Uma coluna vertical de fumaça cobria o pôr-do-sol e eu tentava não prestar atenção nela. Não dava atenção aos murmúrios a minha volta apesar de estar ciente de que a qualquer momento meu corpo também poderia responder ao que estava ocorrendo. Respirei fundo e continuei contemplando o brilho alaranjado do sol que se deitava atrás das montanhas. Aquela era a hora perfeita para o que estava acontecendo.
Olhei de relance para baixo e vi a palha se contorcer e mergulhar nas chamas. Sobre ela, entre vários pedaços de madeira, havia cinco corpos que pouco a pouco se tornavam cinzas e memórias. Eu devia estar de joelhos, meus olhos deviam estar queimando como os olhos de todas as vinte pessoas que estavam a minha volta, mas aquela não era a primeira vez, e com certeza não seria a última, em que eu cremava corpos de pessoas tão jovens.
O mundo era assim. Todos os dias ouvíamos notícias de mais e mais mortes espalhadas pelo país e pelo mundo. Costumávamos ser uma grande família, eu e todos aqueles que se refugiavam nos campos de Brighton. Hoje não chegávamos sequer a trinta.
Eu cresci em um mundo diferente. O mundo após o mundo. Pessoas diziam. Nada mais era como costumava ser na época de nossas tataravós. As pessoas na minha época matavam sem motivo, destruíam umas às outras, arruinavam vidas. Tudo havia mudado. O clima não era mais o mesmo, era extremamente quente e sufocante ou cruelmente frio. Em alguns lugares o ar era corrosivo de uma forma que quem o respirasse começava a vomitar sangue em segundos. A terra era traiçoeira, alguma coisa embaixo dela havia crescido, havia relatos de pessoas sendo engolidas sem deixar rastros. Os oceanos agora eram uma zona morta. Nada, nenhuma sonda ou qualquer outra coisa podia mapear os mares e descobrir o que vivia nas profundezas, era como se um tipo de sistema de segurança protegesse a vida marinha da interação humana. Os animais eram ferozes, muitos foram extintos, mas os que surgiram depois fizeram das regiões remotas um lugar inabitável.
Tudo isso graças ao metal.
Meu pai um dia me contou sobre a mudança pela qual o mundo passou. Tudo isso ocorreu quando Mercúrio, o Planeta mais próximo do sol, entrou em colapso e milhares de meteoros caíram sobre a Terra.
Naquele dia o mundo conheceu o apocalipse. Segundo ele, que ainda era criança na época, as maiores potencias do planeta desmoronaram como um castelo de cartas. Os Estados Unidos foram afetados por grande parte dos meteoros, o Canadá foi varrido do globo em minutos, assim como a America do Sul, parte do continente Africano e da Ásia. Cinquenta por cento da Rússia virou uma pilha de destroços e a humanidade por pouco não foi dizimada.
Dias depois do apocalipse, com o caos que tomava conta do planeta, algumas das potencias que ainda permaneciam intactas: Estados Unidos, Rússia, África, França, Inglaterra e China perceberam que precisavam unir todo seu poder se quisessem salvar o mundo da ruína. Foi com essa união que nasceu o Ristrad. Uma organização que tratou de resgatar todos os que ainda estavam vivos e cuidar para que pudessem recomeçar suas vidas.
Mas como recomeçariam suas vidas se tudo o que conheciam havia sido destruído? Em que lugar viveriam?
Foi com essa necessidade que o Ristrad descobriu que aquela chuva de meteoros havia trazido para a Terra um tipo de metal altamente maleável. E havia uma fonte ilimitada dele em cada fragmento de Mercúrio caído na Terra. Foi com esse metal que o Ristrad reconstruiu o mundo. Eles o chamavam de Ciner, um metal indestrutível jamais visto em qualquer lugar do mundo.
Segundo meu pai, em poucos anos o mundo havia renascido e a humanidade caminhava para um futuro.
Só que não foi o futuro que imaginavam.
Havia algo no metal que começou a afetar toda forma de vida no planeta, principalmente os humanos. Pouco a pouco as pessoas começaram a ser tomadas pela ganância, logo em seguida pela ira até chegar a um desejo incontrolável de matar. Nem todos eram afetados, era como se o metal soubesse quais pessoas tinham tendências homicidas e conseguia extrair o pior de todas elas.
