguém sabe, vai ser rápido e fácil, garanto! Eles seguiram para seus carros, um disse que seguiria o outro fazendo a escolta.
         O caminho era longo de certo tinha seus pontos mais perigosos, onde se alguém quisesse roubá-los por ali tentariam. De dentro de seu carro Zé seguia o carro de Coutinho onde estava o dinheiro. O primeiro susto, um carro quebrado no caminho, parecia suspeito. Nisso Zé ultrapassou o amigo e parou o carro fingindo ir ajudar a quem estava a concertar o carro. Nada mais suspeito e ele seguiu após ver Coutinho acelerar ao passar. Depois desse susto eles relaxaram porem na hora errada.
         Um carro fechou Coutinho e deste desceu um homem e uma mulher com os rostos cobertos por talhos de panos. Coutinho foi rendido e pegaram sua arma, jogaram as chaves do carro longe e o homem com esforço colocou as sacolas no carro enquanto a mulher mantinha Coutinho em sua mira.
         -Maravilha! Disse o homem quando, pois os olhos no dinheiro e com este já em seu carro, a mulher entrou e os dois partiram estrada acima.
         Zé apenas ficou de olho, pois nada podia fazer realmente eles deveriam ter armado um plano de entrega. Mas não valia nada chorar o leite derramado. Aproximou-se de Coutinho e fez sinal para que o tal entrasse.
         -Porque você não fez nada, não atirou?
         -Esqueceu que ninguém pode saber deste dinheiro, que escândalo seria um tiroteio, nem tudo está perdido, eles não sabiam que eu te seguia e sendo assim basta não perdê-los de vista! E acelerou seguindo os bandidos. Curva vai curva vem e o dinheiro se afastava e seus empregos com ele, porem bastava acelerar e lá estavam os olhos nos bandidos.
        -Aí minha mulher! Repetia Coutinho por toda perseguição, Zé não dava atenção. Logo o carro diminuiu a velocidade e entrou numa mansão.
         -Nossa que casarão! Disse Coutinho ao ver a mansão. Eles viram o carro sumir no jardim da entrada. Estacionaram e deram de certo que pulariam o muro.
         -Vamos! Disse Zé e Coutinho reclamou das dores nas costas porem eles dois pularam o grande muro, coisa que foi fácil de fazer e não viram seguranças por nenhum lado:
         -Temos que chegar a casa! Zé logo observou os vastos e muitos pés de sabe-se lá o que estes que daria para eles subirem e não serem percebidos. Foram de uma a uma árvore, subiam e desciam, avistaram o carro e os ladrões entrarem na casa. Deram um tempo na árvore:
         -Vamos observar e agir na hora certa!
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         Veja a seguir o capitulo dois."
  • Dois. Sinopse

    Sinopse
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     Dois seguranças são selecionados para fazer uma entrega sigilosa de uma grande quantia em dinheiro. Eles são roubados e agora terão que recuperar o dinheiro e assim fazer a entrega no prazo devido e sem que ninguém fique sabendo sobre o dinheiro além dos envolvidos.
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     Este conto já está completo no meu perfil, basta clicar no meu perfil e ler os seis capítulos completos.
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     Espero que gostem, boa leitura.
  • ÉBRIO

    A penumbra da noite perpassava a janela de vidro e lançava a luz do luar sobre minha fisionomia, outrora radiante, hoje decadente. Os goles da bebida desciam rasgando minha garganta. No início a substância me causava trejeito e um leve reviramento no estômago, mas hoje ela é pra mim o que a água é pra uma pessoa “normal”.
                Esse álcool que agora rasga minha garganta em fervoroso prazer já destruiu minha vida. Essa bebida demoníaca; levou-me a ser abandonado por minha família, levou-me a ser uma vergonha aos meus filhos, levou-me a ser o que sou hoje; um homem de meia idade, decrépito, praticamente sem fígado e quase sem nenhuma razão pra viver.
                Encontro-me hoje jogado em minha velha poltrona, e ao meu lado minha companheira traiçoeira, esse veneno no qual viciei. É comum em noites assim minha cabeça rodopiar em reflexões… “Por que você ainda está vivendo? O abandono de todos que você amava não é o suficiente para você perder a razão da existência?” A voz em minha cabeça dizia. Era uma voz rouca, eu presumo que advinda da bebida.
                Estendo a mão em busca do litro, mas eis que para minha completa estupefação vejo uma sombra passar na parede. Um calafrio percorre meu corpo e num espasmo causado pelo susto acabo derrubando o litro. O vidro se estilhaça em mil pedacinhos, tal qual minha vida se estilhaçou depois do vício.
                Pragas ecoaram de meus lábios. Me levantei e fui pegar uma outra garrafa. O pavor que a sombra me causou foi se dispersando aos poucos. Quando volto a poltrona e tomo um grande gole vejo novamente a sombra. O pânico se apossa de meu corpo, fico paralisado. A sombra começa a ganhar forma, e diante dos meus olhos ela se transforma em… meu pai! Pisquei várias vezes atônito. Pensava que poderia ser uma ilusão, um sonho, já estava a dois dias sem pregar os olhos, sempre que sentia sono cheirava um pouco de um pó especial… Cheirei um pouco de um pacotinho que trazia no bolso. Quem sabe assim a sobra de meu pai ia embora, porém ela não foi. E o terror prendeu meu corpo quando a sombra de meu pai, morto a cinco anos, falou:
                “Você sempre foi uma decepção!” Sua voz soava espectral. “Nem depois da minha morte você toma jeito”.
                “Nem depois da sua morte você me deixa em paz” eu disse, aquilo podia ser um sonho, mas aquele espectro não me ofenderia.
                “Você sempre foi petulante”
                “E você sempre foi um covarde que bate em mulheres”
                “A sua esposa pode dizer o mesmo de você. Isso é, se você não a tivesse matado”
                “Eu não a matei!” Eu exclamei exasperado, peguei a primeira coisa que encontrei e joguei no espectro. Ele desapareceu.
                As palavras dele embaralham meus pensamentos. Fiquei atordoado, e o jeito foi ir pegar uma outra garrafa já que meu pai mesmo morto veio bagunçar minha vida. Enquanto bebia novamente, um redemoinho negro adentro o cômodo. Ele trazia consigo a agonia do inferno, me senti extremamente perturbado, foi então que o redemoinho das trevas começou a ganhar forma e em um piscar de olhos minha esposa estava comigo.
                Sua pele estava pálida, seu rosto, antes rosado e vívido, ganhara um aspecto cadavérico e mortalmente espectral. As órbitas de seus olhos eram de um negrume inigualável. Trajava um belo vestido branco.
                “Anne!” - A exclamação destruiu os muros dos meus lábios.
                “Sentiu saudades, querido.” Sua voz era igualmente doce. “Pensou que não iria mais me ver?”
                Fiquei sem palavras. Ela estava ali em minha frente. Não havia me abandonado. Não estava morta, só estava ali, comigo. Eu não estava sozinho. Me aproximei e tentei tocar seu rosto, mas ela recuou:
                “O que houve?” Perguntei confuso.
                “Você ainda não pode me tocar” ela disse.
                “Por que?” Eu perguntei rapidamente.
                “Você sabe o por que, Victor”. Eu abaixei a cabeça relembrando o dia em que acidentalmente a matei. Eu estava ébrio, não estava consciente dos meus atos. Não queria, simplesmente não queria… mas fiz.
                “Como posso consertar isso? Eu não fiz por querer… Anne” me desesperei.
                “A um jeito de consertar isso, Victor, e você sabe qual é, não é?” A voz dela era melosa, mas firme. Não precisei que ela explicasse, é claro que eu sabia o que ela queria.
                Fui até a cozinha com a garrafa em mãos. Tomei um último gole e quebrei a garrafa na beira da pia. Fiquei a olhar o casco em minhas mão. O estilhaço de vidro em minhas mãos implorava pra ser lambuzado com o meu sangue. Hesitei, mas ela se aproximou de mim e pousou sua mão sobre a minha…
                “Venha! Preciso de você!”
                Essas palavras foram o suficiente. Em um movimento rápido e firme enterrei o vidro em meu pescoço, e ao fazer isso ela desapareceu… não tinha mais esposa… não tinha mais meu pai… não tinha ninguém… apenas eu, sangrando, agonizando, morrendo…
  • Entrevista com Matheus Braga – autor de O Landau vermelho

    1 – Quem é Matheus Braga e porque você resolveu contar a história de um carro assassino?
    R – Já começamos com uma pergunta difícil, porque sou péssimo para falar de mim mesmo, rsrsrsrs. Bem, posso dizer que sou um sonhador. Sou uma pessoa que sonha com a cabeça nas nuvens e os pés no chão e corre atrás da realização desses sonhos. Sou uma pessoa determinada, resiliente, apaixonada pela natureza, que ama animais e a-do-ra carros desde que se entende por gente. Pode-se dizer que aprendi a nomear carros antes mesmo de aprender a falar “papai” e “mamãe”, rsrsrs. Quando pequeno, meus brinquedos favoritos eram as miniaturas de carros e meu Ferrorama, e sempre gostei muito dos filmes cult sobre perseguição de carros como Encurralado e Christine – O carro assassino, e foi daí que, anos mais tarde, vieram algumas das inspirações para meu livro.
    2 – Como foi o processo de produção do seu romance de terror O Landau Vermelho?
    R – Gosto de dizer que O Landau vermelho foi um livro construído ao longo de muitos anos. Como já disse, sempre nutri uma paixão muito grande por carros e sempre tive vontade de escrever algo dentro desse universo, mas nunca havia tido a ideia para isso. Eu estava sempre esboçando plots e cenas separadas, mas nunca havia chegado a um enredo satisfatório. Este só veio quando num dia, ao organizar minha pasta de arquivos no computador, acabei lendo todas as cenas separadas em sequência e, baseada numa dessas cenas em específico, intitulada Corrida Infernal, formou-se a ideia para o livro. Também me inspirei nos filmes clássicos do gênero “carro assassino” para me ajudar a enxergar melhor a história. A partir desse ponto, foram mais dois anos e meio de escrita e muita pesquisa para finalizar o livro, e depois ainda precisamos de uns 5 ou 6 meses de revisões pontuais antes que a versão final finalmente saísse em e-book e, agora, em versão impressa. Cabe aqui uma curiosidade: quase todo esse processo aconteceu tendo como trilha sonora a música Two black Cadillacs, da Carrie Underwood, cujo videoclipe também conta a história de um carro assassino.
    3 – Quais suas maiores influências no mundo da escrita?
    R – Sempre me identifiquei muito com o gênero de romance policial, e minha maior influência foi o mestre Sidney Sheldon. É dele o primeiro romance policial que li, Conte-me seus sonhos, e o estilo narrativo dele sempre foi o que mais me fascinou. Ele constrói as cenas de forma quase cinematográfica, explorando as sensações e percepções tanto dos personagens quanto do ambiente em si, de forma a obrigar o leitor a continuar lendo, e lendo, e lendo até que, quando dá por si, o livro já acabou. Venho praticando muito para conseguir escrever dessa forma também, como pode ser percebido no meu romance O Landau vermelho. Mas além do Sidney Sheldon, também sempre li muito Harlan Coben, Stephen King e Agatha Christie.
    4 – As editoras independentes estão dando um show de como se publicar livros no Brasil, muitas vezes exportando esses livros para a Europa e EUA. Como você percebe essa mudança no nosso mercado literário?
    R – Infelizmente a mudança ainda é relativamente sutil no mercado como um todo, mas já é perceptível para quem está atento. As grandes livrarias e editoras sempre dominaram o mercado literário de forma cavalar, quase sempre valorizando autores já expressivos ou que possuam o famoso “Q.I.”, mas com o advento da internet é possível perceber um crescimento das publicações de editoras menores e autores independentes, principalmente no que diz respeito aos e-books. Tal crescimento tem se mostrado uma grata surpresa aos leitores de plantão, pois tem revelado autores talentosíssimos e histórias extremamente deliciosas de se ler. É bastante notável que estes novos autores quase sempre vêm do mundo das fanfics, que já é bastante popular desde a época dos fóruns, no início dos anos 2000, e temos sido agraciados com grandes talentos que até então estavam ocultos ou não tinham uma divulgação expressiva de seu trabalho, e estes talentos acabam por ser a nossa esperança de que, apesar do mercado literário ter entrado em declínio nos últimos anos, ainda poderemos desfrutar por muito, muito tempo deste prazer indescritível que é a leitura de um bom livro.
    5 – Quais as maiores dificuldades para um escritor iniciante conseguir sua primeira publicação?
    R – Sinceramente não tenho propriedade para responder esta pergunta, pois a editora Immortal foi a primeira e única para a qual enviei o original de O Landau vermelho e ele já foi aceito para publicação, rsrsrsrs. Mas acredito que a dificuldade maior seja justamente encontrar a editora certa para a publicação. Escrever em si já é algo muito difícil, mas encontrar uma editora onde sua história se encaixe da forma devida pode ser um tanto delicado, pois pode haver divergência entre a mensagem que o autor quer passar com a história e a interpretação que a editora dará para ela. Além disso pode haver também o fator financeiro, pois não são todas as editoras que se dispõem a publicar o livro antes para colher os lucros depois, e também não é fácil para um autor iniciante dispor de determinada quantia financeira para investir na publicação, mesmo que a realização de um sonho não tenha preço. De qualquer forma, acredito que com a devida paciência tudo pode se ajeitar.
    6 – Qual sua preferência de leitura: e-book ou impresso? E porquê?
    R – Impresso, com certeza. Além de adorar o cheiro de um livro novo, sou muito tradicional nesse quesito, e ter o livro em mãos me proporciona uma experiência de leitura muito melhor. Gosto da sensação de folhear as páginas e consigo imergir melhor na história e absorver a mensagem do livro de forma mais satisfatória. Ler e-book é algo que requer muita disciplina, pois nos aparelhos eletrônicos as distrações são constantes (WhatsApp, Facebook, Instagram, etc...) e eu sempre acabo desviando minha atenção com outras coisas. O engraçado é que leio fanfics com constância no meu celular e não desvio tanto minha atenção, rsrsrs, mas simplesmente não consigo ler um e-book.
    7 – O autor tem outros hobbies além de escrever? Quais são?
    R – Meus principais hobbies além da escrita são o colecionismo/modelismo e o trekking. Tenho várias coleções, desde miniaturas de carros e trens até minifiguras de Lego e moedas raras, e sempre que disponho de um dia livre ou feriado prolongado gosto de fazer caminhadas ao ar livre para serras ou cachoeiras, pois adoro estar em contato com a natureza. Ainda tenho o sonho de montar um “carro projeto” apenas por hobby, que é comprar um carro antigo e fazer alterações no estilo e na performance dele para um uso mais divertido, mas ainda não tenho condições financeiras para isso, rsrsrs.
    8 – O mercado editorial passa por mudanças, elas já são perceptíveis ao ponto de dizermos que temos um novo mercado ou não?
    R – Acredito que a maior mudança que o mercado editorial vem passando nos últimos tempos é a popularização dos livros digitais. Apesar de admitir isso a contragosto, os e-books são bem mais práticos e acessíveis do que os livros impressos, principalmente para fins acadêmicos e profissionais, e podem ser a melhor opção para pessoas que querem passar a ter o hábito de ler mas não abrem mão da conectividade. Com isso, acredito que é seguro dizer que sim, temos um novo mercado, com novas estratégias de vendas, marketing e lucros adaptadas à nova realidade dos leitores.
    9 – Nos conte quais os planos para o futuro desse escritor?
    R – Adoro fazer planos e sonhar com o desenrolar deles, mas sempre mantendo os pés no chão. Entre os principais planos na minha vida hoje estão: morar sozinho, para finalmente conquistar minha independência; publicar mais um livro até o fim de 2019; conseguir mais uma promoção no meu emprego para me estabilizar financeiramente; e no segundo semestre, quem sabe, começar uma das minhas pós-graduações.
    10 – Como e onde os leitores podem adquirir o seu livro e em que projetos está envolvido ultimamente?
    R – Meu livro pode ser adquirido diretamente com a Editora Immortal ou pelos sites Amazon e Clube de Autores, tanto o e-book quanto a versão impressa. Os links estão no meu perfil e na página da editora. Meu próximo projeto é uma participação na antologia Contos do desconhecido, também da Editora Immortal, que será uma compilação de contos de terror onde estarei participando com os contos originais Ferrorama e Sussurros à meia-noite.
  • Epicondilite hemorrágica

    A grama do vizinho parece melhor que a minha
    Invejoso, tratei logo de chama-lo à rinha

    O vizinho, confuso, não entendeu
    Furioso, arranquei um olho seu

    Sangue jorrou aos borbotões
    Para meu deleite e contentamento
    Enrubescendo todos os anões
    Malditos adornos do meu tormento

    Branca de neve menstruou
    Ao ver-me com a pá na mão
    Pronto para fazer uma cova
    E atirar seu príncipe no chão

    Sepultamento magistral
    Em meio ao jardim exordial
    Ilustre cântico funeral
    Ao proprietário do local

    A grama do vizinho parecia melhor que a minha
    Como vizinho não há mais, foi-se a sina.
  • Escuridão