Com o planeta mudando, muitas partes do mundo se tornaram inabitáveis. E com as pessoas matando umas às outras nas ruas o Ristrad precisava tomar providencias.
Foi neste momento, quando eu tinha seis anos de idade, que o segundo apocalipse ocorreu. Foi quando o Japão surgiu com a promessa de que poderia acabar com o caos. Foi apresentada ao Ristrad uma empresa armamentista conhecida como Amisix, liderada por um americano, Magno Carnalis, ele prometeu acabar com o caos apresentando ao mundo o que o metal Ciner podia desenvolver de melhor: armas.
Magno apresentou armas e dispositivos criados pela Amisix que podiam conter aqueles que estavam tomados pela demência. Era uma atitude radical, mas para o Ristrad passou a ser a única saída. O Ristrad aprovou o uso das armas da Amisix por aqueles que não haviam enlouquecido, era uma forma de manter as famílias seguras.
O mundo virou um completo caos. Agora havia pessoas dementes matando umas às outras, máquinas e dispositivos vagando pelo mundo para neutralizar ameaças e as próprias comunidades agora se defendiam com as armas da Amisix e o próprio planeta foi contaminado pelo Ciner.
Perdi meu pai naquela época. Quando os “dementes”, era assim que chamavam aqueles que se corrompiam, invadiram Brighton, e as máquinas da Amisix, juntamente com aqueles que haviam aderido o uso de armas, combateram os invasores.
Eu o vi morrer.
Eu podia ver seu rosto se olhasse para as chamas que agora cremavam os corpos daqueles cinco garotos que haviam saído pela manhã para conseguir remédios para os refugiados que haviam chegado de Lewes e foram atacados por dementes.
Eles estavam ficando piores, os dementes, já haviam atravessado nossos muros duas vezes no último mês e não podíamos fazer nada. A maioria de nós não conseguia matá-los, muitos dos que estavam em Brighton haviam perdido entes queridos para a demência. Alguns chegaram a ser feridos e até mortos por filhos ou irmãos. Era o que o Ciner fazia, ele consumia a alma daqueles que possuíam sombras dentro de si e os tornava maus de uma forma irreversível. E ele estava por toda parte. As ruas eram de Ciner, as casas, os móveis, eletrodomésticos... O mundo havia sido reerguido a partir de uma coisa maldita.
— Finn! — Eric me chamou ao colocar a mão em meu ombro. — Já vai escurecer — Avisou ele. — Acho melhor voltarmos para a prefeitura.
Observei o pôr-do-sol mais uma vez. O brilho alaranjado já se tornava apenas uma linha morna no horizonte. Eu olhei para seus olhos castanhos e em seguida para todos aqueles que ainda choravam pela perda. O fogo já estava praticamente extinto e não havia sobrado nada além de uma pilha de cinzas.
Balancei a cabeça, assentindo. Eric colocou a mão sobre o ombro da mãe de um dos garotos que haviam acabado de ser cremados.
— Precisamos ir — Disse ele gentilmente.
A mulher assentiu e se levantou com sua ajuda. Eu segui para o outro lado. Abracei a outra mãe de um dos garotos e os convoquei para voltar. Estava ficando escuro e sabíamos que os dementes costumavam sair à noite. Era o único período em que eles sentiam fome. Se um demente pegasse alguém durante o dia ele apenas mataria e abandonaria o corpo, mas se isso ocorresse após o pôr-do-sol ele também comeria sua carne. Era estranho, mas eu nunca havia parado para pensar no porquê de isso ocorrer.
Aos poucos todos os refugiados estavam de pé naquela ravina e se dirigiam de volta para a cidade. Alguns levaram consigo um pouco das cinzas, outros, porém, decidiram apenas deixar tudo aquilo para trás.
As ruas de Brighton costumavam ser iluminadas à noite. Agora tínhamos que manter todas as luzes apagadas do lado de fora. Havia casas abandonadas por toda parte, vestígios de acidentes e tragédias que ocorreram quando as pessoas começaram a matar e tudo virou um caos mais uma vez. Poucos sobreviveram, e eu não fazia idéia de como o mundo lá fora estava.