    O caminho era longo. Todo final de semana, ele pegava um ônibus em direção à Bérnaba, uma viagem que durava cerca de sete horas e meia. Fazia isso somente para ver a sua namorada e, após o final do mês, a sua noiva. Isso, é claro, se ela aceitasse o pedido que seria feito exatamente na data de aniversário de namoro.
    Normalmente não conseguia dormir durante a viagem. Mesmo quando estava muito cansado, cochilava e acordava constantemente. Às vezes era por causa de alguma dor no pescoço e em outras porque a sua cabeça encostava no vidro que, ao tremular, o acordava. Nessa, entretanto, conseguiu dormir profundamente. Agradeceu aos céus por ter conseguido comprar uma almofada de pescoço que o deixava sem dores e o impedia de colocar o seu rosto contra a janela.
    No meio da noite, acordou pela primeira vez. O ônibus parou subitamente no meio da estrada, todas as suas luzes apagaram e nada funcionava. Ainda sem compreender nada corretamente, ele esfregou os olhos e tentou ligar o celular para saber que horas eram, mas a tela continuava escura. Acabou acreditando que a bateria havia acabado e o guardou.
    Ainda em sua busca de descobrir o horário, abriu a cortina da janela e tentou achar algum indício do nascer do sol. Lá fora estava tudo extremamente escuro. A única coisa que conseguia enxergar era uma montanha já no horizonte. Ela parecia ser composta por três picos: o primeiro era maior que o segundo, e o terceiro era o maior de todos. A única cor que ela tinha naquela escuridão era o preto, mas não era um preto qualquer. A sua cor, que parecia como a de uma sombra mais escura do que o próprio preto, hipnotizava o seu admirador e parecia congelá-lo no tempo como se nada mais importasse.
    Ele ficou ali até ser interrompido pelo barulho da porta que os separava do motorista ser aberta. Ele pediu para que todos que estivessem aptos a empurrar o ônibus para irem lá fora e ajudá-lo a colocar o veículo no acostamento. O intuito disso era evitar acidentes já que a pane elétrica havia acontecido bem em uma curva e algum carro desatento poderia bater neles.
    Ele foi um dos primeiros a se candidatar para a tarefa. Fez isso mais para sair do ônibus do que para ajudar. Sempre odiou ficar em locais muito fechados, pois lhe causava um extremo desconforto conforme o tempo passava. Lá fora havia quinze pessoas de um total de vinte e nove no ônibus. Ninguém tinha lanternas, a não ser a do motorista que havia quebrado quando ele saiu do ônibus pela primeira vez. Não se enxergava muito bem, o alcance máximo devia ser de um metro ao forçar a vista. Ele não fazia ideia de qual era a fonte dessa pequena luminosidade já que não havia lua no céu e nem sequer uma estrela, mas a sua intuição acreditava que aquela montanha era a iluminadora.
    Ele se posicionou na extremidade esquerda da traseira do ônibus e usou toda a força que tinha para deslocá-lo. Inicialmente, ele andava muito lentamente, porém, em questão de segundos, o ônibus começou a andar rapidamente como se estivesse descendo uma ladeira. Nesse instante, com a mudança súbita de força necessária a ser aplicada, acabou indo para o chão. Sentiu uma dor nos seus cotovelos já que eles foram a primeira parte do corpo a atingir o chão, mas a dor não o abateu. Rapidamente, ele se levantou e começou a caminhar na direção na qual estavam empurrando o ônibus. Não conseguia enxergar nem o que tinha a trinta centímetros de distância, mas sentia que o terreno não era íngreme.
    Ele não conseguia achar o ônibus. O desespero começou a tomar conta da sua mente. Começava a cogitar que estava andando para o lado errado, então começou a girar lentamente e a gritar. Esperava que algum outro passageiro ouvisse e desse um sinal de onde eles estavam. Entretanto, o silêncio reinava. A montanha havia sumido junto com qualquer chance de se localizar por meio dela. A sua garganta já começava a doer de tanto gritar por ajuda. Os seus pensamentos começaram a implorar por uma resposta ou até mesmo para que um carro aparecesse com farol alto e o atropelasse. A escuridão, a falta de localização e de sinais de vida estavam começando a deixá-lo desesperado. O medo corria por todas as suas artérias, veias e capilares nesse momento.
    O medo aumentou quando sentiu alguma coisa correndo alguns metros atrás dele. A sua respiração começou a ficar mais curta por causa do medo. Aconteceu mais uma vez, porém dessa vez sentiu que ela passou pelo seu lado direito com uma leve brisa o atingindo. Começou a cogitar que podia ser a sua mente pregando peças nele. Essa paranoia devia ser muito comum em alguém em estado de pânico. Mesmo assim, ao sentir aquilo pela terceira vez e perceber que estava cada vez mais próximo, começou a correr o máximo que podia para a direção em que estava virado. Não sabia se estava na estrada ou saindo dela. Ele somente não queria parar, pelo menos não até se sentir minimamente seguro e isso significava ter alguma fonte de luz. Entretanto, isso não foi possível. Ele caiu, bateu a cabeça e desmaiou, não sabendo se algo o perseguia, o que o perseguia, se foi atingido ou se tropeçou.
    Acordou no ônibus. O sol brilhava com algumas poucas nuvens brancas prestes a encobri-lo. Via alguns pássaros do lado de fora cantando suavemente e conseguiu relaxar. Entendeu que tudo deveria ser parte de um pesadelo bem vívido, então tentou fechar os seus olhos e descansar um pouco. Apesar de inúmeras tentativas, os seus olhos permaneciam abertos. O desespero retornou. Tentou levantar os seus braços e tocar o rosto com as suas mãos, mas nada acontecia. Sentia que estava dentro do seu corpo, porém não tinha controle nenhum sobre ele. Não sentia parte alguma dele, embora estivesse vendo tudo. Era como se fosse um prisioneiro amarrado em uma cela minúscula tendo uma única janela para ficar observando o mundo lá fora.
    O ônibus parou. Sentia um desespero cada vez maior. Se tivesse controle sobre os seus pulmões, tinha certeza de que a respiração estaria cada vez mais curta quase a ponto de desmaiar. Mas não tinha e pensou se, algum dia e de alguma forma, conseguiria restaurar o controle sobre o seu corpo. As suas dúvidas aumentaram quando viu o seu corpo desafivelar o cinto de segurança, pegar a mala e sair andando completamente sozinho enquanto era um mero passageiro dos olhos.
    Quando viu a sua namorada na rodoviária, tentou pela primeira vez gritar por socorro. O som saia, mas somente na sua mente. A boca não se movia nem mesmo um milímetro. Queria chorar, mas lágrimas não saiam dos seus olhos. Nunca tinha sentido tanto medo na vida, nem mesmo durante a noite passada.
    Finalmente um som saiu da sua boca, embora ele não tivesse lançado comandos para isso. A fala era completamente normal e a conversa totalmente amigável, mas não era ele falando. Talvez a pior parte de tudo isso fosse a impotência que sentia. Nem mesmo fugir ou pensar em fugir podia já que de nada adiantaria.
    Durante o trajeto até a casa da namorada, começou a tentar a se acalmar e a elaborar hipóteses para o que estava acontecendo. A mais plausível, embora ainda considerasse difícil de ser a verdade, era que o medo que sentiu na noite anterior o tenha feito desenvolver alguma doença mental e ele ser a voz secundária de uma esquizofrenia ou uma outra personalidade de um transtorno dissociativo de identidade.
    Depois de muito tempo numa prisão na qual não podia fazer nada além de observar, chegou a noite e a hora de dormir. Durante todo o dia, nada de anormal havia acontecido. Tudo o que ele teria feito normalmente, o seu corpo fez. Agora teria que dormir, mesmo sem saber como, e desejar que tudo voltasse ao normal no dia seguinte.
    Em cerca de meia hora, o seu corpo desligou. No meio da noite, estava ligado novamente. Tinha sentado na cama de repente e com o movimento havia acordado. Verificou se tinha retomado o controle do corpo ao tentar piscar, mas ainda nada acontecia. Sentia um sorriso se formando no rosto e a sua mão lentamente indo para a mesinha ao lado da cama. Dessa vez, estava sentindo tudo o que fazia sem precisar olhar para nenhum lado. Sentia, embora não controlasse. A sua mão pegou uma caneta e o seu tronco se virou para a namorada que estava em um sono profundo. O seu braço levantou até acima da sua cabeça e depois desceu rapidamente em direção ao peito dela. Fez aquilo repetidas vezes. A caneta deve ter atingido o coração porque o sangue jorrava e diversas vezes respingava no seu rosto formando gotas que desciam pelo nariz e pelas têmporas.
    Ele fazia força para tentar retomar o controle, se concentrava ao máximo no braço para ver se ele parava, mas nada acontecia. Quanto mais esforço fazia parecia que com mais força segurava a caneta. Gritava com o máximo de força que tinha, mas o som só soava em sua mente. Queria chorar e sentia que estava fazendo isso, mas do seu rosto só descia o sangue dela que se depositava em sua testa. Sentia aquelas gotas quentes se formando como se água fervente fosse jogada na pele. Quando viu a caneta quebrando, acreditou que tudo pararia. Ela já estava morta, sabia disso mesmo que a sua mente ainda tentasse procurar algum resquício de esperança. Mesmo assim, o seu braço não parava. Finalmente, o desespero e o sofrimento fizeram com que desmaiasse. Talvez não fisicamente, mas pelo menos mentalmente.
    Acordou no dia seguinte na mesma posição em que tinha desmaiado. Ainda sem controle do corpo e, dessa vez, sem conseguir sentir os músculos. Quando a sua cabeça se moveu na direção dela, não viu nada de anormal. Ela estava lá, dormindo e sem nenhum sangue ou sinal de ferimento a sua volta. Não entendia como, mas estava feliz que estivesse daquele jeito.
    O dia foi tranquilo como os seguintes. Tinha anunciado para ela que ficaria a semana toda e, na sua prisão mental, ficou com medo do porquê disso. Descobriu o porquê nessa noite e nas seguintes. Novamente acordou no meio da noite e a matou cruelmente. A cada noite uma arma diferente era usada, podendo ser um abajur ou uma tesoura. Logo depois ele desmaiava devido ao terror e acordava no dia seguinte com tudo acontecendo normalmente.
    Entretanto, quando chegou na quarta noite, conseguiu manter a calma. Estava prestes a matá-la sufocada com o travesseiro, mas mesmo assim se manteve totalmente calmo. Repetia sem parar que tudo aquilo não era real. Deu certo, não caiu no desespero enquanto matava ela, mas, mesmo assim, desmaiou após ter terminado o serviço.
    Acordou no dia seguinte e ela já estava em pé. O sol batia no seu rosto e sentia a pele esquentar de forma bem suave e agradável. Pensou que tinha recuperado o controle, mas ainda não conseguia nem sequer mexer um dedo. Mesmo assim, pensou estar lentamente recuperando o controle. Sentiu os músculos se moverem enquanto se levantava e caminhava na direção da sua namorada. Seu braço direito levantou e acertou um soco bem no olho dela. Ela gritou de dor. Sentiu uma dor nos nós da sua mão e uma confusão atingiu a sua mente. Não era noite e ela estava acordada, portanto não via o porquê de está-la atacando. O desespero estava retomando o controle. Tentava pensar que não era real, mas era difícil quando tudo ou pelo menos os principais detalhes se modificavam. Mesmo assim, tentava se convencer de que era tudo uma alucinação.
    Quando tinha começado a se convencer disso, o que demorou menos de dez segundos, o seu corpo lançou novamente aquele sorriso e voltou a agredi-la com um chute na barriga. O seu pé sentiu o impacto. Logo em seguida, o seu corpo se montou em cima dela e começou a socar o rosto dela sem dar pausas. Os punhos doíam e sentia os ossos da face dela quebrando a cada golpe desferido. Mesmo assim, se mantinha calmo. Tinha certeza que logo desmaiaria, acordaria novamente e tudo estaria bem.
    O seu corpo parou de socar depois de uns vinte minutos de esforço físico ininterrupto. Estava ansiosamente esperando para a hora em que iria desmaiar, mas, ao invés disso, o seu corpo pegou o telefone e ligou para a polícia. Quando ele fez isso, passou a não entender nada. O sofrimento que sentia era gigantesco, então entendeu que tudo havia sido verdade. Pela primeira vez, o seu corpo permitiu que chorasse. Mesmo assim, parecia que o sofrimento só aumentava ao rolar de cada lágrima.
    Tinha sido preso e o seu corpo confessou o crime descrevendo cada detalhe. A parte que mais doeu foi quando falou que tinha gostado de fazer aquilo. A sua mente xingou o corpo com todas as palavras que sabia, mas de nada adiantava.
    Na prisão, ele arranjava briga com todos só para que a mente sentisse a dor física. O recorde dele fora da solitária ou enfermaria foi de somente dois dias. Chegou a matar algumas pessoas em brigas, mas já não ligava tanto como antes. O sofrimento que sentia por estar numa prisão dentro de outra prisão, em uma cela solitária dentro de outra solitária, já o tinha feito totalmente indiferente a tudo.
    A única boa notícia é que o corpo havia revelado o que tinha causado isso. Num sonho que tivera no primeiro dia de prisão tudo tinha ficado claro. Ele estava novamente correndo na estrada sem conseguir enxergar coisa alguma quando conseguiu ver uma placa da mesma cor da montanha que dizia “Bem-vindo a Escuridão!”. A escuridão havia consumido ele e talvez todos aqueles que estavam no ônibus.
  • Estado de calamidade pública: Desastres decorrentes das chuvas.

    O objetivo não é julgar a imprudência humana, creio que nesse momento ela na consciência de cada um já está sendo julgada. Não é também acusar, apontar o dedo sobre o erro, perante a uma situação que exige cuidado, empatia e solidariedade. Mas queria dizer algumas coisas a respeito e não teria outro lugar para dizer. Se eu publicasse um texto desses no facebook, por exemplo, seria atacado pela comunidade local por minha "falta de humanidade com o povo".

    Hà alguns dias, Minas Gerais enfrenta um constante índice de chuva, são mais de 3 dias diretos de chuva nas mais diversas regiões do Sudeste Mineiro. A região do Vale do Aço, do Rio Doce e outras regiões, estão sofrendo bastante por tudo que a chuva ocasionou: transbordamentos de rios, represas se rompendo, demoronamentos e o pior de tudo, enchentes em algumas cidades. 

    Caratinga, minha cidade, tem sofrido com inundação em alguns trechos das ruas, desmoronamentos de terra em barrancos e o rio que corta a cidade veio a ter cheia. Isso desperta e muito a população e o poder público local. Mas fico chateado, pois acredito ser algo que não tínhamos necessidades de passar, muito desse sofrimento coletivo poderia ser evitado. Os desmoronamentos de terra é um caso que acredito ser mais complexo. Mas no que se refere as inundações, percebo uma grande falta de infraestrutura de captação e escoamente d'água. Caratinga, uma cidade com cidadões incosciêntes das questões socio-ambientais, pouco se importam para onde vai o lixo que jogam na rua, sem um pingo de dor na consciência, eis aqui a consequência. Eu lamento muito por comerciantes que passam desespero por risco de enchente ou inundação, famílias que perdem abrigo, bens e imóveis por conta de alagamento, mas tudo isso seria evitado por nós mesmo, se soubessémos dos riscos de nossos atos, afinal, "toda ação corresponde a uma reação", todo ato gera consequências. Outra coisa, são as ações (ou as faltas delas) da Prefeitura Municipal e respectivas secretarias competentes para lidar com as obras de esgoto e escoamento de chuva. Não tenho audácia para falar disso, pois não entendo. Mas sei que esse episódio é repentino na história da cidade e já ouvi de especialistas que isso tudo é uma falta de infraestrutura da cidade, algo cabível à Prefeitura em tomar medidas. Mas ao longo de anos e anos de mandato, as pessoas só focam em algo quando não há mais nada que se fazer. 

    É triste o cenário de tudo isso, eu particularmente, ainda como um adolescente, fico assustado em ver tantos desastres. São situações dignas de solidariedade, de prestar serviço, orações e tudo que for possível para ajudar. É essencial fazer campanhas, hastear as bandeiras de ajuda e voluntariedade e prestar socorro a quem necessita. Afinal, somos todos humanos e é bonito ver pessoas se preocupando com pessoas. Mas no momento de dificuldades isso faz parecer meramente obrigatório, e gostaria muito que tivéssemos esse apreço em socorrer e ajudar, coletivamente, sem precisar dos remorços, dos choros e do sofrimento. Antes de ter que cuidarmos dos outros no que se refere a um acontecimento triste e "natural" ou em um estado de calamidade, seria muito melhor se cuidássemos evitando jogar lixo na rua, tendo consciência ambiental e assim, evitar possíveis consequências; penso ser um gesto muito mais bonito de cuidado para com a humanidade do que prestar cuidado somente quando em situações onde cuidar parece ser obrigatório ou cumprimento de dever moral. 
  • Estátua Humana

    Sou uma estátua humana
    Inerte e estática, mas ainda humana
    E, sendo humana, tenho sentimentos
    Mas todos se parecem iguais

    Até mesmo as novidades não mudam isso
    Talvez porque toda novidade não é uma novidade
    Algo ruim aconteceu, mesmo que tenha sido planejado para ser bom

    Mas como toda boa estátua humana, sigo
    Talvez esperando uma boa novidade ou um bom sentimento
    Para que assim possa sair da inércia e me movimentar um pouco
    Deixando por um segundo de ser a porra
    De uma
    Estátua
    Humana.
  • Eu confesso!

    Meu nome é Raul Almeida.
          Vou contar a minha história, como eu perdi tudo, como minha vida mudou da noite para o dia, por causa do meu temperamento.
          Eu confesso! Eu matei um homem inocente;; privando sua família da alegria de vê- lo voltar para casa, de abraçá- lo e de receber seu amor.
         Era uma noite de sábado como outra qualquer. Uns amigos me convidaram para inauguração de um bar; não estava com muita vontade de ir, mas minha namorada Milena queria ir; gostava da banda que iria se apresentar no novo bar. A contragosto aceitei e na hora marcada fui buscar Milena.
         Começamos a discutir logo na frente da casa dela, por causa da roupa provocante que ela usava.
       - Não vai vestida assim!
       - Vai começar com isso de novo?
       - Já disse que não quero que use mais essas roupas!
       - Você me conheceu assim, gostou de mim assim; não vou mudar agora.
         Essas discussões eram frequentes e cada vez mais violentas, normalmente eu perdia a cabeça e rasgava-lhes a roupa. Ela chorava dizia coisas cruéis; a irmã dela acalmava a situação e eu esperava no carro, tentando controlar a raiva. Enquanto ela trocava a roupa e retocava a maquiagem. Quando ela finalmente entrava no carro eu lhe pedia perdão e prometia que não ia mais acontecer. Isso levava a outra discussão.
       - Essas suas promessas são velhas, então não reclame quando eu me cansar e te deixar.
       - A culpa é sua!
       - Minha? Essa é boa!
       - Sim! Já disse que não quero que vista aquele tipo de roupa.
       -  Já disse que não vou mudar. Ou você se acostuma ou cai fora.
       - Eu quero casar com você, formar uma família.
       - Esse já foi meu sonho...
       - Foi?!
       - Sim! Não vou casar com um homem que me agride e não me respeita.
       - E eu não posso me casar com uma mulher vulgar.
       - Vulgar?
       - Olha como se veste.
       - Quando decidiu me conquistar a roupa não foi um problema. Você é inacreditável. Um cretino!
         Parei na frente do bar e continuamos discutindo dentro do carro. Guilherme bateu na janela; Ana a namorada dele arrastou Milena para dentro do bar. Eu estava com muita raiva.
       - Brigando de novo?
       - Aquele estupido, disse que eu sou vulgar.
       - Você sabe que ele não gosta do tipo de roupa que você veste, muito provocante.
       - Não vou mudar
       - Que tal um meio termo?
         A conversa foi interrompida pelas amigas.
         Eu e Guilherme entramos logo em seguida, uns amigos, queriam conversar, mas minha atenção estava em Milena, meus olhos a seguia. Um rapaz passou a mão no cabelo de Milena; Guilherme percebendo a situação, segurou meu braço.
       - Sem brigas, você prometeu.
       - Vou me controlar.
         Quando olhei pro salão, não encontrei Milena. Guilherme percebendo minha inquietação perguntou por Ana a irmã dela.
       -A esposa do Amaral levou elas para o escritório, queria mostrar a elas um projeto. Trabalho para elas, eu acho.
        Meu coração se acalmou, procurei o rapaz estava numa mesa com uns amigos. Sentei numa mesa com os amigos e tentei relaxar. Quando elas chegaram fiquei reclamando da demora.
        - Já vai começar?
       - Veio pra trabalhar?
       - Pega leve Raul, vamos curtir a noite numa boa.
       - Ana tem razão, vamos ficar de boa, sem brigas. Ressaltou Guilherme.
         Elas foram dançar e Guilherme me chamou num canto.
       -Você vai perder essa mulher.
       - Se ela me amar de verdade, vai casar comigo.
       - Não tem amor que sobreviva a isso...
       - Só cuido do que é meu. Por falar nisso vamos pra perto delas.
       - Deixa as meninas curtirem um pouco, sem você chateando.
         Fiquei sentado observando elas, o dito rapaz se aproximou delas e falou no ouvido de Ana, mostrei a Guilherme, ele não se importou. Levantei e caminhei até as moças, Guilherme me seguiu. As duas deram uma gargalhada e ouvi o rapaz dizer: essa morena é muito gostosa, essa noite será minha.
         Milena era uma morena linda. Os cabelos naturalmente lisos, negros como a noite, olhos vivos e expressivos, lábios carnudos, corpo escultural. Perfeita! Seu sorriso iluminava seu rosto, era muito sensual. Qualquer homem  a desejaria. Então perdi a cabeça.
         Peguei uma cadeira de uma mesa próxima e derrubei o cara, eu bati tanto nele e com tanta fúria, que minha camisa ficou manchada de sangue. Guilherme me tirou de cima do rapaz, uns amigos ficaram com o rapaz enquanto a ajuda chegava; as moças choravam. Foi tudo tao rápido e automático, que só percebi a gravidade do que tinha feito, quando olhei Milena. Nunca esquecerei aquele olhar de desprezo, de ódio.
         O rapaz foi para o hospital e eu pra delegacia.
      Na delegacia fiquei sabendo como tudo realmente aconteceu..
         O rapaz era conhecido de Ana, quando elas entraram ele tirou uma mariposa do cabelo de Milena. Depois na pista de dança, ele relembrou a Ana como ela era sem graça e desengonçada quando menina; as duas deram gargalhadas. Quando ele falou no ouvido de Ana, queria saber o nome da amiga dela que tocava na banda que se apresentava naquela noite. Era dessa moça que ele falava quando me aproximei; não tinha nem notado a Milena, nem falado com ela.
         Ana disse que ele era um rapaz trabalhador, um bom filho,, um irmão amoroso e um amigo leal. Que o único pecado dele era ser amigo dela. O único pecado dela era ser amiga de Milena e o pecado de Milena foi ter deixado eu entrar na vida dela.
        Milena se recusou a falar comigo, mandou me dizer que jamais falaria comigo de novo. Me senti muito mal.
         Todos os meus amigos me abandonaram, só o Guilherme que ficou ao meu lado nesse momento tenebroso.
       - Eu te avisei que você iria perder aquela mulher maravilhosa.
       - Ela vai me perdoar, ela me ama.
       - Ela se mudou e ninguém diz pra onde...
       - Se mudou? Estava descrente, não podia me deixar.
         Percebendo minha confusão mental, Guilherme continua?
       - Vendeu tudo, deixou a família, os amigos e até o emprego.
       - Não sei viver sem ela.
       -Vai ter que aprender.
       - Deve ter algo que eu possa faer para concertar...
       - Não há mais o que fazer, o rapaz morreu ao amanhecer.
         Coloquei a mão na cabeça e chorrei amargamente.
         Fui semtemciado há trinta anos de prisão, mas cumpri quinze anos. Guilherme me ajudou a começar de novo.
       - E Milena?
       - Não sabemos.
       - E as cartas que escrevi?
       - Ana entregou a irmã dela.
       - Ana não tem mais contato com ela?
       - Milena não quer perto dela ninguém que tenha contato com você.
       - Elas tinham uma amizade tão bonita.
       - Começou na infância. Mas eu casei com Ana e apoiei você, então a amizade delas não suportou, morreu!
       -Eu lamento!
       - Vamos ver se isso é verdade.
       - O que quer dizer?
       - São suas atitudes que vão mostrar o seu lamento e arrependimento.
         Guilherme nunca me deixou sozinho, mas não acreditava que eu pudesse mudar. Ana nunca impediu que o marido me ajudasse, porém nunca quis falar comigo e nem me CER de novo.
         Arranjei um emprego na indústria do Flávio, amigo do Guilherme. Procurei Milena por anos e gastei muito dinheiro, em vão.
         Hoje sou um novo homem, aprendi a controlar a raiva, no entanto o velho eu esta aprisionado dentro de mim e as vezes tenta escapar, quer vim a tona. Eu busquei ajuda profissional e faço trabalhos voluntários.
         Milena mandou dizer que eu pare de procurar por ela, que não quer me ver, mas disse que ficou contente de saber das minhas mudanças. Que nosso tempo já passou, esta casada e feliz, que espera que eu seja feliz também.
        Eu confesso! Eu matei um homem por ter um desvio de conduta e uma falha grave no meu caráter. Por causa disso perdi o meu grande amor e minha paz. Agora preciso juntar os pedaços e seguir em frente. Por meio de Guilherme ajudo a família do rapaz, sem poder jamais esquecer o mal que fiz a eles e a todos que atravessaram meu caminho.
  • Eu confesso!

    Meu nome é Raul Almeida.
          Vou contar a minha história, como eu perdi tudo, como minha vida mudou da noite para o dia, por causa do meu temperamento.
          Eu confesso! Eu matei um homem inocente;; privando sua família da alegria de vê- lo voltar para casa, de abraçá- lo e de receber seu amor.
         Era uma noite de sábado como outra qualquer. Uns amigos me convidaram para inauguração de um bar; não estava com muita vontade de ir, mas minha namorada Milena queria ir; gostava da banda que iria se apresentar no novo bar. A contragosto aceitei e na hora marcada fui buscar Milena.
         Começamos a discutir logo na frente da casa dela, por causa da roupa provocante que ela usava.
       - Não vai vestida assim!
       - Vai começar com isso de novo?
       - Já disse que não quero que use mais essas roupas!
       - Você me conheceu assim, gostou de mim assim; não vou mudar agora.
         Essas discussões eram frequentes e cada vez mais violentas, normalmente eu perdia a cabeça e rasgava-lhes a roupa. Ela chorava dizia coisas cruéis; a irmã dela acalmava a situação e eu esperava no carro, tentando controlar a raiva. Enquanto ela trocava a roupa e retocava a maquiagem. Quando ela finalmente entrava no carro eu lhe pedia perdão e prometia que não ia mais acontecer. Isso levava a outra discussão.
       - Essas suas promessas são velhas, então não reclame quando eu me cansar e te deixar.
       - A culpa é sua!
       - Minha? Essa é boa!
       - Sim! Já disse que não quero que vista aquele tipo de roupa.
       -  Já disse que não vou mudar. Ou você se acostuma ou cai fora.
       - Eu quero casar com você, formar uma família.
       - Esse já foi meu sonho...
       - Foi?!
       - Sim! Não vou casar com um homem que me agride e não me respeita.
       - E eu não posso me casar com uma mulher vulgar.
       - Vulgar?
       - Olha como se veste.
       - Quando decidiu me conquistar a roupa não foi um problema. Você é inacreditável. Um cretino!
         Parei na frente do bar e continuamos discutindo dentro do carro. Guilherme bateu na janela; Ana a namorada dele arrastou Milena para dentro do bar. Eu estava com muita raiva.
       - Brigando de novo?
       - Aquele estupido, disse que eu sou vulgar.
       - Você sabe que ele não gosta do tipo de roupa que você veste, muito provocante.
       - Não vou mudar
       - Que tal um meio termo?
         A conversa foi interrompida pelas amigas.
         Eu e Guilherme entramos logo em seguida, uns amigos, queriam conversar, mas minha atenção estava em Milena, meus olhos a seguia. Um rapaz passou a mão no cabelo de Milena; Guilherme percebendo a situação, segurou meu braço.
       - Sem brigas, você prometeu.
       - Vou me controlar.
         Quando olhei pro salão, não encontrei Milena. Guilherme percebendo minha inquietação perguntou por Ana a irmã dela.
       -A esposa do Amaral levou elas para o escritório, queria mostrar a elas um projeto. Trabalho para elas, eu acho.
        Meu coração se acalmou, procurei o rapaz estava numa mesa com uns amigos. Sentei numa mesa com os amigos e tentei relaxar. Quando elas chegaram fiquei reclamando da demora.
        - Já vai começar?
       - Veio pra trabalhar?
       - Pega leve Raul, vamos curtir a noite numa boa.
       - Ana tem razão, vamos ficar de boa, sem brigas. Ressaltou Guilherme.
         Elas foram dançar e Guilherme me chamou num canto.
       -Você vai perder essa mulher.
       - Se ela me amar de verdade, vai casar comigo.
       - Não tem amor que sobreviva a isso...
       - Só cuido do que é meu. Por falar nisso vamos pra perto delas.
       - Deixa as meninas curtirem um pouco, sem você chateando.
         Fiquei sentado observando elas, o dito rapaz se aproximou delas e falou no ouvido de Ana, mostrei a Guilherme, ele não se importou. Levantei e caminhei até as moças, Guilherme me seguiu. As duas deram uma gargalhada e ouvi o rapaz dizer: essa morena é muito gostosa, essa noite será minha.
         Milena era uma morena linda. Os cabelos naturalmente lisos, negros como a noite, olhos vivos e expressivos, lábios carnudos, corpo escultural. Perfeita! Seu sorriso iluminava seu rosto, era muito sensual. Qualquer homem  a desejaria. Então perdi a cabeça.
         Peguei uma cadeira de uma mesa próxima e derrubei o cara, eu bati tanto nele e com tanta fúria, que minha camisa ficou manchada de sangue. Guilherme me tirou de cima do rapaz, uns amigos ficaram com o rapaz enquanto a ajuda chegava; as moças choravam. Foi tudo tao rápido e automático, que só percebi a gravidade do que tinha feito, quando olhei Milena. Nunca esquecerei aquele olhar de desprezo, de ódio.
         O rapaz foi para o hospital e eu pra delegacia.
      Na delegacia fiquei sabendo como tudo realmente aconteceu..
         O rapaz era conhecido de Ana, quando elas entraram ele tirou uma mariposa do cabelo de Milena. Depois na pista de dança, ele relembrou a Ana como ela era sem graça e desengonçada quando menina; as duas deram gargalhadas. Quando ele falou no ouvido de Ana, queria saber o nome da amiga dela que tocava na banda que se apresentava naquela noite. Era dessa moça que ele falava quando me aproximei; não tinha nem notado a Milena, nem falado com ela.
         Ana disse que ele era um rapaz trabalhador, um bom filho,, um irmão amoroso e um amigo leal. Que o único pecado dele era ser amigo dela. O único pecado dela era ser amiga de Milena e o pecado de Milena foi ter deixado eu entrar na vida dela.
        Milena se recusou a falar comigo, mandou me dizer que jamais falaria comigo de novo. Me senti muito mal.
         Todos os meus amigos me abandonaram, só o Guilherme que ficou ao meu lado nesse momento tenebroso.
       - Eu te avisei que você iria perder aquela mulher maravilhosa.
       - Ela vai me perdoar, ela me ama.
       - Ela se mudou e ninguém diz pra onde...
       - Se mudou? Estava descrente, não podia me deixar.
         Percebendo minha confusão mental, Guilherme continua?
       - Vendeu tudo, deixou a família, os amigos e até o emprego.
       - Não sei viver sem ela.
       -Vai ter que aprender.
       - Deve ter algo que eu possa faer para concertar...
       - Não há mais o que fazer, o rapaz morreu ao amanhecer.
         Coloquei a mão na cabeça e chorrei amargamente.
         Fui semtemciado há trinta anos de prisão, mas cumpri quinze anos. Guilherme me ajudou a começar de novo.
       - E Milena?
       - Não sabemos.
       - E as cartas que escrevi?
       - Ana entregou a irmã dela.
       - Ana não tem mais contato com ela?
       - Milena não quer perto dela ninguém que tenha contato com você.
       - Elas tinham uma amizade tão bonita.
       - Começou na infância. Mas eu casei com Ana e apoiei você, então a amizade delas não suportou, morreu!
       -Eu lamento!
       - Vamos ver se isso é verdade.
       - O que quer dizer?
       - São suas atitudes que vão mostrar o seu lamento e arrependimento.
         Guilherme nunca me deixou sozinho, mas não acreditava que eu pudesse mudar. Ana nunca impediu que o marido me ajudasse, porém nunca quis falar comigo e nem me CER de novo.
         Arranjei um emprego na indústria do Flávio, amigo do Guilherme. Procurei Milena por anos e gastei muito dinheiro, em vão.
         Hoje sou um novo homem, aprendi a controlar a raiva, no entanto o velho eu esta aprisionado dentro de mim e as vezes tenta escapar, quer vim a tona. Eu busquei ajuda profissional e faço trabalhos voluntários.
         Milena mandou dizer que eu pare de procurar por ela, que não quer me ver, mas disse que ficou contente de saber das minhas mudanças. Que nosso tempo já passou, esta casada e feliz, que espera que eu seja feliz também.
        Eu confesso! Eu matei um homem por ter um desvio de conduta e uma falha grave no meu caráter. Por causa disso perdi o meu grande amor e minha paz. Agora preciso juntar os pedaços e seguir em frente. Por meio de Guilherme ajudo a família do rapaz, sem poder jamais esquecer o mal que fiz a eles e a todos que atravessaram meu caminho.
  • FELICIDADE NA DOR: PARTE 2

    Carmen parecia ter acordado de um transe ao notar o chão repleto de sangue. Após a ficha literalmente cair percebeu o horario e faltava pouco para a filha chegar. Seria um choque, e ela, sua mãe, fora a responsável.

    Sempre educou as filhas, tanto Janete quanto Julia tiveram bons exemplos no lar. Jeremias, pai das moças hoje adultas e independentes contribuira ativamente. Tendo somente mulheres em casa, buscava orientar as meninas a se respeitarem em primeiro lugar. E jamais permitir homens contrários a esses preceitos em suas vidas. Ou seja, não admitiria vê-las sofrer nas mãos de quem fosse. Assim cresceram parecendo ter absorvido suas orientações.

    Janete casou primeiro, até por ser cinco anos mais velha em relação a Julia. Na época tinha vinte e cinco anos. Oito anos depois foi a vez da irmã. Nesse momento o casal Carmen e Jeremias sentia ter cumprido sua missão, afinal ambas estavam seguindo a vida ao lado dos maridos e os respectivos eram bons homens. Tempos depois a família cresceu, o neto Iago hoje com três anos, filho de Janete e Saulo preenchia ainda mais com a alegria e naturalidade infantil. Cobranças para Julia e Flávio que levavam de bom humor afinal a pouco sua união completara quatro anos. Em vários fins de semana todos se reuniam e emocionava observar.

    Os pensamentos de Carmen por alguma razão proporcionaram uma breve retrospectiva. A ocasião era turbulenta mas inusitada pois, havia serenidade em seu interior. Mesmo ciente das consequências. Foi quando pegou o celular e mesmo relutante efetuara a ligação. Se era o certo, não tinha a menor idea mas sabia das lágrimas, tristezas e decepções por vir.


    CONTINUA...
  • FELICIDADE NA DOR: PARTE 3

    Julia estava cansada, o plantão de vinte e quatro horas fora acirrado. Para complicar a cidade de pernas para o ar atrasou seu retorno. Por conta disso contactou a mãe para desmarcar sua visita mas o celular teimoso em caixa postal. Eram vinte e três horas e cinquenta e oito minutos e aquela altura pensava apenas em relaxar.

    A moça estava na rua de casa, muitas pessoas circulavam e pelo horário chamava a atenção. Visualizou carros de polícia e ao se aproximar pareciam estar em frente a sua residência. O temor concretizou-se, coração disparado e pernas trêmulas. Policiais adentravam, uma área isolada demarcada e curiosos ao redor. Parecia filme mas era verdade.

    Julia quiz entrar e foi impedida, transtornada se apresentou como dona da casa e uma confusão teve início. A investida surtiu efeito, adentrara e a imagem chocante. Uma enorme poça de sangue e no chão, sem vida, o marido Flávio.  A moça caiu em prantos, tudo girava, seria pesadelo ou alucinação, assim imaginava. Os policiais a ampararam e mesmo sem condições psicológicas inúmeras perguntas começaram.
    A jovem mulher não sabia onde estava. Em poucos minutos seu rosto inchado devido ao choro ilustravam o cenário estarrecedor. Por estar sem condições os oficiais entraram em contato com sua família e expuseram o  fato ocorrido. Janete foi a escolhida, mesmo em pedaços a moça não quis envolver os pais para dar de imediato a notícia.

    Naquela hora Carmen chegava em casa e pensava se fez a escolha certa. Imaginava a dor da filha e isso lhe cortava o coração. Mas decidiu ligar para as autoridades e agora restava esperar e não levaria muito tempo, precisava correr.

    CONTINUA...
  • Fetiches

    Desde que assumiu sua condição aos quinze anos, a vida de Hugo nunca mais foi a mesma. A primeira dificuldade foi dizer a sua conservadora família de cristãos protestantes! Sofria assédio de toda a vizinhança. Ele se via uma mulher presa num corpo de homem, sentia-se culpado, estressado e sem perspectivas. Era duro não atender as expectativas de seus pais e irmãos nessas condições.
           A oportunidade de sair de casa surgiu quando seu amante – um homem mais velho que morava no outro lado da cidade – lhe propôs que fosse morar com ele. Aceitou de pronto, e na calada da noite, Hugo fugiu e se tornou Charlote.
           Seu companheiro se mostrou um sanguessuga, vivia bebendo e usando drogas, a tratava como uma escrava doméstica e ainda a agredia fisicamente. Ela cresceu, e um dia, não aguentando mais as agressões, revidou, a briga foi feia, a polícia foi chamada e o homem foi preso por pedofilia. O bangalô ficou para ela, mas por mais que a casa fosse humilde, como sustentá-la?
           Charlote procurou emprego, mas nenhuma loja ou empresa por mais não davam emprego para travestis ou transexuais. Assim como em sua casa, as barreiras do preconceito não podiam ser rompidas tão facilmente. Com um nó na garganta, foi ao banheiro, tomou uma ducha, perfumou-se, vestiu sua melhor e mais provocante roupa e saiu a rua.
           Não precisou andar muito para conseguir o primeiro freguês, foi abordada por um carro de última geração e depois de negociar o preço, Charlote entrou no carro e foram a viela mais escura da vizinhança. Depois de receber o seu pagamento, sentiu-se um pouco melhor. Quando avistava um carro, exibia-se, os carros buzinavam, alguns amaldiçoavam-na, outros no entanto, vinham satisfazer suas necessidades e pagavam por elas.
           O plano dera tão certo que todas as noites de segunda a domingo, exceto o sábado, saía as ruas para ganhar algum. Metade do dinheiro era para pagar as contas, a outra metade para investimento em seu corpo, além de Charlote, muitas outras viam fazer programa, a concorrência chegava a ser desleal. Precisava estar cada vez mais bonita e feminina para os seus clientes. Seu sonho era fazer a cirurgia de mudança de sexo, mas até lá, precisava dar um mega hear e pôr silicone nos seios.
           Ao longo do tempo em que se prostituiu, ganhou muitos presentes, inimizades e até brigas com outras garotas trans, mas a sua pior experiência foi quando um cliente além de não pagar a sua prata, a agrediu até ser hospitalizada.
           O que mais lhe incomodava enquanto estava entubada eram as notícias de jornais e dos programas jornalísticos da TV, daquelas que temos vontade de nem saber que estão acontecendo. O maníaco da vez era chamado de o “Maníaco dos Fetiches”, de acordo com a única testemunha, uma mulher que sobrevivera ao ataque, ele vestia uma roupa de couro preta e usava uma navalha.
           Quando ela teve alta, ela não deixou de fazer programas por causa disso, ao contrário, depois de sair do hospital, teve que pagar as despesas médicas e passou a fazer sexo sem camisinha, pois assim recebia mais. O risco de pegar alguma doença venérea era alto, mas estava endividada até o pescoço. Suas companheiras de ofício recomendaram estar sob as asas de um cafetão, pagavam uma comissão, mas tinham garantia de segurança nesses casos.
           Os dias transcorreram intercalando miséria e sofrimento. Ninguém mais se arriscava a ficar tão tarde da noite, apenas Charlote resistia, mesmo com todas as ressalvas do cafetão e das outras meninas. E todos as noites, saía a rua.
           Naquela noite, o movimento estava baixo, todos temiam o criminoso. Quando resolveu ir para casa, sentiu uma presença estranha, um vulto que ora ou outra se ocultava na escuridão. Quando andava, ouvia atrás de si um som rascante, como plástico se dobrando. Um cheiro encarniçado se sentia no ar, como se uma cova de um defunto apodrecido estivesse sido aberta ali na rua. O coração de Charlote ficou sobressaltada. Por duas vezes ensaiou uma corrida, mas o salto alto não ajudou. Resolveu esconder-se em um beco, a rua estava escura e a lua pálida ficou encoberta pelas nuvens nubladas. Ocultou-se atrás de uma lata de lixo e prendeu a respiração, segurou a bolsa numa posição em que pudesse se defender. Esperou minutos seguidos, seja lá o quem fosse, tinha ido embora.
           Quando ergue-se, algo frio tocou seus ombros, virou-se batendo com a bolsa no agressor, mas foi ferida no antebraço. E para seu azar era ele, o Maníaco dos Fetiches. Dos pés à cabeça, ele usava uma roupa de couro negro polida, pelas frestas da roupa, via-se um corpo em carne-viva, exalando um fedor pútrido, seus olhos, boca e nariz despejavam um muco purulento. Na mão, ele portava uma navalha. Charlote imaginou se aquilo era humano? Mas seu medo a levou reagir instintivamente. Tentou revidar, mas a dor a fez vacilar. O golpe errou o oponente e acertou a parede, Charlote amaldiçoou o infeliz, mas quando girou o corpo, a navalha acertou seu pescoço. A veia esguichou sangue manchando a lata de lixo. Charlote caiu, e enquanto a vida se esvaia lentamente, e em silêncio, viu seu corpo ser mutilado por aquele monstro. Quando finalmente expirou, o encourado desapareceu no ar deixando uma poça de sangue no chão. Charlote deixou a vida e se tonou um número frio nas estatísticas policiais.
  • Filhos das trevas

    A noite sombria a uma escuridão para lá de assustadora; não foi em vã. Os incrédulos apenas alegavam a incompetência da prefeitura pelos fatos. Naquela noite choveu de ligação no teleatendimento da prefeitura.
    O caminhão destinado a socorrer à comunidade, justo naquela noite, duma sinistra maneira quebrou, onde nem mesmo os mecânicos de plantão conseguiram desvendar.
    O pedido necessitou ser adiado, pois o carro quebrado era o necessário para o socorro da comunidade.
    Os incrédulos davam com as línguas nos dentes, naquela noite os bandidos de plantão resolveram tirar a limpo as dívidas na quebrada. Cometeram chacina. Cancelaram nove cpfs.
    Cinco dos corpos foram encontrados, outros, nem pistas deixaram.
    Aos moradores da adjacências murmuravam; aquela noite nunca será a mesma. Será uma sexta-feira, vinte e nove de fevereiro inesquecível.
    Os jornais on-line em menos de três horas, ainda de madrugada, noticiaram que as poucas horas vividas, foram na verdade uma verdadeira noite de terror.
    Não houve uma testemunha que desse pista aos policias de plantão. Tanto que eles nem permaneceram ali. Alegaram ter outras ocorrências a fazer.
    Por fonte de whatsapp, gangues e rivais se comunicaram através de xis noves: ninguém teve a culpa no cartório e muitos alegavam a mesma desculpa, só pode ser coisa do além.
    Um famoso líder de uma seita satânica por ira ao assassinato do primogênito pragou a comunidade: todo o dia vinte e nove de fevereiro a favela pagaria e caro, o sangue do inocente filho do religioso.
    Dos poucos que sobraram da noite da praga, em coral alegaram ser a praga do tal senhor.
    A verdade é uma só, de trauma a comunidade ficou. E a noite de terror, a muitos espantou!