A prefeitura era o lugar onde eu mantinha todos os refugiados à noite. Era um prédio imenso, com paredes bem reforçadas e vários cômodos onde todos ficavam confortáveis. Tínhamos plantações em todos os jardins da cidade, com isso podíamos manter todos alimentados, inclusive aqueles que acabavam vindo parar em Brighton enquanto fugiam de dementes ou de algum animal selvagem.
Tínhamos todo tipo de pessoa em Brighton. Havia uma mulher, Walery, uma mulher de trinta e oito anos que havia sido médica em Londres alguns anos antes do surto de dementes começar. Era a única pessoa que tínhamos para cuidar dos doentes, eu não sei o que faríamos sem ela. Havia um homem chamado Daniel, que havia trabalhado no Ristrad. Eu não sabia o porquê de ele ter decidido sair, mas ele nunca falava a respeito.
Tínhamos também algumas crianças, todas órfãs. Minha única amiga de infância que ainda estava viva era responsável por cuidar delas. Ela sempre quisera ser mãe, mas num mundo como o nosso aquilo era impossível.
— Já pensou no que vamos fazer? — Eric disse baixo. Já estávamos dentro do hall da prefeitura. Ele e eu havíamos acendido uma fogueira no centro, onde sempre acomodávamos os idosos e as crianças. Walery e Max, uma garota órfã que havia chegado há pouco tempo, distribuíam a comida. Eu fitava as chamas estalarem, pensativo.
— Eu ainda não sei — Sibilei olhando seu rosto parcialmente iluminado pelo calor das chamas. Eric era jovem, tinha vinte e cinco anos, a mesma idade que eu. Ele havia crescido em Londres, e, quando o surto começou havia se separado dos pais durante uma evacuação promovida pelo Ristrad. Ele não sabia onde os pais estavam, nem sequer se estavam vivos. Passamos muitos anos juntos, ajudando um ao outro, acolhendo todos os refugiados que encontrávamos nas proximidades de Brighton.
— Precisamos de medicamentos — Sussurrei. — Mas não estou disposto a perder mais ninguém para o que têm lá fora.
— Eu poderia tentar ir — Sugeriu ele.
— Não — Minha respiração ficou alterada. — Eu disse que não perderia mais ninguém.
— Não temos outra escolha — Disse ele.
— Está errado — Me movimentei para longe. Passei pelas pessoas que estavam deitadas em colchões espalhados pelo hall e me direcionei para a porta de entrada. Além de mim e de Eric havia apenas mais três pessoas em Brighton que sabia usar armas de fogo. Essas pessoas nos auxiliavam todas as noites mantendo a prefeitura segura.
Me aproximei de Grant, era um homem de meia idade. De cabelos grisalhos, bigode branco e olhar cansado. Ele havia perdido todos os filhos dez anos atrás durante um surto. Desde então havia dedicado a vida a caçar e matar dementes.
— Olá Finn — Ele disse quando me aproximei.
— Como estamos? — Perguntei olhando as ruas escuras da cidade em ruínas.
— Até agora estamos seguros — Ele disse com os olhos fixos nos muros que circundavam as ruas logo à frente. — Posso ouvi-los lá fora, na floresta. Malditos!
— Tenho ouvido sobre mais e mais ocorrências nos últimos dias — Eu disse. — Soube de uma pequena cidade, não muito longe daqui, que foi dizimada algumas noites atrás.
Grant olhou a escuridão, pensativo, em seguida seus olhos se voltaram para mim e depois para todas as pessoas no Hall.
— Sabe que não pode manter essas pessoas aqui para sempre, não sabe? Eles estão mudando, Finn, os dementes. Esses que vejo hoje não são os mesmos que mataram meus filhos anos atrás. Eles costumavam ser descontrolados e irracionais. Atacavam qualquer pessoa como se fossem movidos pelo ódio. Mas, hoje, eles mudaram. Tornaram-se frios e articulados. Eles sabem que não vamos conseguir ficar aqui muito mais tempo, e eles estão esperando.
— Eu sei disso — Respondi. — Mas não sei o que fazer. Eu não posso simplesmente tirar essas pessoas daqui sem ter para onde levá-las. A não ser que viajemos para Londres.