     

  • FUI TESTEMUNHA DE UMA CHACINA

    Lembro claramente daqueles olhos a me encarar, brilhantes e azuis como o céu, frios de fazer tremer a alma. A última coisa que pensei foi: “Essa será minha última respiração”. Não aconteceu comigo como vejo os outros dizerem, que a vida passa como um filme na hora da morte, não, comigo foi um medo e uma ansiedade sem fim, podia ver refletido nos olhos dos outros dois o mesmo medo, antes daquele barulho ensurdecedor e depois a morte.
         Não sei o que foi pior testemunhar, se o medo antecipado ou a própria morte refletida em seus olhos sem vida.
         Ele era o rapaz mais bonito da minha rua, sempre via as moças suspirarem e falarem dele, mas nunca dei a devida atenção ao que diziam. Chamavam de “boy”, sempre bem vestido e educado, cumprimentava a todos com cortesia de uma pessoa simpática. Sua casa tinha muros altos, não se via como era por dentro. Muito discreto e sua família era do mesmo jeito, eram tão artificiais quanto ele, eu tinha a impressão que apenas representavam, era intuição.
         Como sempre trabalhava não percebia nada de estranho naquelas pessoas, até aquele dia. Jesus como foi ruim!
        Saí do trabalho tarde demais naquele dia, corri quanto pude para chegar a tempo na escola, mas não consegui, o portão estava fechado e não me deixaram entrar. “Merda, atrasada novamente”, pensei. Resolvi ir andando para casa, estava cansada e pensativa e por isso me distraí, logo estranhei o silêncio da rua, não era comum aquilo na periferia, algo não ia bem. Fiquei tensa e todos os meus instintos em alerta. Foi aí que aconteceu.
         Os três meninos vieram correndo em minha direção, os três com armas na mão. Vi o desespero deles e soube naquele instante que eles fugiam da morte. Conhecia os meninos desde sempre, vendiam na  esquina e viviam do corre.
         Naquele momento não consegui reagir, não sentia minhas pernas era como se elas estivessem enraizadas ao chão. Queria correr, mas estava pesada demais. Segundos de decisões, não quero morrer preciso reagir, era a voz em minha cabeça. Olhei para o lado e busquei uma saída, vi um beco que tinha um escadão deserto e meio destruído, com muito esforço subi para me esconder, nesse beco havia uma casa em construção, assim que a vi soltei os livros e entrei. Corri até os fundos e me abaixei no cantinho, eu tremia, tremia muito. Não demorou e logo ouvi tiros, passos apressados e gritos, não queria ver nem ouvir nada, mas meu corpo não obedecia minha mente e tive que assistir a tudo.
        Dois dos meninos já desarmados e sangrando entraram na construção, um chorava e o outro veio andando de costas até esbarrar em mim, esse menino virou e me olhou, pude ver sua alma gritando através de seus olhos, secos e desesperados diziam para mim que iríamos morrer. Ouvi o tiro e ele olhando para mim caiu, continuou me encarando derrotado, a morte o levou.
        De muito longe ouvi uma voz que falava zangado, aos poucos virei minha cabeça para aquele som que dizia: “Ah, não acredito. Veja o que você fez seu verme, sujou todo o rosto da menina”.
         Quando olhei naquela direção veio o reconhecimento, vi os olhos azuis do rapaz mais lindo da rua, ele se abaixou perto de mim e me pediu desculpas. Pensei: ele vai me matar agora. De repente um barulho me chamou a atenção, o outro menino que chorava agora estava descalço e se arrastava sangrando, porém ele apontava uma arma para mim, não entendi mais nada, por que eu?
         O rapaz bonito levantou-se e olhou para o menino ensanguentado, disse: “Larga a arma seu lixo, sabe que vou te matar”. Em resposta o menino me olhou raivoso, senti o ódio em suas palavras: “Essa cadela assistiu a tudo e nem pra gritar presta”, depois o tiro, depois o líquido quente descer no meu rosto, depois o frio. Quando olhei para o rapaz bonito, ele estava em cima do menino caído, ouvi um tiro, dois, três, perdi a conta quando tudo apagou. Mergulhada na escuridão ouvi uma voz distante que dizia para que eu não morresse, “morre não mocinha, você tem que estudar e sair daqui”....daí mais nada, acabou.
         Quando acordei estava no hospital, pois é não morri. Nem eu mesma acredito. Não sabia o que estava fazendo ali, aos poucos comecei a recordar, o medo de tudo voltando, parecia que tinha tido um pesadelo, não poderia ter sido real, era macabro demais. Porém ao perceber que havia policiais em meu quarto, caí na real, aconteceu sim, comecei um choro compulsivo. Eles me disseram para ficar calma, haviam me encontrado caída com meus livros naquela casa em construção, juntamente com três mortos, um na entrada e dois no mesmo cômodo que eu. Tinham recebido uma ligação anônima informando um tiroteio com uma moça sobrevivente. De imediato queriam saber o que eu lembrava, mas eu estava em choque. Os médicos avisaram que eu não tinha condições naquele momento de falar.
        O medo cresceu ao me dar conta que eu era a principal testemunha de um crime, uma pessoa marcada para morrer. Por que não morri? Era algo que eu me perguntava todos os dias, nunca entendi essa maldita sorte. Levei um tiro na cabeça e não morri, ele passou de raspão, não afetou em nada, sobrevivi.
        Quando voltei para casa minha tia disse que todos os dias, aparecia um rapaz muito educado perguntando por mim. O medo voltou rapidamente e fiquei pálida. Lembrei-me daqueles olhos azuis que me encararam na hora da minha morte. Não saí de casa, fiquei isolada de tudo, repetia sempre que não me lembrava de nada, a polícia insistia, foi pior que morrer.
         Logo começaram a ligar em casa, ameaçavam, queriam saber quem matou os meninos do corre, não era a polícia, era o crime que queria cobrar vingança. Eu estava sendo pressionada de todos os lados, não suportava mais.
        Passando os dias fui tentando me acalmar, não tinha o que fazer, já estava feito. Certo dia minha tia conversando comigo, pediu que eu fosse aquela casa em construção, tentar recordar, não queria, mas de tanta pressão fui. Quando vi já estava dentro daquela casa, fui ficando sem ar, minhas pernas ficaram moles e veio o medo, medo que congela. Senti cansaço, queria correr dali, mas não pude. Ouvia vozes falando comigo, me perguntando coisas, não falava, só ouvia e olhava aquele lugar muda, foi quando ao me virar para sair o vi. Em pé no canto usando uniforme e capuz, estavam àqueles olhos azuis, não eram outros olhos, reconheci o gelo, e um aviso mudo, não gritei apenas caí numa escuridão.
         Como um fantasma ele me seguia, podia sentir sua presença em qualquer local que eu estivesse, aparecia do nada e eu sempre fugia, eu sabia que uma palavra errada e eu morreria. Não havia nada que eu pudesse fazer, ele tinha um uniforme.
         Tentei recomeçar minha vida, voltei à escola, mas nada estava igual, perdi o interesse e não conseguia me concentrar em nada, na hora da saída foi o mais difícil, o medo me consumia. Depois de uma semana decidi que não iria mais estudar, precisava fugir daquilo tudo, estava sufocada demais. Num impulso fui até a esquina comprar com os meninos. Estava lá ansiosa e apreensiva, nunca pensei em fazer nada disso, mas o medo, a angústia e o desespero faz a gente agir como louco.
         De repente parou um carro, alguns uniformes saíram de lá, gelei quando reconheci quem estava ali, o assassino. Os meninos da esquina correram, eu não pude, não tive chance. Ele me pegou pelo braço com mais dois, me colocaram dentro daquele carro, eu tremia sem parar, só pensava que agora não tinha jeito, eu ia morrer. Porém com o medo da morte também veio à libertação, porque assim como tinha medo de  morrer também passei a desejar a morte e assim me libertar daquilo que vivia, dizia a mim mesma: “não vou mais ter que esperar, agora acabou”.
        Não, não, não morri.
         Depois de ouvir por duas horas vozes e vozes, fui colocada em um ônibus para algum lugar, com a sentença de sumir e viver, fui embora com uma caixa de segredos e motivos.
         Nunca mais voltei.
  • GANGRENO

    O que esperar desse governo?
    Ofereço um triste aceno
    Liderança inexistente
    De talento tão pequeno

    Filosofia genocida
    Um desempenho obsceno
    Aos políticos, benefícios
    Para o povo, só veneno

    Segue a marcha do egoísmo
    E a ignorância que condeno
    A verdade é bem visível
    E o teimoso come feno

    A cada dia o fascismo
    Vem ganhando mais terreno
    Enquanto eu morro de vergonha
    Eu só choro, sofro e peno
  • Gárgulas de sangue - I

    Knoc, knoc, konc.
    _ Quem será a este horário?
    _ Quem está ai?
    Ele resolve abrir a porta, e se depara com uma pistola em direção aos seus olhos. Sem tempo para questionar algo, o barulho rompe o silêncio, e sua vida se foi.
    No escuro da noite, passos se afastando de um vulto todo vestido de preto, apenas uma testemunha vitimada da insônia que se dirigiu a janela após o estalo.
    Em seguida as luzes em torno do homicídio começaram a se acender, e então a constatação do fato.
    Seis meses antes…
    Hermes, não o deus da guerra, mas o filho de Dona Marcília e Sr. Atílio, morava na pacata rua 9, no numeral 77, do Bairro das Gaivotas, na pequena cidade de Salamargo.
    Solteiro convicto, mulherengo e não muito chegado ao trabalho, ele levava sua vida de baladas sempre regada a muita vodka com citrus, sua bebida preferida.
    Nesta manhã, sentado em seu táxi, herança da família, Hermes pensava em Verônica. Ela surgiu do nada na moite anterior, mulher linda, exuberante em seu desenho, e tiveram um primeiro encontro as antigas, onde toda a noite não passou de um pequeno beijo, e um trinco em sua estrutura. Não saia do seu pensamento desde então.
    Duas chamadas seguidas, corridas generosas e o pensamento de comprar algo que impressionasse sua nova conquista. Envolvido por sua vaidade, muito bem lustrada por Verônica, Hermes não parou em nenhum instante para pensar na realidade, como um taxista viver, com uma mulher daquele porte.
    Agora fumando um cigarro e olhando para o nada, mas vendo Verônica, o telefone toca.
    _ E ai cara, como você está? Disse Hermes ao atender.
    _ Não tão bem como você, mas precisamos marcar algo, preciso te colocar a par “duma” parada nova, que tá mexendo comigo.
    _ “Fechô”, paro às 17 hoje, onde quer ir?
    _ Bar do Bigode, te espero lá?
    _ Beleza.
    Douglas era o irmão que Hermes não teve. Embora tenha conhecido no curso de Contabilidade aos 20 anos, mas desde então se deram muito bem, tanto que Hermes convenceu Douglas a abandonar o trabalho no escritório para se dedicar ao táxi horário integral, que seria mais rentável.
  • Gárgulas de sangue - II

    Naquele 18 de dezembro, o calor em Salamargo estava insuportável, então Douglas já havia tomado 2 cervejas desde as 16:30 hrs que havia chegado no Bar do Bigode, nome dado devido ao extravagante volume de pelos abaixo do nariz do proprietário do estabelecimento, onde todos quando o viam, já imaginavam como seria possível conviver com uma vassoura colada na cara, tal era o tamanho do bigode. Um bar comum, mas peculiar, pois o “Bigode” gostava muito do “Caipira Futebol Clube” e tinha tudo com o símbolo de seu time de coração. Bandeiras, canecas, mesa, etc, ao ponto do nome do bar ser Caipira Campeão, mas devido ao bigode descomunal, acabou sendo esquecido.
    Hermes chegou suado, e com o dedo em riste, pedindo o de sempre para o Bigode. Abraçaram e Douglas puxou o amigo para a mesa e começou a falar.
    _ Cara, to “xonado”.
    _ Você? Para de onda cara. A mulherada faz fila no quarteirão para ficar contigo.
    Era verdade, Douglas era muito assediado por se tratar de um homem bonito, e de fala mansa, as mulheres o adoravam.
    _ Então Cara. Esta “mina” surgiu do nada numa corrida, foi puxando papo e já estamos juntos há um mês.
    _ Um mês? E só agora tá me contando.
    Ela me pediu segredo, acho que ela é casada.
    _ Putz, Cara, se enlouqueceu? Tanta mulher atrás de você, e se enrola com uma casada?
    _ Pois é, você sabe que não faço isso desde o “Mirtão”.
    Hermes solta uma gargalhada e fala.
    _ Sei sim, você cortou miúdo na época. Falou rindo.
    _ Você ri, porque nunca passou pelo que passei.
    _ Verdade. Ser deixado nu, no centro de Salamargo e não poder dizer nada. Cá pra nós, ficou barato.
    _ Bom, e como é esta beldade? Qual o nome? O sabe sobre ela?
    _ Não muito. Ela não tem filhos, e nunca fala sobre ser casada, desconfio por não querer assumir nosso caso. Ela deve ter muita grana, embora não demonstre.
    _ Porque acha isso?
    _ Sei lá, o tipo de pele dela, o cheiro, o modo de falar, não condiz com as roupas e a falta de grana que ela afirma ter.
    _ Ah, você tá viajando. O que mais tem por ai e gente com panca, sem ter nada.
    _ Pode ser, mas desconfio que não é este o caso.
    _ Eu também conheci alguém. Foi ontem, ela surgiu também numa corrida, conversamos e antes de deixá-la, nos beijamos, mas ela sim, rica e casada.
    _ O sujo falando do mal lavado.
  • Gárgulas de sangue - III

    Hermes estava entediado, descansando naquele domingo a tarde, e pensando que já havia alguns dias que Verônica não aparecia e sentindo que a paixão começava a tomar conta de seus pensamentos, não fazia outra coisa senão divagar sobre ela.
    Na cafeteria Pão Doce, no centro de Salamargo, muito frequentada, e não atoa tinha este nome, Dona Cecília reeditava a receita de um pão doce deixada por sua avó, e fazia muito sucesso. Diante do pires branco, onde havia o famoso pão, Hermes olhava distante enquanto seu café esfriava.
    _ Onde ela estará?
    _ Falou comigo? Perguntou a garçonete.
    _ Não. Apenas pensei alto.
    _ Mais alguma coisa?
    _ Não, obrigado.
    De volta ao mundo dos pensamentos, o telefone toca, ao mesmo tempo ele reconhece o número e pensa.
    _ Saco.
    Era Maria Luz, uma moça que sempre esteve por perto, tinham alguns encontros, mais para Hermes não passava de distração, embora sabia que ela alimentava muito mais por ele, era conveniente mantê-la perto para aquecer, mas não o suficiente para queimar.
    O telefone toca novamente e ele olhava afoito, mas a decepção se faz em seu olhar ao ver que apenas um número desconhecido o faria feliz.
    Naquela quarta-feira perto das 17 horas, Hermes sentado em seu carro, fazendo palavra cruzada com a cabeça baixa, eis que sente uma sombra ao vidro, e antes mesmo que pudesse olhá-la sente o aroma agradável do perfume, virando rapidamente, se depara com Verônica.
    Um misto de saudade, raiva, alegria e estupidez direcionam suas palavras.
    _ Nossa. Achei que havia feito algo errado.
    Ela apenas lhe dá um sorriso, com dentes próximos da perfeição, fita-lhe de maneira sutil, mas com o intuito de um pedido de desculpas.
    _ Como você está?
    _ Bem. A vida por aqui não é muito agitada.
    _ Senti sua falta, tive medo de lhe procurar, porque estou sentindo algo que ainda não consigo identificar.
    Hermes sente um frio na espinha, sua garganta seca e apenas acena com a cabeça tentando não dizer o mesmo para parecer que dominava a situação.
    _ O que tem feito?
    _ Além de pensar em você, penso em você.
    Ela sorri timidamente, mostrando um certo rubor na face.
    _ Porque sumiu?
    _ É complicado. Sou casada.
    Sem mostrar a decepção que sentiu, ele continua.
    _ Entendo. O que está fazendo aqui?
    _ É mais forte do eu.
    _ Devo confessar que estou apaixonado por você. Há muito não me sinto assim.
    _ Está dizendo isso para me agradar.
    _ Não, de forma alguma.
    Ela repete o sorriso e o rubor.
    _ Gostaria de comer o famoso pão doce de Salamargo?
    _ Gostaria sim, em outro momento, mas agora quero ir à sua casa.
    Ele desconcertado, se lembra da bagunça e lamenta internamente, mas nada o impediria de estar a sós com ela.
  • Hinderman - Capítulo 1

    Capítulo 1

    “Zumbis”.

    A maioria das pessoas a ouvir esta palavra imagina seres humanoides semi-esverdeados, andando de forma bizarra e vagarosa, com a língua de fora, à procura de carne ou cérebro humano para satisfazer a sua fome.

    Antes de começar eu quero apagar um pouco esta imagem da sua cabeça. Os “zumbis”, ou também chamados “ghouls” em sua forma antiga de nomenclatura, não diferem muito de um humano normal. É claro, o nome que lhes foi dado é baseado na imagem caricata atribuída ao significado original da palavra. E isto se deve ao fato de haver uma semelhança vital entre o real e o imaginário: o fato de que eles realmente se alimentam de carne humana. Entretanto não da forma desenfreada com que a maioria das pessoas acreditam. Eles comem muito menos que um ser humano por dia. Na realidade não é incomum um zumbi chegar a ingerir pedaços de comida de verdade (verduras, cafezinho, etc.) de modo a tentar esconder sua identidade e fazer apenas uma boquinha de carniça de noite, quando todos dormem. Contudo quando um zumbi come comida no lugar de carne humana ele não está se alimentando; é como se fosse um ser humano comendo madeira ou pedaços de papel. Se ele continuar assim irá ficar cada vez com mais fome e terá que se alimentar de verdade eventualmente para saciar-se.

    Se a alimentação é a semelhança vital entre a lenda e a realidade, a diferença vital seria a forma de propagação. Na lenda urbana quem for mordido por um zumbi será transformado em outro zumbi e assim sucessivamente até a chegar a um estágio incontrolável da epidemia. Normalmente atribui-se o primeiro nascimento a um vírus ou algo do tipo, em algumas crenças há uma cura para o vírus, em outras não.

    Contudo, na realidade a razão pela qual um zumbi nasce é atualmente desconhecida. Tudo o que se sabe é que acontece em algum ponto entre a morte do corpo humano e sua decomposição. Às vezes leva algumas horas, às vezes leva alguns dias, mas antes que a carne esteja totalmente decomposta, um ser humano pode simplesmente ressurgir como zumbi. Cientistas têm tentado traçar perfis e fazer relações familiares, tabelas de raças, elevar características de propensão, porém tudo sem sucesso. Tudo leva a crer que acontece simplesmente de forma aleatória. Uma solução definitiva seria manter todo corpo morto em estado de vigilância até o final da sua decomposição, para ver se ele se tornaria zumbi ou não. No entanto, devido à baixíssima taxa de acontecimento, somado ao fato de que o governo não quer reconhecer publicamente a existência do ser sobrenatural, prefere-se evitar o gasto desnecessário e manter tal existência em segredo.

    Após o nascimento, ou melhor; o renascimento, apesar de ter o mesmo corpo do humano morto, o zumbi agora é um ser totalmente diferente. Existem raros casos de vaga lembrança da vida humana, mas acontece pouquíssimas vezes e em escala muito pequena. Porém devo admitir que o ser renascido se desenvolve mentalmente muito mais rápido que o ser humano. Ele consegue facilmente identificar que os humanos que o cercam são diferentes e detectam o desprezo pela diferença quase que de imediato, o que os leva a rapidamente tentar esconder-se entre os humanos para evitar a perseguição. Seria isto o que eles dizem que é o instinto? Talvez uma característica que foi passada com o tempo, como uma forma de evolução, uma tentativa de se adaptar ao ambiente? Misturar-se à sociedade sem ser detectado? Nada se sabe. Sobre a natureza e a biologia do zumbi, nada se sabe. E para dizer bem a verdade, não é o foco desta história.

    Embora estes seres se assemelhem muito com o ser humano, há algumas formas clássicas de detectá-los entre nós. A primeira seria pelo hábito alimentar, obviamente. Não se pode negar que algo há de muito estranho entre comer um ser humano, de modo que avistando algo que aparenta ser uma pessoa comendo outra, o melhor a se fazer é clamar pelas autoridades, independente de se o predador é de fato um zumbi ou não.

    A segunda forma seria pelo olfato. Por surgirem da decomposição humana eles têm um cheiro intrínseco de corpo decomposto, alguns mais, outros menos, aparentemente variando de acordo com o tempo necessário para sua ressurreição. Um zumbi pode tentar disfarçar seu cheiro usando colônias e perfumes, mas se você estiver morando com um, dificilmente não perceberá a diferença quando este tiver acabado de sair do banho, por exemplo.

    A Terceira forma seria aproveitar o fato de que eles não se lembram da sua vida humana. Se alguém que o viu durante a vida tentar instigar memórias de quando aquele corpo era o de um ser humano não obterá resposta satisfatória. Ainda mais fácil será a identificação se a pessoa sabe que o dono daquele corpo já deveria estar morto para começo de conversa, já que humanos não simplesmente voltam à vida e saem andando por aí após sua morte.

    A vantagem de um zumbi sobre um ser humano é que eles são naturalmente mais fortes. Aliás, são mais fisicamente fortes do que todos os outros animais conhecidos.

    Para matar um zumbi tudo o que você precisa fazer é matá-lo uma segunda vez. Apenas uma ferida letal, como se estivesse matando um ser humano. É muito difícil a doença, vírus, ou seja lá qual for a razão de sua nascença se manifestar de novo no mesmo corpo. Para dizer a verdade, creio que até hoje houve apenas dois casos registrados de que um deles voltou à vida uma segunda vez, e nenhum caso de que voltou a terceira. Então basicamente uma vez morto, o zumbi está morto para valer. No final das contas a condição de zumbi é como se fosse uma reencarnação, uma segunda vida, e nada muito mais do que isto. A única diferença é a fome, o físico e o fedor de podre.

    Apenas algumas pessoas sabem disso então, por favor, não saia contando: mas o fato é que existe uma divisão de polícia especializada em casos de assassinatos relacionados a estes seres fantásticos. O propósito da existência desta divisão deve ser prezado em segredo, visto que se viesse à tona revelaria a própria existência destas criaturas, assustando a população. Eu comento sobre os zumbis porque os casos destes são uma das coisas com as quais devemos lidar nesta divisão. O nosso trabalho não apenas é o de capturar zumbis (visto que eles são criminosos aos olhos da sociedade, por causa de seu hábito alimentar), mas também prezar por deixar sua existência desconhecida, afinal não queremos preocupar os civis com monstros querendo devorá-los perambulando por aí. Por isso quando há casos em que há alguma ação por parte da nossa divisão, estes geralmente seguem com um longo dia mentindo/negociando com jornais locais para tentar explicar os acontecimentos ocorridos no dia anterior de forma publicável. Este é o trabalho da divisão de casos especiais, ou DCAE.

    Falando em jornais locais, em Sproustown existe uma espécie de acordo entre o jornal diário e o DCAE onde eles atrasam o lançamento das notícias que podem ter alguma relação com estes casos especiais para que possamos investigar livremente e verificar se realmente há alguma conexão ou não com algo de natureza paranormal antes de tornar os acontecimentos públicos. É o que estava acontecendo ali naquela tarde, no meu escritório do DCAE.

    “O dono da loja reportou às 12:11. A câmera captou o que parecia ser um roubo impossível, enquanto o dono da loja estava cuidando do estoque. Características do suspeito: trinta e muitos anos, caucasiano, cerca de dois e dez de altura, tatuagem reconhecível em seu ombro esquerdo. O suspeito chegou e quebrou o vidro ao lado da porta, apanhou grande parte do conteúdo com suas mãos nuas, sem se dar o trabalho de acobertar as digitais e escapou com o conteúdo no meio tempo entre o dono ouvir o estilhaço e o tempo de ele se locomover entre a sala do estoque e a loja. As razões de suspeita de ser um caso especial destinado ao DCAE são: o fato de que o vidro era temperado, aguentando até quatro marteladas, e mesmo assim foi quebrado a mãos nuas e também o fato de que o tempo entre o golpe no vidro e a escapada, totalizaram vinte e dois segundos. O dono da loja, Steven Wolf, reportou ter apenas visto as costas do suspeito correndo rua afora após sua chegada na parte frontal da loja. Os guardas locais foram avisados porém não conseguiram pegar o suspeito a tempo.” - É o relato.

    A pessoa que estava de pé do outro lado de minha mesa, lendo o relato de forma impassível, vestindo um casaquinho preto impecável enquanto cutucava seus óculos de lente grossa se chamava Emma Crane. Era a minha secretária, ou melhor, a secretária do DCAE, e quem havia recebido o relato do assalto naquela tarde de terça-feira.

     - Vinte e dois segundos… - Balbuciei. - E sem a ajuda de nenhum instrumento, hm? Agora sim este parece um caso.

    Eu estava sentado na minha cadeira giratória grande de rodinhas, levantando a parte da frente da mesma do chão enquanto fumava um cigarro, como que de costume.

     - Ele devia estar com pressa.

     - A delegacia de roubos recebeu o relatório quando? Há umas Três horas atrás?

     - Parece que sim.

     - E o sujeito não foi identificado até então?

     - Não.

     - Eles tiraram as digitais?

     - Tiraram. E disseram que iam enviar ao DCAE quando estivessem terminadas.

     - Está bem, obrigado. – Obrigado era o código para Crane se retirar da sala e me deixar em paz. Não me leve a mal, eu gosto do meu pessoal, mas minha cabeça trabalha melhor quando eles não estão parados na minha frente, ou o que é pior: perambulando.

     Creio que esqueci de me apresentar. Eu sou o tenente Henry Dotson, ou só Dotson (ou às vezes só tenente) do departamento de casos especiais, e dos que vêm regularmente (isto é, presencialmente) ao trabalho eu sou o segundo cargo mais alto. Como eu já disse, lidar com zumbis é uma das especialidades do DCAE e parte de meu trabalho, e como você já deve ter adivinhado, o incidente daquela tarde estava relacionado a um desses seres horrorosos. Até porque eu tive todo o trabalho de começar com uma introdução à natureza da sua espécie.

     O DCAE de Sproustown consistia basicamente da capitã, de mim, da secretária, Joey (o detetive) e também do detetive Cole Chapman que é mais uma espécie de agente secreto pelo qual eu não ponho minha mão no fogo de forma alguma. É claro, há muito mais suporte de pessoal, mas os que investigam e têm capacidade para lidar com os casos mais difíceis são basicamente esses. E sim, a secretária Emma Crane, dos óculos e do casaquinho está inclusa.

     Eu levei mais uns minutos para terminar meu cigarro e depois chamei o Joey e contei a ele a situação.

    Contrastando com meu físico preparado e arduamente merecido, aquele que parecia ser um garoto de dezessete anos, magro e para as mulheres, provavelmente bonito, era o meu parceiro em trabalho: Joey Meyers. Como tenente eu posso chamar qualquer um para me ajudar quando vou à cena, mas em geral eu chamo o Joey e deixo para Crane lidar com o Chapman.

    Mais tarde naquela manhã nós dois descemos até o local do crime, a joalheria “Club Jewel”, no centro de Sproustown. Havíamos saído da central para conversar com o tal Steven Wolf, o dono da loja e também cidadão que fez o relato.

    Uma vez no local do crime ouvimos basicamente a mesma história de novo, exceto que da boca de Wolf. Apesar de ele tê-la contado para a divisão de furtos não parecia particularmente exausto por sua repetição.

    A cena toda estava interditada. Eu me aproximei do vidro quebrado para checar o dano causado ao vidro com o golpe. Foi um direto de direita, limpando uns cinco centímetros de grossura de vidro temperado de alta qualidade. E pensar que uma joalheriazinha daquelas protege os produtos com vidro desse tipo...

     - Isso foi feito com socos, você disse. Com socos no plural ou com apenas um soco?

     - Foi um só soco, senhor. Ele pegou e bum! – Wolf imitou o gesto com a mão. – E pá! Estava quebrado.

     - A câmera captou tudo, acredito?

     - Sim senhor, eu enviei o filme para a polícia mais cedo, o senhor deve ter visto...

     Ausentei-me de explicar que a divisão de furtos e o DCAE não são a mesma coisa. Ao invés disto apenas confirmei com um aceno de cabeça. Depois fizemos mais algumas perguntas de rotina, mas quanto mais eu via aquela cena mais a ideia que eu tive inicialmente fazia sentido na minha cabeça: tinha que ser um trabalho de zumbi.

    Quero deixar isto claro desde o princípio, lidar com seres canibais ressurretos não é nem de longe a única função do DCAE. A bem da verdade zumbis são apenas uma dentre dez categorias distintas conhecidas de seres ameaçadores da humanidade e que são mantidos desconhecidos pelo trabalho de nosso departamento. Então embora eu tenha começado com aquela longa introdução sobre o renascimento após a decomposição da carne, não havia nada em particular que ditasse que era realmente com um zumbi que estávamos lidando naquela tarde. Entretanto existe algo que se chama experiência que se pode utilizar nessas horas. O Joey vai insistir que o que eu direi pode ser considerado preconceito de espécie, mas sim: eu associo a burrice com o zumbi. E não há nada aparentemente mais retardado do que no meio da tarde aparecer numa joalheriazinha meia boca, quebrar o vidro com a força bruta e roubar o conteúdo. O que é isso? Um ser paranormal quer chamar a atenção da polícia para ser caçado? “Olhe para mim, eu existo.” “Eu sou um zumbi.” Foi a impressão que eu tive desde que Crane leu o relato na minha frente. E eu não disse nada em voz alta para o Joey porque ele ia inventar uma discussão sobre como eu estava sendo tendencioso quanto ao comentário sobre a espécie dos zumbis, mas foi porque eu adiantava que seria um ser deste tipo que eu já havia colocado os cachorros no carro quando viemos até o Club Jewel.

    Os cachorros são realmente úteis. O perfume e o desodorante podem enganar o olfato humano, mas o cheiro de decomposição será perseguido pelos cães até os confins da terra. Com o auxílio deles os zumbis não podem escapar da polícia.

    Minha última pergunta para Wolf foi de natureza retórica:

     -Você não chegou a sentir nenhum odor quando ele saiu, sr. Wolf?

     - Odor? Hmm agora que você diz… - Wolf ia dizer alguma coisa, mas Joey tinha chegado do carro com um dos cachorros. Wolf ficou meio sem jeito ao ver os cães adentrando a loja, mas acabou cedendo. O farejador conseguiu captar alguma coisa no vidro.

    - Haha! Bingo, tenente! – Disse Joey e começou a segui-lo.

    Não tem por que duas pessoas seguirem os cachorros, então eu acendi um cigarro e fiquei esperando encostado ao carro, até Joey me contatar por meio de uma ligação. Não importa para onde o suspeito tenha corrido ou o quão longe ele esteja, como seu fedor vem do estado de decomposição de um corpo e não de algo temporário como suor ou qualquer outra coisa do tipo, ele nunca some. Se meu palpite estivesse certo Joey alcançaria o alvo mais cedo ou mais tarde.

    Cachorros são maravilhosos.

    Contudo parece que o suspeito havia corrido um bocado após ter conseguido as joias porque o cachorro só parou muito depois e em um lugar muito distante. Não é que fosse um local isolado ou abandonado, pelo contrário, era no meio de Marshmoore, que era uma área movimentada. Mas digo longe no sentido de que Marshmoore ficava muito longe do Club Jewel, o que faz o assalto ainda mais esquisito. O que um zumbi ganharia roubando aquela loja em particular? Por que não escolheu uma mais perto de onde se escondia? E se planejava ir tão longe por que foi a pé? Se tivesse ido de carro era capaz de o cachorro não ter conseguido farejá-lo... Como eu disse: burrice igual a zumbi.

    Joey me ligou passando o endereço e eu alcancei-o de carro. Descemos em um lugar menos movimentado, um beco, e como era quase perto da hora do fim de serviço da maioria dos estabelecimentos locais já não havia quase ninguém na rua. Havia só uma pessoa. Ou melhor, um resto de pessoa. Era um homem de cerca de quarenta anos, ou pelo menos a metade da frente dele: as costas haviam sido arrancadas por alguma coisa, como se um animal gigantesco tivesse mordido e arrancado um pedaço. Havia também sangue espalhado por toda a parte. Respingos de jatos jorrados na parede, uma poça concentrada na calçada, um rastro vermelho mais vivo escorrendo pelo meio fio até ser drenada pelo ralo... Ele estava deitado com o resto das costas para cima, deixando exposto que sua coluna tinha um pedaço do meio faltando, como se tivesse sido arrancada junto com a mordida. Parte de sua carne vazava para fora do lugar, esparramando-se sobre sua lateral.

    Com tanta carne faltando e tanto vermelho sangue compondo aquela imagem grotesca, não preciso dizer que aquele homem estava morto.

    E esta era a prova definitiva de que estávamos lidando com um zumbi. Já não se tratava mais de especulação.

     - O que foi isso...?

     - Um zumbi... Você estava certo... Eles se alimentam de... – Joey não terminou a frase.

     - É... Eu sei...

    Mesmo assim... Esses ataques nunca deixam de surpreender.

     - Uau. Tem sangue escorrendo até o bueiro... Parece que pintaram o chão de vermelho. E olhe esses bichos pousando nele... Que nojento. – Joey tocou em um deles levemente.

     -...

     Até nós precisamos de um momento para digerir a situação. Basicamente Joey tinha razão: parecia que tinham pintado o chão de vermelho. A imagem sugeria que alguém atacou o sujeito pelas costas, ele se debateu enquanto era devorado na área da calçada coberta de sangue, e após certo tempo caiu e se arrastou até o meio fio, vindo a perecer provavelmente por falta de sangue.

    A parte ruim de nosso trabalho era ter que presenciar esse tipo de coisa.

     - Os cães acharam mais alguma coisa? – Perguntei após colocar a cabeça no lugar.

     - O cheiro pára aqui, mas parecia que eles queriam entrar – Joey apontou com a cabeça para um estabelecimento fechado com uma porta de ferro, a qual provavelmente ligava ao segundo andar do pequeno prédio de dois andares. Um dos cachorros estava parado olhando para nós e o outro ainda farejava uns respingos de sangue perto da porta. Joey comentou:

     - É incrível que ninguém tenha passado por aqui, quer dizer... Normalmente já deveria ter uma multidão aqui em volta.

     - Você chamou ajuda?

     - Chamei o pessoal da perícia e uma viatura do hospital para eles levarem o corpo embora. Eles devem chegar daqui a pouco. O que vamos fazer? Vamos entrar?

     Entrar era a ideia correta, mas deveria ser pensada com cuidado. Se o suspeito estivesse lá seria perigoso. Mais correto seria entrar após o reforço chegar, mas algo dentro de mim me dizia que o suspeito não teria ficado parado esperando dentro do prédio após cometer o assassinato, então havia noventa e nove por cento de chance de ele já não estar lá dentro, o que reduzia o perigo a zero. Decidi que entraríamos para averiguar o local.

    Uma escadaria subia até o segundo andar do estabelecimento fechado, que dava para um corredor com duas portas: Cada uma delas parecia ser a porta de uma residência, de forma que havia duas moradias: provavelmente uma delas era alugada e outra era do dono do estabelecimento. Pela precariedade da condição era o tipo de dono que deixava qualquer um ser o locatário, então provavelmente se o dono fosse interrogado ele diria que não sabia de nada e nem ouviu nada. Empurramos a porta da moradia alugada à força – e tínhamos força – de modo que ela cedeu.

    O interior estava uma bagunça: diversas coisas atiradas no chão, desde utensílios de cozinha até meias, roupas de baixo e diversos objetos de porte pequeno que poderiam ser guardados em gavetas ou separadas em caixas de forma organizada.

     - Parece meu quarto – Disse calmamente Joey em tom normal, mas eu já o conhecia o suficiente para separar a ironia da realidade.

     O lugar todo consistia de um cômodo grande logo na frente e havia uma separação apenas para um corredor que tinha duas portas: uma para um quarto e uma para um banheiro, o restante era aglomerado no grande cômodo principal: havia um espaço para o sofá, o televisor e as demais coisas da sala, e depois tanto a cozinha como a mesa de jantar ficavam à direita, pouco mais adiante, mas sem separação. A mesa da cozinha estava tombada, o que explicava porque havia tantos objetos de cozinha no meio da bagunça. Todos aqueles objetos deviam estar primariamente sobre a mesa. Outros objetos haviam sido revirados: O armário debaixo do televisor tinha todas as gavetas escancaradas e vazias e havia um buraco na tv.