— Não! — Disparou Grant. — Você não pode fazer isso. Sabe o que dizem sobre a Amisix e sobre o que ela faz com as pessoas.
— Eu sei o que a Amisix faz — Retruquei. — Foi por causa da Amisix e das armas dela que eu perdi meu pai. Todo o caos apenas piorou depois que Magno Carnalis surgiu com seus armamentos e suas máquinas estúpidas prometendo salvar a humanidade de uma coisa da qual não temos salvação, mas pode não haver saída melhor. Talvez o Ristrad...
— O Ristrad e a Amisix estão juntos, sempre estiveram — Garantiu Grant. — Não sei como o Ciner não os corrompeu até hoje.
— Talvez já estejam — Sussurrei com amargor. — Talvez tenham se transformado em um tipo diferente de demente.
— Um tipo bem psicótico — Riu Grant.
— Vou fazer uma ronda — Disse ele descendo as escadas de mármore rumo à escuridão.
— Não quer que eu vá com você?
— Eu agradeço, Finn. Mas, preciso pensar um pouco e você me conhece, só consigo pensar direito quando fico cara a cara com a morte — Grant riu antes de caminhar pelas ruas.
Logo depois que Grant desapareceu desci as escadas e caminhei pelas calçadas. Eu fazia aquilo todas as noites depois que todos estavam acomodados e seguros na prefeitura. Fazia meu caminho através das ruas frias. Aquilo me fazia bem, me lembrava de quando saia com meu pai nas manhãs de inverno.
Fiz meu caminho para longe do centro. Dez minutos de caminhada e eu estava em uma rua com pequenas casas de madeira, uma coisa que era rara diante de um mundo onde tudo era feito de Ciner. Três casas para frente, à esquerda, havia uma pequena casa abandonada, cujas paredes e parte do telhado já haviam cedido. Era um risco entrar ali, mas eu não me importava. Aquela era a casa onde eu crescera e vivera por seis anos antes de pessoas começarem a matar umas as outras e empresas ambiciosas tirarem proveito da dor e do sofrimento daqueles que não tinham como se defender. Foi ali que meu pai morreu. O pedaço mais feliz da minha infância, e o mais triste.
Passei pela abertura que havia no lugar da porta de entrada e caminhei sobre a madeira podre. Havia chovido nos últimos dias, a água da chuva havia deixado um cheiro de mofo que se misturava com o cheiro das rosas que meu pai cultivava. Eu havia cultivado dezenas delas nos últimos anos fazendo do interior da casa um jardim secreto.
Caminhei me desviando das flores, me direcionei para a lareira que ficava no canto de uma sala que agora estava aberta permitindo que a luz da lua entrasse e iluminasse todo o recinto. Me sentei sobre uma cadeira e observei as flores em contraste com a lua. Eram tão delicadas e frágeis quanto as pessoas que eu tentava manter vivas todos os dias. Não estava sendo fácil, desde que comecei a trazer refugiados para Brighton, ao lado de Eric. Eu não imaginava que tantas pessoas procurariam ajuda. Havia muitas pessoas, assim como eu, que não confiavam na segurança prometida pela Amisix e pelo Ristrad e preferiam sobreviver por conta própria a ficar nas metrópoles sob o governo das duas empresas.
As metrópoles eram grandes cidades. Como Londres, Nova York, Moscou, Paris... Cidades que haviam sobrevivido a tudo graças às armas da Amisix e a corrupção do Ristrad. Estas cidades permaneciam imaculadas sem a interferência dos dementes ou de todas as outras mudanças mortais pelo qual o planeta passou nos últimos anos. Elas estavam lotadas de máquinas inteligentes criadas pela Amisix, dispositivos e programas que previam a aproximação de ameaças além do fato dos próprios moradores poderem usar armas para se defender.
Ali dentro era como se nada nunca tivesse ocorrido. As pessoas viviam seguras; trabalhavam, estudavam, constituíam família e viviam em paz.
Uma verdadeira utopia.
Mas, nem tudo podia ser um mar de rosas. Grant havia me contado sobre pessoas em Londres que estavam sendo corrompidas pelo metal e matando as próprias famílias. Era o que acontecia quando o uso de armas era legalizado. Com a morte vinha a corrupção e era onde o metal agia transformando a pessoa em Demente.