    Fui até o quarto. Como eu imaginava tudo havia sido revirado lá também. As roupas de cama no chão. As gavetas do armário abertas. As peças de roupa de dentro do armário jogadas por toda a parte. A janela estava aberta. Passando os olhos pelo local dava a impressão que alguém tinha entrado, procurado alguma coisa de modo frenético e logo depois que encontrado tinha pulado a janela. Olhei pela janela afora e vi que ela dava para um pátio onde os moradores estacionavam os carros, e atrás do mesmo podia-se enxergar a rua de trás.

     - Aqui também está tudo bagunçado... – Joey entrara no recinto observando o óbvio. – O que acha? Ele pulou a janela?

     - É o que dá a entender. Quer trazer o cachorro para ele dar uma cheirada aqui nesse quarto?

     - Ok.

     Mas seja lá como for, o suspeito havia se livrado do cheiro. Os cães paravam de sentir o odor naquele quarto e depois não encontravam mais nada. Farejavam o parapeito da janela e depois ficavam me olhando como que se procurando uma explicação.

     - Ele deve ter pegado um veículo. – Eu disse – Assim o cheiro ficaria dentro do veículo e não poderia ser detectado.

     - Ele tinha um veículo na rua de trás, então? Ou será que ele roubou um?

     - De qualquer forma o locador deve saber reconhecer algum veículo que sumiu. Vamos ter uma conversa com ele.

     Ouvimos um barulho do lado de fora.

     - O pessoal deve ter chegado. – Comentou Joey.

    Após a chegada do carro da ambulância e dos peritos, o trabalho naquele local ficou mais com eles do que com nós investigadores do DCAE. Até porque não havia mais muito que pudéssemos fazer. Eu e Joey saímos dali e fomos ter uma conversa pessoal com o dono daquele estabelecimento, que morava na casa ao lado da que arrombamos. O dono era baixo, careca (quase) e gordo. Tinha um bigode preto e não aparentava muita confiança. Ele ficou parado em frente à porta durante todo o pequeno interrogatório.

     - Sim? – Iniciou ele após abrir a porta em resposta a nossas batidas. Mostrei meu distintivo.

     - Tenente Dotson e Detetive Meyers, o senhor poderia nos dar um tempo para algumas perguntas?

     - Sim...? – Ele tornou a fazer em tom pouca coisa mais hesitante.

     - É sobre seu locatário... Ele é atualmente suspeito de um roubo e um assassinato...

     - Oh. – Ele não parecia necessariamente muito surpreso.

     - Pode nos contar alguma coisa sobre ele?

     - Eu... Não sei muito sobre ele... Ele alugou o local há apenas dois dias, sabe... Ele não tinha um histórico muito favorável se me entende... Disse que havia acabado de ser liberado da prisão ou algo assim, mas para falar a verdade não me importei muito então deixei ele ficar... Eu não pensei que ele estivesse... Em alguma atividade desse tipo.

     - Entendo...  O senhor deu falta de um Prestige 2010 de cor cinza? – Inventei uma marca de carro qualquer. Joey estava apenas olhando os arredores enquanto eu fazia as perguntas.

     - Prestige? Eu...? Não... Não senhor...

    Ele estava excessivamente cauteloso então meu instinto me dizia que ele e o suspeito poderiam ou estar trabalhando juntos ou ele poderia estar o acobertando. É claro, era apenas uma possibilidade. Eu tinha mencionado um carro aleatório para ver se ele comentava vagamente a marca de seu carro quando a resposta fosse negativa, como por exemplo “Prestigie? Ah não, meu carro é da marca x...”. Sem saber do que se tratava poderia deixar escapar tal informação, porém se eu tivesse perguntado diretamente a marca de seu carro e se ele realmente trabalhasse junto com o suspeito então ele mentiria. Mas aparentemente minha tática não tinha dado certo.

     - Um Prestige sumiu após bater no carro que estava lá na frente – Minha última deixa para ele achar que estava envolvido com o caso de alguma maneira e esboçar alguma reação.

     - Eu não possuo carro, senhor... Estou pensando em pegar um, mas...

     Então não houve reação...

     - Entendo... E o locatário possuía algum? – No fim, a contragosto, tive que formular a pergunta de maneira direta. Se eles realmente estivessem juntos a resposta seria negativa de qualquer modo.

     - Não, senhor. Ele não tinha veículo algum também.

     Dito...

    Tivemos apenas mais um pouco de conversa que não trouxe resultado algum. Perguntei se ele ouvira algum barulho, se escutara o suspeito chegar e depois pedimos para ele o fichário de locação do suspeito e fomos embora.

    No caminho, Joey estava olhando para o papel confiscado com as informações sobre o sujeito.

     - Acha que ele estava escondendo alguma coisa? – Perguntei a Joey enquanto ele examinava a ficha.

     - Não... Parecia naturalmente abalado com a notícia repentina, então é natural que não fale muito.

     - Ele parecia estar me evitando...

     - Devia ser o fedor do seu cigarro, tenente. Até eu tive que desviar a cabeça. – Joey sempre desferia aquele tipo de comentário impertinente de forma casual e inexpressiva. Ele começou a murmurar enquanto examinava a ficha do locatário:

     - Jeffrey Sprohic. Quarenta e dois, dois metros e sete de altura. Aparentemente ele é ex-detento de Silverbay. Estava procurando emprego após sua pena. Ou pelo menos é o que disse no documento. Tem o número da identidade dele aqui. Vou mandar para o DCAE.

     - Faça isso. E depois vamos ter que esperar. Não tem mais nada que possamos fazer – Disse enquanto jogava meu cigarro no chão e amassava-o com o sapato. Estávamos agora na rua da frente onde os peritos estavam analisando a cena sanguinária. A multidão de curiosos que antecipamos outrora agora estava presente em dobro, todos aglomerados separados pela faixa amarela dando um trabalho insuportável para o pessoal do suporte. Estralei meu pescoço e prossegui:

     - A perícia vai ver se acha alguma pista, os legistas vão chamar a família do corpo para fazer o reconhecimento e nós não conseguimos nenhum carro para seguir e o cheiro do cachorro sumiu... O melhor a fazer é ir para a casa.

     - Já está anoitecendo mesmo. – Joey respondeu enquanto olhava o céu. Já estávamos há muito fazendo hora extra. Aquele incidente tomara muito de nosso tempo devido à distância que Joey teve de percorrer a pé.

     Os curiosos quase que forçavam a faixa para ver o que havia acontecido. Quanto mais sangue, mais curiosos atraía. Eu odiaria ter que ser o pessoal do suporte.

    Depois daquilo fomos para a casa. Isto é, Joey foi para a dele e eu para a minha.

    A pessoa pequena que estava parada em minha frente usava ainda uma camisola não porque fosse dormir cedo, mas porque provavelmente não a tirava desde de manhã. Era ainda jovem, embora rugas e olheiras houvessem se apossado de seu rosto. Era ruiva e tinha longos cabelos encaracolados contrastando com a brancura de sua pele. Era anemicamente magra. A típica mulher que se vê que um dia já fora bastante atraente, mas que agora era um mero fantasma do que costumava ser.

    - Henry? Onde você estava? Sabe que horas são? Te esperei o ano inteiro e você não chegava nunca.

     Tirei meu casaco e joguei-o no sofá ao lado da porta.

     - Eu tive trabalho extra...

    - Você faz hora extra todo dia. Todo o santo dia! Eu ia preparar alguma coisa, mas você provavelmente já comeu fora.

     - Já... – Menti.

    - Está vendo? Você sempre come fora. Sempre chega tarde. Você nunca mais está aqui! Aposto que está saindo com mais uma amiga sua. Que nem da outra vez.

    A nova moda de Jane era arranjar uma amiga imaginária para mim e inventar que eu a visitava, sempre que eu estava em serviço ou em outro lugar.

    - Jane... Teve um caso de emergência... – Disse com uma virada de olhos enquanto ia em direção à geladeira, para ver se tinha alguma coisa que pudesse beber.

     - E custava ligar!? Eu por outro lado liguei que nem uma louca e você não atendeu. Por que você deixa o celular desligado? Se fosse apenas trabalho você atendia!

     Deixei escapar um suspiro enquanto fui até a geladeira e alcancei a última garrafa de cerveja que estava quase vazia.

    - Não sei por que você nunca fala comigo! Você me deixa no escuro. Você me deixa no escuro para que você possa...

    Jane parou seu argumento quando me viu bebendo direto da garrafa. Ela detestava que ele bebesse em casa, sem nenhum motivo específico.

     - O que você está fazendo? Isso é hora de comemorar alguma coisa?

    Dei de ombros, e prossegui. Ela ficou sem reação por um instante.

     - Você... Tudo bem. Me ignore. Beba sozinho! – Disse ela com uma desafinada amarga na voz. Ela apagou a luz da copa e voltou para o quarto.

    Eu nem gosto de cerveja.

    Mas é uma ótima maneira de fazê-la terminar sua recepção amorosa e ir para o quarto.

     Após sua saída olhei fixamente para o sofá. O sofá era o lugar onde eu estava dormindo ultimamente. Todos meus pertences ficavam jogados em volta do sofá para ficar mais prático de pegá-los porque ela não gosta que eu entre no quarto de manhã. Somado à bagunça da cozinha e ao fato de que a luz frontal estava queimada passando uma impressão de precariedade, me veio à tona uma cena familiar que eu havia presenciado àquela tarde. Me lembrei da piada que Joey havia feito mais cedo.

     “Parece o meu quarto.”

     Ele havia dito isso quando entrou na casa que havia sido revirada antes de o suspeito fugir. Mas ele provavelmente não imaginaria que aquela frase se encaixaria perfeitamente na descrição do meu quarto, ou melhor, ao sofá da sala onde eu passava minhas noites.

    Não pude deixar de esboçar um sorriso.

    Esta garota adorável é minha esposa: Jane Dotson. Lógico, ela nem sempre foi assim. Ninguém a aguentaria se ela fosse sempre assim. Mudanças de comportamento são feitas com o tempo, e são criadas a partir de interações com as outras pessoas. O que me diz que eu devo ter errado em algum lugar. É verdade que eu não falava muito com Jane há muito tempo. Eu nunca cheguei a dizer para ela sobre o DCAE ou até mesmo sobre os zumbis. Ela acha que eu sou um policial convencional. Para dizer a verdade não consigo conversar com ela coisa alguma, pois como você vê, não há espaço para conversa.

    O correto seria arrumar a cozinha pelo menos e também organizar minhas coisas para que eu pudesse ao menos ter uma noite decente. Mas eu estava cansado... Quem se importa com a bagunça?

    Tirei minha roupa ali mesmo e sem ao menos tomar um banho me deitei.

    Às vezes me deparo pensando em meu estado. Se há dez anos atrás você me dissesse que eu estaria detestando a hora de voltar para casa e mais empolgado com a hora de voltar ao trabalho eu diria que você enlouqueceu. Mas se minhas noites significavam aquilo agora eu não tinha por que ansiá-las mais. Talvez eu realmente devesse realmente começar a frequentar os bares e chegar mais tarde como Jane diz...

    “Jeffrey Sprohic” ex-detento da vizinha Silverbay. Sua casa estava bagunçada do mesmo jeito, mas ele provavelmente não morava lá. Ele devia tê-la apenas alugado para se esconder de alguma coisa... Talvez para esconder alguma coisa. Ele deve estar dormindo em algum hotel com suíte agora... Nem mesmo o pior dos criminosos deve dormir em local parecido com esse ninho abominável de objetos aleatórios esparramados...

    Naquele escuro minha mente começou a transitar de mim para Jeffrey Sprohic. Desesperado para fugir da polícia. Imaginei um ser de dois metros fedendo a carniça bagunçando as coisas e procurando não sei o quê e depois fugindo pela janela. Pudera, a polícia convencional estava atrás dele e depois também o DCAE...

    “Mas antes de procurar e fugir pela janela com a pressa que estou, vou parar para fazer uma boquinha. Rapidinho vou comer um sujeito na frente da minha própria porta e só depois vou continuar a fuga. Não demoro nem dez minutos...”

    Um pensamento irônico, mas algo que eu só havia me ocorrido agora. Aquela ação não fazia sentido algum. Mesmo para um zumbi.

    O suspeito saiu correndo desde a Club Jewel até aquele beco remoto onde tinha alugado, com as joias na mão e a polícia correndo atrás. A polícia afirma tê-lo perdido de vista, mas ele continuou correndo até Marshmoore. Um ser mais esperto faria de tudo para se esconder em algum lugar, no entanto ele decidiu ir diretamente para o local onde morava. O que indica que ele optou por correr ao invés de se esconder.

    Se queria correr, teve antes que passar em seu recinto original e pegar alguma coisa que fosse de valor para ele para só então sair dali. A desvantagem de deixar seu odor em Marshmoore é que agora o DCAE conhece sua identidade por causa do contrato com o locatário, no entanto ganha da desvantagem que teria se tivesse se escondido ao invés de fugido: a polícia provavelmente já o teria encontrado por causa dos cachorros.

    Existe um ponto que pode ser atribuído à burrice ou à inexperiência aqui: o fato de ele ter fugido a pé ao invés de assaltado um veículo. Se ele é um zumbi que nasceu recentemente e não está ciente que pode ser detectado através do cheiro, isso pareceria uma escolha natural, pois ele pensaria que chamaria menos atenção do que com um carro roubado. Ele pensou que despistaria todos policiais convencionais (e aliás conseguiu) e viria para seu esconderijo sem esperar ser encontrado. Se esperasse ser encontrado através do cheiro teria usado um carro ao invés de ido a pé. Então ele não esperava, e era realmente um zumbi recém-nascido. Adicionalmente o fato de que o apartamento estava revirado e a janela aberta indicam que ele estava com pressa por algum motivo.

    E se ele estava com pressa ele não teria parado para se alimentar.

    Zumbis podem ficar até três dias sem se alimentar e sem passar fome, não são como os humanos que não aguentam segurar nem oito horas. Se estivesse realmente com pressa teria deixado a vítima para depois. Ele estava morrendo de fome? Não comia há semanas? Impossível... Se fosse o caso teria atacado o próprio dono da joalheria que estava sozinho no estoque. Se o x da questão fosse sua fome ele teria tomado o cuidado de não atacar ninguém em frente à sua moradia.

    O fato de ter preferido fugir a pé para tentar despistar a polícia pode ser atribuído à burrice intrínseca do zumbi, mas a vítima não pode ser atribuída a nenhum nível de burrice. O fato de ele ter feito uma vítima na frente do apartamento alugado tem que significar alguma coisa. Se ele estava com pressa porque fez uma refeição ali na frente com o pouco tempo que tinha?

    Parei para pensar quando um zumbi faria deliberadamente uma vítima em frente ao lugar onde se mora? Quando planeja-se sair de tal lugar e nunca voltar? Até por isso ele pegou os pertences que lhe importavam, pois já estava planejando deixar aquele local de qualquer maneira.

    É claro... Sprohic nunca pensou em ficar em Sproustown! Ele alugou o local apenas até conseguir as joias e pensava em sair logo em seguida. Já que ele planejava sair da cidade após roubar as joias não tem por que não se alimentar aqui. Pelo contrário, fazendo assim ele ficaria livre para ficar mais três dias sem fazer um ataque, dando a ele o tempo de se estabelecer em seja lá qual cidade for para a qual planeja se mudar sem chamar atenção para si.

    Pensando com esse enfoque, talvez Sprohic não seja tão desprovido de inteligência quanto o zumbi mediano. Ele devia estar ciente que posteriormente seria identificado pelo cheiro e também que sua identidade seria revelada cedo ou tarde. Por isso não se preocupou em esconder seus dados do locatário quando efetuou a locação. Até mesmo porque um ser humano de mais de dois metros não deixa muito espaço para alternativas, existe uma lista muito pequena de possibilidades, dados falsos teriam sido detectados antes ou depois. Mas ele antecipou que até conseguirmos reunir toda a informação para iniciar a busca ele já estaria muito longe de Sproustown. Isso explica também porque preferiu fugir a pé do que de carro: para despistar a polícia convencional. Sabia que não fugiria do DCAE, no entanto nós só começaríamos a perseguí-lo após algumas horas, e até então ele tinha tempo o suficiente para pegar suas coisas, fazer sua refeição e preparar sua saída.

    Se minha teoria estivesse correta ele deveria roubar algum veículo e partir ainda hoje.

    Levantei de supetão e liguei o mais rápido que pude para a divisão de roubos. Perguntei se havia sido registrado algum roubo de veículo entre as duas últimas horas. Após uma espera eles me disseram:

     - Não houve nenhum roubo de carro registrado hoje, tenente Dotson.

     “Nenhum?” Quer dizer que ninguém deu queixa? Será que houve outra vítima e ele roubou o carro após assassinar mais alguém para que não se prestasse queixa? Mas alguém teria avisado a divisão de homicídios... Poderia ter roubado um carro com o dono dentro? Alguém teria informado um sequestro...

    Fiz algumas ligações pensando em tais possibilidades e após o assassinato no beco parecia que nada mais de anormal tinha acontecido em Sproustown naquele dia. Tive que recompor meu pensamento.

    A esta altura eu já estava sem sono e sem cansaço. Estava sentado na cadeira à mesa de jantar perdido em meus pensamentos. Decidi ligar mais uma vez ao DCAE antes que fosse tarde demais.

     - Divisão de casos especiais, boa noite?

     - Alô? Crane? Ah, que bom. Você ainda está aí. Escute... Preciso que você me faça um favor... Eu preciso conseguir todas as informações sobre carros roubados a partir de agora até amanhã de manhã, então, por favor, avise a divisão de roubos, ok? Diga que tem relação com o caso da joalheria e avise-os para manter o jornal longe disso.

     - Alguma coisa aconteceu?

     - Sprohic vai tentar sair da cidade a qualquer momento...

    Não consegui dormir direito aquela noite. Quando eram cinco e meia da manhã, acordei com um telefonema de Crane. Ela me passou a informação de que dois carros haviam sido roubados.

    Me vesti e corri para a central.

    Quando cheguei, apenas Crane estava lá. Naturalmente parecia cansada. Presumi que ela também deveria ter ficado acordada o tempo todo por causa dos telefonemas.

     - Bom dia, Crane. Sinto muito pelo plantão, mas é que não podemos perder o sujeito. Onde está Joey?

     - Ele ainda não veio, vai esperar? Quer que eu vá junto?

     - Tem alguém mais aí?

     - Um pessoal do suporte já está aí. George, Carl, Jackson... Mas não tem nenhum investigador...

     - Pode ir para casa – disse enquanto acendia meu primeiro cigarro do dia – Você já fez o bastante. Eu vou pedir para o Carl e o George me levarem lá. E o Jackson vai seguir o outro carro. Me diga uma coisa... Os avisos dos roubos... Os relatos... Foram feitos quando?

     - Agora de manhã...

     - Que horas? Precisamente? Foram ambos feitos quase que ao mesmo tempo?

     Crane teve uma hesitação de desconforto. Eu estava excessivamente agitado e naturalmente passava minha agitação àqueles com quem me comunicava. Mas é que eu não queria perder o zumbi de modo algum. Ela pensou um pouco e enfim respondeu:

     - S... Sim. Agora que o mencionou... Aconteceram quase que ao mesmo tempo.

     Apenas franzi o cenho enquanto tragava meu cigarro. Era meu costume franzir quando estava com alguma coisa na cabeça. Às vezes eu falava minha mente para quem quer que seja que estivesse me ouvindo, às vezes eu apenas a guardava para mim mesmo.

    Aquele desgraçado... Era mais esperto do que eu julgava. Tudo desde a fuga a pé e o assassinato deve ter sido premeditado. Para o local do roubo foi escolhido Club Jewel e não uma joalheria perto de sua casa para que pudesse ter tempo de despistar os policiais convencionais. Se eles estivessem perto de sua residência ele corria o risco de ser visto quando estivesse saindo do recinto. Escolheu correr a pé porque seria mais fácil despistá-los sem um veículo de grande porte. Ele sabia que o DCAE o encontraria pelo odor, mas devido ao tempo que levaria entre o relato e nossa ação ele teria tempo o suficiente para matar o homem e então sair da cidade. Escolheu matar aquele homem aqui em Sproustown para que ele pudesse ficar sem causar nenhum rebuliço em seu próximo destino; para que pudesse ter mais três dias sem fome e assim sem chamar atenção.

    A única coisa que me intrigava até então era que ele não escapou da cidade imediatamente e eu não sabia por quê. Mas naquele momento vi que isso devia ter relação com a pressa com a qual ele revistou sua casa antes de pular pela janela. O dinheiro conseguido na joalheria deve ter sido somado com uma quantia que ele já possuía. Deve ter sido um dinheiro que foi juntado para pagar uma dívida aqui. É sabido que em Sproustown existem algumas gangues que trabalham com o tráfico de drogas. Devia ter alguma relação com elas... E isso explicaria por que ele não fugiu ontem ao invés de hoje. Ou ele tinha um compromisso com alguém ontem... Ou ele precisava pagar alguém para quem devia no dia de ontem e por isso teve que conseguir o dinheiro de forma ilegal e precipitada, tendo que também elaborar uma fuga para o dia seguinte... Outra possibilidade seria ele estar trabalhando junto com outra pessoa envolvida com o tráfico e por algum motivo iria esperar esta pessoa para sair de Sproustown junto com ela hoje de manhã. Todas essas razões explicavam a espera até a manhã para a fuga da cidade.

    Levando tudo em consideração é difícil acreditar que o desgraçado tenha decidido roubar um carro qualquer para ser o veículo de sua fuga. Ele devia estar ciente que o DCAE já sabia da situação. Ele devia ter elaborado um plano de escape, e por isso provavelmente organizou dois roubos simultâneos para nos despistar. Com este pensamento em mente que perguntei à Crane se os roubos tinham sido feitos mais ou menos ao mesmo tempo, como que para confundir a polícia sobre sob qual carro deveriam manter a atenção. E parecia ser o caso.

    Difícil pensar que um zumbi como Jeffrey Sprohic teria premeditado todos os detalhes de sua fuga sozinho, e somando o fato de que foi capaz de elaborar dois roubos simultâneos para distração me levou a concluir que ele devia estar trabalhando com ou para mais alguém. E isso me levou a crer ainda mais em sua relação com os distribuidores de drogas ilícitas da cidade.

    Mas aumentar o número de roubos não despistaria a polícia, pois basta dividir o pessoal, cada equipe atrás de um carro roubado. Então já que está sendo tão esperto ele deveria estar mais um passo a frente, o que me levou a conclusão mais provável: Sprohic não planejava sair da cidade de carro, mas de barco. E não apenas um, mas ambos os roubos de carro deviam ser apenas mera distração.

    A partir dali trabalhei com esta hipótese em mente.

    Desci até a garagem e organizei o pessoal. Havia seis soldados madrugueiros disponíveis: Jackson, Carl, Rubens, George, Hick e Mike. Organizei a patrulha em três times: Hick e Mike averiguariam o primeiro roubo relatado, Rubens e Jackson perseguiriam o segundo carro e eu junto com Carl e George iríamos até o porto. Eu não passava muito tempo com o pessoal do suporte, até mesmo porque eles ficam no prédio da frente e raramente temos a oportunidade de trabalharmos juntos em uma excursão. Como não sei muito sobre eles posso descrevê-los por sua característica física: Carl era o negrinho de cabelo curto e George era o mais velho, com cara de caminhoneiro.

     - Até o porto tenente? O senhor acha que...? – Indagou George.

     - É. Até o porto. Relaxe. Eu sei o que estou fazendo.

     E esperava que estivesse mesmo. Mas levando em conta o modo como foram feitos os planejamentos de Sprohic até então, tudo indicava que eu deveria estar certo. A hipótese de relação com os traficantes indicava ainda mais a fuga a barco, visto que traficantes são aqueles que têm dinheiro para manter um barco em Sproustown. Em parte tive esta ideia também porque traficantes têm interesse em seres paranormais como zumbis, mas irei deixar para mais tarde os detalhes da interação entre traficantes e seres sobrenaturais.

     Droga. Se eu tivesse o associado ao tráfico ontem antes de ir embora talvez eu já devesse ter chegado a essas conclusões.

    Estava tão certo de que ele estaria pegando um barco que nem parei para pensar que poderia estar expondo as outras duas duplas ao perigo. Afinal depois que enviei Crane de volta para casa apenas eu era um oficial qualificado para lidar com o zumbi naquele início de manhã.

    Após um longo percurso finalmente chegamos ao porto. Desci do carro pensando em informar-me sobre se algum barco já havia partido temendo profundamente uma resposta afirmativa. Porém, assim que desci do carro ouvi um rebuliço vindo do lado esquerdo do estacionamento. Avistei um aglomerado de gente. Deduzi que eles deveriam ter visto alguma coisa. Entrei em contato com Jackson e Mark. Eles ainda estavam se dirigindo para as rodovias. O plano deles era verificar se os carros roubados atravessavam as rodovias em algum momento e para isso contariam com a ajuda da polícia rodoviária uma vez que chegassem a seu posto.

     - Fiquem aí no carro. Eu vou descer lá e ver o que está acontecendo – Disse eu a George e Carl.

    Caído em meio ao tumulto estava um funcionário do porto. Estava desacordado e sangrando demasiadamente. Havia provavelmente tomado um golpe certeiro na cabeça, que o deixara naquele estado.

    Existem quatro características que eu observo em zumbis. Esta é uma das que mais detesto. Assim que se deparam com alguém que se opõe a eles, usam da violência, pois  acreditam que com sua força exagerada conseguirão o que quer que seja.

     - O que houve? – Perguntei a um senhor que estava do meu lado.

     - Parece que ele estava brigando com um grandalhão. Eles estavam gritando alto aí de repente o grandalhão deu um murro nele e ele caiu.

    As pessoas estavam transtornadas devido a seu estado preocupante. Se perguntavam a toda hora quando que chegaria a ambulância e onde se encontrava o brutamontes que havia feito aquilo.

    Uma segunda característica do zumbi é a mente simples. Se o plano do Sprohic é vir aqui, tomar um barco à força e sair, ele simplesmente virá aqui, tomará um barco e sairá, sem pensar muito sobre o assunto. Afinal de contas ele pensa que qualquer contratempo pode ser resolvido com violência. O fato de que ele realmente recorreu à violência indicava que não havia barco nenhum esperando por ele para começo de conversa, mas indicava que ele planejava roubar um aqui mesmo.

    Que sorte. Se o funcionário havia acabado de ser atacado e se ele não tinha barco disponível quer dizer que ele provavelmente ainda estava por ali em algum lugar. As pessoas devem tê-lo perdido de vista não porque ele correu dali muito rápido, mas provavelmente porque se intimidaram com seus mais de dois metros de altura e não foram atrás.

    E com razão. Aquele ferimento causado com um só golpe não deve ser levado em brincadeira.

    Assim que eu ia começar a procurar o alvo entre os barcos eu ouvi um estardalhaço vindo da viatura. “Não pode ser” pensei. Corri em direção ao carro. Chegando lá ele estava com a frente amassada e Carl perecia ao lado da porta. Ele tinha uma pistola na mão. Havia bastante sangue perto dele, o que me preocupou. Agachei-me e balancei-o pelos ombros. Carl acordou.

     - Carl. Carl. Você está bem?

     Ele estava ferido, porém ainda consciente. Conseguiu me responder em voz baixa:

     - Ele apareceu. É um gigante. Estava correndo em direção àquele barco azul de dois andares. Aí eu peguei a pistola e atirei. – Ele tossiu e sua cabeça caiu devido à tontura.

     - Carl. Se acalme. Onde está o George? Não me diga que ele..?

     - Ele foi atrás... – Huh... Sua voz falhava.

    “Aquele desgraçado... E deve ter feito isso num só golpe também...”

    Como George não estava ali eu tinha que escolher entre chamar reforço ou persegui-lo eu mesmo. Mas eu estava querendo capturar o bandido já fazia algum tempo e ele estava quase fugindo de barco, então protelei o socorro. Fui em direção ao barco recomendado, e percebi uma trilha de sangue deixada pelo caminho. Provavelmente era do próprio Sprohic porque George não o perseguiria sem experiência se estivesse machucado. O que queria dizer que eles deveriam tê-lo acertado com algum dos tiros e ele ainda assim resistia.

    Resistência. É a terceira característica do zumbi. Sua resistência física os permite ficar indiferentes ao que parecem ser os mais graves dos ferimentos, o que evidencia ainda mais sua falta de humanidade.

    Avistei George apontando uma pistola para Sprohic que estava com um ferimento que tinha perfurado sua camiseta, parecendo ter sido feito por uma bala. George usava um calibre 22, e por causa da resistência inerente de sua espécie, Sprohic podia tomar aquelas balas e ainda permanecer de pé. George sem desistir ainda apontava sua arma para o fugitivo, exibindo uma expressão mista entre estarrecida e intimidadora.

     - George...

     - Senhor! As armas não estão fazendo efeito!

     - Largue a arma. Deixe que eu cuido disso.

    George abaixou sua arma e eu apenas me dirigi em direção ao barco me aproximando em passo normal mesmo. Já que o criminoso nem havia iniciado o barco não teria como fugir do local em que estava. Ele estava encurralado.

    Chegando mais perto dava para ver o quanto ele era mais alto que eu. Como trinta centímetros fazem diferença. Eu parecia um filho de dez anos olhando para o pai. Desde tamanho a massa muscular, contraste provocado pela carranca na sua cara careca e posição faustosa, sua figura, devo admitir, era deveras minaz e imponente. Faria qualquer policial convencional mijar nas calças.

    Sprohic deu um risinho de desdém e disse:

     - Vocês policiais continuam aparecendo. Não percebem que suas pistolas não adiantam? – Ele deu uma gargalhada e mostrou as feridas feitas em seu peito: uma bala estava atravessada até menos da metade em um buraco que até fez um sangramento, mas muito menor do que o tamanho que deveria ter sido – Chequem estre corpo! Ele é indestrutível!

    Ele esperou reação temerosa da minha parte. Prossegui andando calmamente até ele. Fez uma careta enfezada.

     - Ok. Parece que vou ter que fazer mais dois cadáveres antes de ir...

     Ele pegou uma caixa pesada de pesca que estava no chão do barco, perto da porta, e começou a correr em minha direção. Fiz sinal para George se afastar.

    A quarta característica típica do zumbi é a confiança total em sua força bruta. Como eu havia dito: se algo não fosse conforme seu plano, Sprohic usaria da violência para fazer a situação voltar ao cenário inicial que estivesse planejado. Foi assim quando atacou o funcionário e provavelmente o que ocorreu quando Carl tinha tentado capturá-lo enquanto eu estava no meio da multidão.

    Caráter violento, raciocínio simples, resistência, força bruta e excesso de confiança. Parece o que faz um vilão típico formidável de uma história em quadrinhos, por exemplo. Ironicamente na vida real dentre a lista de seres potencialmente perigosos do DCAE são as características dos seres candidatos aos mais fáceis de lidar.

    Resistência e força bruta à parte, tudo são desvantagens. O caráter violento faz com que ele deixe pistas o suficiente para ser descoberto durante seus ataques, a mente simples faz com que suas atitudes sejam previsíveis e a confiança o faz preferir uma luta direta ao invés da fuga, todas facilitando o trabalho da polícia.

    Sprohic se aproximou determinadamente e quando suficientemente perto, rodou o braço e me acertou com a caixa de pesca direto na minha cabeça, imaginando que a estilhaçaria em pedaços. Deve ter empregando a mesma força de golpe que deu naquele vidro quebrado da Club Jewel. Seu riso perverso cobriu seu rosto durante todo o impulso até a hora do contato.

    Bam!

    Houve um barulho oco e a caixa se desmontou em mil pedaços, os quais caíram para todos os lados. O próprio Sprohic teve seu corpo jogado para trás com a força do golpe.

    Vou dar um e meio de dez para ele: não foi de todo ruim. Minha cabeça deve ter se inclinado para a direita mais que uns dois centímetros com o impacto. Um pequeno sangramento começou a escorrer por uma de minhas marinas. Com uma mera fungada fiz o sangue parar.

     - Então esse é o golpe que quebrou o vidro de cinco centímetros da joalheria? Nada mal... Parece forte, mesmo.

     - Mas que diabo?

    Sprohic agora tinha uma expressão completamente estarrecida. Não o culpo. É típico de um zumbi recém-nascido imaginar que é o único com propriedades físicas exageradas em comparação com os demais humanos. Não pensaria que existe outro com as mesmas propriedades. Já não podia mais usar a caixa que fora despedaçada quando me acertou.

     - O que...? O que é você? – Ele brandiu e investiu num ataque surpresa, almejando desferir uma sequência de golpes de curto alcance.

    Seus movimentos a meu ver pareciam lentos demais. Desviei sua investida virando meu corpo lateralmente e então quando ele estava perto o suficiente acertei com o joelho em sua barriga, no que ele forçadamente inclinou seu gigantesco corpo de mais de dois metros para a frente. Inclinou-se rápido e exagerado, igual a um verme quando se contorce. Cuspiu sangue com a batida. Quando ele estava na altura certa desferi-lhe uma direita no rosto com que ele veio abruptamente ao chão. Tudo aconteceu em um instante apenas.

    Acendi um cigarro e olhei para seu desgosto. Enquanto podia aguentar os ferimentos superficiais das balas parecia que aqueles golpes compactos tinham feito considerável efeito em seu corpo. Ele franziu o cenho e esforçou-se para levantar. Seu orgulho não o permitiria desistir tão fácil.

    Eu usava meus coturnos de ponta de ferro, parte do uniforme do DCAE, na ocasião. Antes que ele tentasse qualquer coisa chutei-o diretamente em sua face duas vezes. Com aquilo Sprohic finalmente parou de se mexer. Ainda tragando meu cigarro disse a George:

     - Pronto. Traga as algemas do carro. Cuidado, ele é forte. Vai precisar de várias.

     - S... Sim, senhor. – Ele guardou sua arma de fogo e acatou minha ordem. Não proferiu mais uma palavra no caminho de volta.

     Após aquele incidente levamos o suspeito até a central, onde ele ficou preso pelos próximos dias, até a capitã decidir para qual unidade penitenciária seria levado. Os ferimentos de Carl foram tratados imediatamente e felizmente nada de grave havia acontecido. Apesar de o bandido quase ter escapado foi considerado um caso de sucesso de nossa divisão.

     Essa é a história da vida cotidiana de um tenente do DCAE. Dentre as coisas com as quais temos que lidar em nosso trabalho, Jeffrey Sprohic era apenas um peixe pequeno.

  • Hinderman - Capítulo 2

    Capítulo 2

    (    Continuação do capítulo 1. Para ler o capítulo anterior acesse:  )