Para esconder da população, a Amisix recolhia os Dementes e suas famílias mortas e as levava para um de seus laboratórios onde os transformava em experimentos.
“A Amisix é má”. Dizia Grant, havia morte e corrupção em suas instalações. O presidente da Empresa, Magno Carnalis, queria algo com o metal e não era descobrir a cura.
Eu não podia levar aquelas pessoas para Londres. Acabariam mortas e virariam experimentos. Precisava encontrar um lugar para levá-las. Um lugar onde ficariam mais seguras.
Enquanto pensava olhei para a lareira. Me levantei e fiquei de joelhos diante dela. Passei a mão sobre a base de tijolos. Havia um compartimento abaixo do assoalho onde eu guardava minha única herança. Ao abrir o compartimento havia uma caixa de madeira comprida onde meu pai havia guardado uma de suas criações. Ele havia sido engenheiro em vida e havia trabalhado com Ciner.
O conteúdo daquela caixa me deixava aterrorizado. Eu não conseguia olhar para dentro dela por muito tempo.
Coloquei a caixa novamente em seu esconderijo e fechei o compartimento. Me pus de pé e caminhei para fora. Minha cabeça agora focava na breve conversa que eu havia tido com Eric naquela tarde. Havia pessoas doentes em Brighton. Elas precisavam de remédios, mas eu havia perdido cinco pessoas na tentativa de trazê-los para a cidade. Não podia perder mais ninguém.
Eu sabia o que precisava ser feito.
Parei diante de uma caixa de correio ao lado da calçada. Tirei a tampa para encontrar uma bolsa com alguns mantimentos e armas. Depois disso caminhei pela noite na direção dos muros.
Caminhei para fora dos muros e avancei pelas ruas da cidade. Havia um ambulatório há alguns quilômetros onde alguns garotos haviam visto medicamentos semanas atrás. Eles não puderam pegá-los, entretanto, pois o local estava tomado por Dementes. Apressei o passo quando comecei a ouvir grunhidos vindos das casas abandonadas ao redor e da floresta que circundava o local. Em geral, Dementes comuns atacavam qualquer pessoa que vissem em sua frente, apenas para matá-la, mas eles estavam diferentes, assim como Grant havia falado. Estavam me observando e aguardando o melhor momento para me atacar.
Segurei uma das armas que havia na bolsa e caminhei pelo centro das ruas. Alguns metros depois, o primeiro Demente saltou para fora de uma casa vazia. Era uma mulher de meia idade. Estava com as roupas rasgadas, a pele estava enrugada e com um tom escuro e sujo. Os olhos dela estavam tingidos com um tom vermelho escarlate de ódio.
Com as unhas longas e afiadas ela tentou acertar meu pescoço. Me desvie com facilidade e segurei seus pulsos. A empurrei para longe e atirei com o silenciador em sua barriga. Ela cambaleou para trás e caiu com as mãos no estomago.
Olhei ao redor com o corpo ainda paralisado de tensão. Sabia que ela não estava sozinha.
Voltei a caminhar. Não estava longe, podia ver a entrada do ambulatório a poucos metros. Uma brisa fria atravessou meu corpo quando me aproximei. Naquele instante percebi o risco que teria ao entrar. Não haveria outra saída senão a porta da frente. Eles estavam esperando que eu fizesse isso. Quando entrasse estaria cercado. Ainda assim, eu não havia escolha. Precisava voltar com medicamentos.
Avancei. A porta dupla da entrada era de vidro e estava quebrada. Passei sobre os cacos e em seguida atravessei o balcão que ficava na entrada. Estava tudo destruído. Havia corpos completamente decompostos pelos corredores, catres impediam a passagem em alguns pontos. Havia sangue seco.
Procurei pela enfermaria, ouvi grunhidos nas salas por onde passei e do lado de fora também. Eu precisava ser rápido. Encontrei a enfermaria depois de alguns corredores. A maioria das prateleiras estava vazia, mas havia alguns frascos de antiinflamatórios em uma gaveta, analgésicos em outra e alguns curativos também.
Peguei uma sacola. Coloquei tudo que poderia ser útil e me preparei. Peguei duas armas com silenciador e me virei para a porta. Havia um Demente parado no corredor aguardando a minha saída. Ele estava em um estado parecido com o da mulher, porém havia sangue escorrendo de sua boca.