     - Ah. Como esperado, esse café é o melhor de todos. – Disse o Gary enquanto ele dava o último gole em seu macchiato.
     - É mesmo. - O Boe concordou.
     Nós estávamos no Ivory Beans, na rua principal do Glen Meadow.
    - Quer dizer então que não deu certo, Spike? – O Gary dirigiu-se a mim – O Jeffrey acabou sendo pego?
     - Parece que sim. – Eu respondi. - E ele vai ficar preso um bocado, porque aconteceu um assassinato...
     - Eu ouvi falar do assassinato. Foi em Marshmoore. – O Boe disse enquanto tomava um gole da água com gás que vinha junto do expresso – Fiquei surpreso quando ouvi dizer que ele tinha comido um ser humano justo no dia do trabalho.
     - Muito burro, mesmo. – Observou o Gary.
    Eu me inclinei na cadeira e pus os braços atrás da minha cabeça. Me lembrei do que o chefe tinha me dito sobre o tal do Jeffrey:
     - O chefe disse que queria ele no time. Se ele tivesse conseguido juntar o dinheiro no tempo estabelecido, era capaz que ele se juntasse ao grupo.
     - Está brincando? Se juntar a nós? Ao Spikey-Gary-Boe? Um zumbi desengonçado?
     - É o que ele disse.
     O Gary deu de ombros.
     - Bem... Não sei exatamente o quanto o chefe compreende sobre as habilidades dos mercenários. Devia saber que não é qualquer um com uns Newtons a mais de força no braço que vai conseguir fazer os trabalhos que a gente faz.
     Eu adicionei:
     - E o pior de tudo é que um zumbi recém-nascido como ele não só não sabe o que está fazendo como não sabe nem esconder o poder que tem, também. Roubou o dinheiro de uma joalheria, acredita?
     - Pbbbbt! – Boe cuspiu um gole de seu café e desatou a rir.
     - Parece cômico, mas estou falando sério.
     O Gary fez uma expressão interrogativa, com a mão sobre o queixo e o corpo inclinado para frente. Perguntou:
     - Mas por que será que o Verde pediu para ele devolver o dinheiro? Se ele queria o dinheiro devia ter pedido para a gente...
     - Acho que... Porque foi o irmão dele, sabe, o Alex... Foi o próprio Alex quem perdeu o dinheiro?
     - Mesmo assim. Ninguém nunca tinha recebido uma chance antes. O Verde é bem metódico nessas coisas. Se alguém perde o dinheiro depois do prazo... -Gary passou o dedo sobre a garganta e fez um barulho.
    Éramos o grupo de mercenários: Spikey-Gary-Boe. Nenhum usando seus verdadeiros nomes, óbvio. Meu nome por exemplo não tem nada a ver com Spikey, eu me chamo Ethan Doyle.
    Dos três, o Gary era o mais magro de barba ligeiramente por fazer. Era alegre e presunçoso. Era parecido comigo, com o mesmo corte de cabelo, isto é, curvo em cima e reto nas costeletas, e tinha também cerca de minha idade.
    Já o Boe era o mais encorpado e de cabeça redonda. Também o mais velho e realizado. Tinha uma mulher e um filho quase crescido. Eu não sei por que ele insistia em trabalhar ali.
    E aquele que chamávamos de Verde era o nosso chefe. Não éramos contratados exclusivos de um só empregador, mas apenas acontecia que naquela ocasião estávamos trabalhando sob as ordens dele.
    Acho que eu devo a vocês um panorama da situação que era a atual naquele ano. Serei breve, eu prometo:
    Sproustown sempre foi conhecida por ter diversas gangues, envolvidas com tráfico de drogas. Antigamente era um problema que a polícia civil conseguia dar conta. Isto é, mais ou menos... O tráfico era considerado trabalho deles porque eram apenas gangues relativamente pequenas e inexperientes. Começaram vendendo drogas ilícitas na beira da praça de skate e coisas assim.
    À medida que os empreendedores foram vendo que o negócio funcionava, começaram a se estruturar melhor, e eventualmente os mesmos cabeças, aqueles que tinham ou mais conhecimento ou mais recursos para se esconder devidamente da polícia acabaram ficando com monopólios.
    Como estes monopolizadores eram espertos, qualquer concorrência nova que aparecia era rapidamente dedurada, capturada pela polícia, ou encontrada misteriosamente morta no dia seguinte. No entanto por mais que a polícia trabalhasse para capturar estas mentes por trás destes feitos, sempre acabavam capturando os capangas e meros mercenários, mas nunca chegando na raiz do problema.
    Querem saber a razão principal pela qual eles nunca eram pegos pela polícia? Porque em tudo o que faziam, fosse para organizar seu trabalho: datas de entrega, transporte de mercadoria, acertos de contas, etc... Em tudo o que faziam eles empregavam seres “paranormais”. Como seres paranormais fazem as coisas de maneira diferente com a que os seres humanos estão acostumados, quando as coisas aconteciam, os policiais – que eram também seres humanos – não entendiam como o negócio foi feito, entende?
    Para dar um exemplo: após aquele ataque na Club Jewel que o Jeffrey fez, o jornal não conseguia explicar como o vidro tinha sido quebrado com um murro só. Na manhã seguinte estavam querendo entrevistar o dono da loja, e não acreditavam nele de forma alguma. Não queriam publicar a matéria do jeito que ela realmente aconteceu. Os jornais não acreditam em seres paranormais.
    E estes seres “paranormais” somos nós. Nada temos de tão diferente, somos normais, mas os humanos classificam-nos como paranormais porque não querem aceitar a nossa existência. Eu poderia expor a opinião que tenho sobre isso, mas vou deixar para outra hora. Enfim, um fato que eu não posso negar é que essa falta de consideração facilita o nosso trabalho.
    Desta forma, o panorama atual do esquema de gangues era o seguinte: havia três gangues principais que disputavam o negócio das drogas ilegais em Sproustown: os dragões, que são uma gangue de verdade, mesmo. Do tipo do Yakuza... Inclusive fazem tatuagem e tal, o que eu acho ridículo. Havia também os que trabalhavam para o Wilkinson. E por fim o pessoal do Verde. E era para o Verde que o Spikey-Gary-Boe estava trabalhando já fazia algum tempo.
    A região do chefe era a do sul. Se alguém começasse a vender mercadoria no sul de Sproustown nós rapidamente descobríamos a fonte e dávamos um jeito. Nem mesmo os dragões ou os Wilkinsons ousavam pisar em nosso território. Não porque fôssemos os maiorais. Se fôssemos os maiorais nós simplesmente eliminávamos os Wilkinsons e os dragões e ficávamos com o monopólio sobre a cidade toda. Mas é que esses três grupos tinham uma influência similar. Era preciso gente defendendo o território e era preciso mais gente para fazer o trabalho. Se um grupo quisesse arriscar enviar ainda mais gente para invadir o território de outro acabaria enfraquecendo o seu pessoal e sendo assim, a terceira parte se aproveitaria da situação e provavelmente acabaria ganhando vantagem sobre as duas equipes que tinham engajado em luta a princípio.
    Era uma situação difícil. Estávamos os três grupos de mãos atadas. Desta forma, cada um ficava em seu pedaço e cada um não deixava ninguém mais pisar em seu próprio pedaço.
    De qualquer forma, após esta paráfrase carregada de informações provavelmente desinteressantes, chego ao ponto principal: o caráter do Verde. O chefe não era do tipo que perdoava facilmente. Tudo o que ele conquistou é baseado na confiança entre comprador e vendedor. Ele trabalha duro para sempre encontrar a mercadoria, garantir o transporte adequado, a qualidade do produto e fazer a transação na hora marcada pelo procedimento correto, tomando todas as medidas para que não haja interrupção de parte da polícia ou qualquer outro imprevisto que prejudique o consumidor. Em troca, tudo o que ele pede são duas coisas: um, que o pagamento seja feito da forma adequada; dois, que o consumidor evite referenciar qualquer coisa relacionada a ele para quem não esteja envolvido.
    Outro dia nós tivemos que lidar com um cara que tinha dado o calote, por assim dizer, no chefe. Era um empregado de alto posto de uma rede de móveis, acho que subgerente geral ou algum nome parecido... Fez a transação e entregou só um terço do combinado. E depois sumiu do mapa. De Sproustown. O chefe ligou para ele uma vez.
    Uma vez.
    Ele não atendeu.
    Depois ele chamou o Spikey-Gary-Boe e demos um jeito na situação. Não recuperamos o dinheiro, mas a dignidade do chefe está a salvo. Que sirva de exemplo para os próximos: saberão que ninguém passa a perna nos verdes.
     E na noite passada era a vez de um tal de Alexander Sprohic. Um cara só. Ele não é filiado a nenhum distribuidor nem empresário rico nem nada do tipo. É apenas um consumidor solitário. E devedor. Não pagou o combinado.
    O que chefe faz? Nos chama novamente? Seria o esperado, mas não foi o que ele fez. Ao invés disso chamou o irmão de Alexander, o Jeffrey, que era literalmente um cadáver ambulante e pediu para ele recuperar o dinheiro de forma que conseguisse. Só posso dizer que eu achei esquisito. Numa transação de grande porte, o chefe não se importou em tirar a vida do cliente devedor, e agora que é um só...
    Enfim, retomando aos acontecimentos daquele dia, Gary disse:
    - Mas mesmo assim. Ninguém nunca tinha recebido uma chance antes. O Verde é bem metódico nessas coisas. Se alguém perde o dinheiro depois do prazo... - Gary passou o dedo sobre a garganta e fez um barulho.
    E o Gary tinha razão, aquela atitude era realmente esquisita.
     - Talvez então por causa do que eu disse antes? Lembra que ele disse que talvez quisesse recrutar o Jeffrey?
     - É mais fácil fazer ele trabalhar em troca de dinheiro ao invés de pedir para ele roubar de qualquer lugar – contra-argumentou o Boe com um gesto condescendente com sua mão livre – O garoto não tinha experiência.
    Apoiei minha mão sobre o queixo, cujo braço estava com o cotovelo apoiado na mesa.
     - Pois é, esse teste é um tanto profissional demais para se dar a alguém que acabou de nascer. O Jeffrey, como zumbi, tinha acabado de nascer, não?
     - Não é bem assim, ele devia ter já uns dois, três anos... Mas é que ele passou todos eles na prisão, pois encontraram ele já quando ele nasceu na forma zumbi. Apenas como solto é que era o seu primeiro mês. Tinha acabado de sair da penitenciária e o Alex já me perde o dinheiro... Aí o chefe já entra em contato com ele e acontece tudo aquilo.
     - O que já é estranho – interrompi – Reparem que ele é um zumbi. Desta forma tem que se alimentar de carne. Eles não podem simplesmente soltá-lo como se ele tivesse pagado a pena dessa maneira. Normalmente a polícia o teria aniquilado já após o nascimento, inclusive.
    O Gary fez um “hum” e então contribuiu:
     - Não sei... Parece que deve ter muita política envolvida por aí. Quem sabe o que se passa na cabeça desses humanos policiais? O que eu acho esquisito mesmo é a mudança repentina de comportamento do Verde, sabe? Qual é? Somos o grupo do Verde! Ninguém fica devendo para nós... Amigos... Acho que eu vou pedir outro café. – Gary preparou para se levantar.
     - Então vá lá... – Encorajou o Boe.
     O Gary se dirigiu até o balcão.
    Olhei para o Boe durante uns instantes no que veio um pensamento me veio à mente:
     - Já sei! E se não é só que o chefe queria recrutar o Jeffrey, mas ele queria substituir um de nós? Ou todos nós? Por isso queria ver se ele já aguentava com os desafios maiores logo de início?
     - Ei... Está falando sério? Substituir nós três? Por um zumbi burro daqueles?
    Verdade... Não fazia sentido.
     O Boe terminou sua água com gás e empurrou o pires com a xícara e o copo para o centro da mesa.
     - Ele pode até ser um ser paranormal, mas tudo o que ele tem é força. Não teria método para fazer nada. Mesmo se não fosse a polícia civil, mais cedo ou mais tarde os caras do DCAE pegariam ele.
     - Os policiais do DCAE são durões, não? Se não tiver cuidado com eles...
     - Ouviu falar que um deles venceu o irmão do Alex em um soco só?
     - O Jeffrey?
    Gary já estava voltando do balcão.
     - Bam! Um soco só. O cara caiu no chão.
     Olhei firmemente para o Boe. Uma coisa era vencer o zumbi. Relativamente fácil. Qualquer um de nós conseguiria. Outra coisa era fazer com um golpe só...
     - Tá... E quem te disse isso? Eles não teriam colocado isso no jornal ou nem nada do tipo.
     - Ouvi direto do Verde. Ele tem os contatos... Ele sabe tudo o que acontece no DCAE.
    Era verdade que o chefe conseguia informações de diversos locais em Sproustown aparentemente do nada. E o DCAE era um desses locais. Mas dizer que ele sabia “tudo” o que acontecia lá dentro era um pedaço de exagero. Às vezes o Boe podia se passar por exagerado. Resolvi não comentar nada. Olhei para o Gary puxando a cadeira para se assentar novamente.
    - Agora eu também quero mais um expresso. – Disse e fui até o balcão.
    “Substituir nós três? Por um zumbi burro daqueles?”
    O Spikey-Gary-Boe tinha realizado grandes feitos não só apenas em Sproustown sob as ordens do chefe, mas desde antigamente quando fazíamos parte de um grupo mercenário no norte do Canadá. Comparar nossos feitos com um roubo malsucedido de um recém-nascido era um insulto. Mas faria sentido se o chefe estivesse almejando cortar gastos. Apesar de estar trabalhando para ele naquele momento não fazíamos parte do grupo oficialmente. Poderia ser que ele estivesse à procura de verdadeiros seguidores paranormais? Que ele desejasse pessoal de confiança ao invés de ter que pagar estranhos por cada trabalho? Poderia ser até que ele já tivesse contratado um ou dois? Nós não passávamos muito tempo com o nosso empregador e não sabíamos muito dele a não ser quando ele nos chamava para conversar sobre um ou outro caso em específico. Sabe lá o que ele escondia para si mesmo.
    Eu não sou apegado a ninguém, mas não podia negar que se este fosse o caso eu estaria sim em um pouco de apuros até que pudesse encontrar outro empregador na mesma área. Isto é, um outro empregador de mercenários paranormais que inspirasse confiança... Por isso não podia evitar em ficar preocupado com aquele pensamento.
    Com meu expresso em mãos voltei à mesa e ouvi o Boe contando algo que eu não sabia entusiasticamente para Gary:
     - Sério, Gary! Ele que me falou! Tudo foi arrumado para que o Alex perdesse o dinheiro no dia.
     - Não entendi... Mas o que o Verde ganha perdendo o dinheiro?
     - Então... Ele ganha que recruta o Jeffrey, isto é, se ele não tivesse sido pego pela polícia no primeiro roubo que tenta.
     - O que vocês dois estão dizendo de perder dinheiro? – Perguntei enquanto dava um gole no melhor expresso quente da cidade.
     Eles se entreolharam.
     - Diga para ele, Boe.
     - Então... Eu estava dizendo... O irmão do Jeffrey, o Alex, não perdeu o dinheiro aquele dia... Ele foi roubado.
     - Ah sim, isso eu já sabia. Foram dois caras com uma van. Um cabeludo e um parrudo. Bateram nele, levaram a mala e deixaram ele jogado no meio fio – Me sentei a bebericar meu cremoso café quente.
     - Sim. E foi o próprio Verde que contratou os ladrões.
    Quase cuspi meu expresso.
     - Que?
     - Estou dizendo. Ele contratou os dois justamente para fazer o Alex ficar devendo... E daí ele foi direto conversar com o Jeffrey dizendo que o irmão dele estava devendo dinheiro. Dizem que foi por isso que ele fugiu da prisão.
     “O Jeffrey... Fugiu da prisão?”
    Esse era um bom compilado de informações que eu não sabia, esse que o Boe estava revelando. Primeiro que eu achei que o Jeffrey tinha saído da prisão “antes” de Alex ter perdido o dinheiro, e só havia coincidido do chefe ter dado a chance para ele conseguir o dinheiro de volta. Segundo havia aquela parte de o próprio chefe ter armado tudo desde o contrato dos ladrões. Terceiro, eu nunca havia parado para pensar no porquê, mas eu apenas supus que ele tinha sido solto e não fugido. Mas agora o Boe me diz que ele não foi liberado da prisão mas fugiu; e o fez justamente porque seu irmão perdeu o dinheiro e ele precisava conseguir de volta.
     - E Boe, me diz uma coisa... De onde você ouviu isso?
     - Estou falando... Ouvi tudo do próprio Verde.
     - Ele falou isso... Para você?
     - Não, não... Eu estava lá após aquele dia do cara dos móveis, lembra? Eu esqueci os Tar Lights lá e voltei buscar. Depois do trabalho ele estava falando com um velho gordo com pinta de rico. Aquele lá é um patrocinador do negócio dele. E daí por acaso eles estavam discutindo...
     Sempre que o Gary dava um gole me parecia que o macchiato era mais gostoso que o expresso. Quase quis pedir mais um naquele momento.
     - Tá... Você estava bisbilhotando a conversa do chefe quando voltou para buscar os cigarros.
     - Por acaso, Spikey... Por acaso...
    Desta forma se o que o Boe dizia não era mais um de seus exageros isso devia confirmar minha teoria de que o chefe estava procurando mais poder paranormal para seu grupo, o que não necessariamente significava que ele queria se livrar de ter que pagar pelos nossos serviços, mas poderia significar. Devido à qualidade de nossos serviços não éramos exatamente o grupo profissional do ramo mais barato que se tem... Com esta preocupação, resolvi partilhar minha opinião com os dois:
     - Se o que ele conversou com o gordo aquele dia é verdade... O chefe pode estar querendo se ver livre do Spikey-Gary-Boe, não? Quer dizer... Pode estar querendo salvar dinheiro... Tempos difíceis. O que vocês acham? Isso seria ruim porque dificilmente vamos achar outro empregador aqui em Sproustown que não o Dragão ou o Wilkinson... E eles provavelmente já devem saber que temos algum envolvimento com o Verde...
     O Boe não respondeu imediatamente e nem me olhou diretamente quando o fez. Pensou um momento e só então decidiu:
     - Acho que não... Para o chefe trocar três seres “paranormais” assim de uma hora para outra... A simples comparação entre a gente e o irmão do Alex é ridícula. Ele sabe que somos profissionais. E não bastasse isso somos três. Se ele quiser se livrar de três do grupo ao mesmo tempo... Digo... Ele tem que ficar muito enfraquecido se comparado ao poderio dos grupos do Wilkinson ou do Dragão.
     - É... Você deve estar fazendo tempestade em copo de água – complementou Gary –
     - Além do mais, se ele realmente quisesse cortar relação... Como nosso chefe ele teria avisado previamente, não teria porque manter segredo.
    Aqueles argumentos também faziam sentido.
    Eu provavelmente estava imaginando coisas e o chefe estava pensando em alguma outra coisa que não isso. Não podia deixar de achar o comportamento dele estranho, entretanto... Contratando ladrões e incitando zumbis a escapar da prisão daquele jeito...
    O Gary já tinha quase acabado o café dele e eu nem tinha começado o meu expresso.
     - Amigos... Acho que vou pedir mais um.
    - Vá lá. – Encorajou o Boe.
     Fiquei na dúvida entre se eu deveria pedir o macchiato típico da Ivory Beans ou me dar por satisfeito. O Boe só bocejou e começou:
     - É... Está acabando o horário de almoço... Vamos ter que voltar...
     - Tive uma ideia! E se telefonássemos para o chefe e perguntássemos? – Bati com a xícara na mesa.
     - Perguntássemos o que?
     - O que ele queria quando contratou os ladrões para roubar o próprio Alex. Temos o direito de saber, não? Afinal poderia dar a entender que ele estava querendo substituir a gente... Mesmo que tenhamos acabado de concluir que não. Mas se poderíamos concluir que estávamos perdendo nosso cargo temos o direito de exigir a verdade!
     Por algum motivo eu precisava ter certeza.
     - Você está louco, rapaz? Eu apenas ouvi a conversa do Verde e do gordo aquele dia por acaso. Ele não disse isso diretamente para mim.
     - Hum, tem razão... Mas então nesse caso, para ter certeza... Poderíamos inventar que ficamos intrigados que ele deu uma chance a mais para o irmão do Alex e daí tivemos essa ideia que ele não queria mais os nossos serviços. Que tal? Poderíamos formular a pergunta com esse pretexto!
    O Boe me fitou um momento e por fim concordou:
    - Acho que sim... A melhor ideia deve ser perguntar direto para ele ao invés de ficar especulando... Mas por que tanto interesse, Spikey? Com medo de perder o trabalho?
     Nisso meu celular tocou. Para a minha surpresa era o chefe.
     - Falando no diabo...
     - É o Verde?
     - Oi... – Atendi.
     - Oi Spikey. Onde vocês estão?
     - Chefe... Estávamos indo. Só acabando aqui e já vamos para aí.
     - Tudo bem, à vontade. Só que eu tenho que falar uma coisa para vocês... Pessoalmente.
     - É sobre o Jeffrey?
     Um silêncio.
     - Não... É outra coisa. O do Sprohic já foi decidido.
     - O senhor não vai ficar com ele então?
     - Ficar...? Com ele? Como assim?
     - É que estávamos especulando, sabe... O senhor estava dando uma chance para ele conseguir o... A mercadoria de volta. Ele tinha pisado na bola e tudo... E como ele é, sabe...
     Verde interrompeu com uma piadinha de mau gosto
     - Ei, ei, Spike... Não coloque frases como “vai ficar com ele” quando se trata a meu respeito... Pega mal haha.
     - Haha. Ha!
     Um silêncio.
    O Verde retomou o tom de seriedade:
     - Sim... Eu queria ele, mas não deu certo... Você deve ter visto o jornal...
     - Pois é, é que na realidade estávamos pensando... Eu, o Gary – O Gary, aliás, estava chegando novamente à mesa com seu novo macchiato – O Boe... Estávamos pensando... Se o senhor está disposto a recrutar novos... Sabe... Novos trabalhadores... Então será que está... Pensando em se desfazer de nossos serviços?
     Acho que eu falei diretamente demais. Ele não respondeu. Tentei amenizar um pouco:
     - Digo... Não que tenhamos algo a ver... Digo, não queremos dizer ao senhor como trabalhar, mas... Gostaríamos de ser avisados se... Enfim estávamos pensando se fosse o caso, se o senhor poderia avisar-nos com uma antecedência. E se possível... Se...
     - Vocês pensam demais não? Vocês três? Você, o Gary... – Verde bocejou – O Boe...
    Ele fez uma pausa e emendou:
    - É o seguinte: eu só queria ver a qualidade de um... De alguém como o Sprohic. Nada mais.
     - Ah sim...
     - Pode deixar, eu aviso vocês se estiver pensando em qualquer coisa. Questão de boa política eu sei. Não perco nada avisando vocês previamente quando eu não quiser mais os serviços, então se um dia eu quiser cancelar o serviço eu vou avisar, ok? Podem ficar sossegados... Eu ainda “vou ficar com vocês”, haha.
     - Ha...
     Mais um momento de silêncio.
     - Mas então... Só liguei para avisar... Temos que conversar sobre uma coisa... Não posso falar no telefone, você entende...
     - Sim, sim...
     - Então até mais.
     Eu ia responder, mas ele mesmo respondeu a si mesmo em outra entonação, como que se me imitando:
     - Até mais, tchau.
     E desligou.
     Olhei para eles dois.
     - E aí? – Perguntou Boe.
     - O chefe disse que está tudo bem entre a gente... Ele quer que façamos um novo serviço.
     O Boe palitava os dentes e Gary por incrível que pareça estava nos últimos goles de sua terceira xícara.
     - Bom... – Começou Gary- Se o chefe disse que está tudo bem... Então não deve ter por que se preocupar.
     - Eu falei para você – emendou Boe – Está pensando demais. O Verde não faria isso com a gente. A essa altura o Spikey-Gary-Boe é essencial no trabalho dele.
     - É... Tem razão.
     Por algum motivo tinha alguma coisa me incomodando que eu não conseguia dizer exatamente o que, e por mais que o chefe e os dois me dissessem que estava tudo normal... Algo naquela história toda dos irmãos Sprohic não fazia sentido.
    Finalmente o Boe levantou-se, espreguiçou-se e convidou-nos:
     - Vamos então? Se o Verde quer que façamos um novo serviço é melhor se apressar para se preparar. Sabe lá se ele vai querer que isso seja resolvido até quando.
     - Verdade – concordei – Melhor irmos o quanto antes.
     - Esperem, amigos...
     - Hã?
     - Acho que vou pegar mais um último cafezinho...

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