Apontei a arma e atirei quando ele veio na minha direção. Usei seu corpo como escudo e saí pelo corredor. Não havia outros a vista, mas eu podia senti-los se aproximando.
Corri para a entrada a tempo de sair antes que três dementes surgissem na recepção e tentassem me pegar. Havia mais quatro me esperando na entrada como eu havia previsto. Continuei correndo na direção deles. O segredo para sobreviver era não pensar muito. Dementes geralmente eram movidos por impulso, sendo assim eram sujeitos a falhas. Se eu fosse mais rápido do que eles eu podia matá-los sem dificuldade.
Acertei os dois que estavam mais próximos no peito. Eles caíram para trás deixando os outros dois incertos por um instante; Tempo suficiente para eu acertá-los. Corri um pouco mais. Os três que saíram do ambulatório ainda me perseguiam. Puxei um cartucho da bolsa e recarreguei o silenciador. Me virei, os três estavam a menos de quatro metros de mim. Tive tempo de acertar o que estava mais próximo. Ao cair ele atrapalhou os outros dois e eu pude economizar munição acertando a cabeça de um com um chute e quebrando o pescoço do outro.
Não olhei para a pilha de corpos no caminho. Continuei seguindo de volta para a prefeitura. Eu tinha conseguido os remédios e ainda estava vivo. Não era muito, mas ajudaria a tratar alguns dos doentes e feridos de Brighton.
Me esgueirei pelos arbustos para cortar caminho até o muro. Queria voltar o quando antes e entregar o que havia conseguido para Walery. Quando estava chegando perto percebi que alguma coisa estava errada. Foi quando vi que o muro havia sido atacado e parte dele havia cedido permitindo a entrada de Dementes.
Meu corpo ficou paralisado, de repente meus pulmões ficaram sem ar e meu coração ficou histérico. Escalei o muro para não chamar atenção, quando cheguei ao topo meus joelhos quiseram ceder e me jogar para baixo quando eu vi.
A cidade havia sido atacada. Havia dementes correndo pelas ruas, furiosos. Pude ver a prefeitura algumas quadras a frente, estava escancarada com um aglomerado de criaturas correndo, desesperadas por carne. Meus olhos arderam e eu não sabia o que fazer. Obriguei meu corpo a se mover e desci do muro, entrando na cidade. Me esgueirei silenciosamente pelos arbustos para não ser visto. Precisava voltar para a prefeitura e encontrar os refugiados. Talvez estivessem escondidos em algum lugar. Eu precisava checar.
Mas de repente eu ouvi um assobio. Eu estava próximo de uma casa abandonada e alguma coisa dentro dela me chamava. Tentando não ser visto me aproximei devagar até ouvir uma voz conhecida que acalmou meus nervos.
— Finn! — A voz de Grant me chamou.
Olhei ao redor para checar se era seguro correr. A rua estava silenciosa então corri para dentro da casa em ruínas. Grant estava encostado em uma parede no canto da sala. Ele estava ofegante, suava e estava com as mãos nas costelas, de onde escorria sangue.
— Grant — Eu disse em desespero. — O que aconteceu?
Me coloquei de joelhos diante dele. Seu rosto molhado brilhava em contraste com a luz da lua. Ele soluçava.
— A... — Ele gaguejou — Amisix.
Minha testa franziu.
— O quê? Amisix, aqui?
Grant balançou a cabeça positivamente.
— Vieram atrás de seu pai.
Sacudi a cabeça confuso.
— Como...
— Vieram atrás do que seu pai criou — Continuou Grant. — Escute, ouvi boatos há um tempo, de coisas que o Ciner poderia fazer se fosse manipulado da maneira correta. Obviamente nós não o fizemos e por isso tudo virou um caos, mas ouvi sobre pessoas que conseguiram estudar o Ciner a um nível elevado. Capaz de revelar as verdadeiras propriedades dele. Ouvi até sobre pessoas que conseguiram combinar o Ciner a coisas comuns e transformá-las em algo extremamente superior, acima da compreensão humana. A Amisix nunca conseguiu isso. Manipular o metal a ponto de ser capaz de obter um poder imensurável, mas essa é a maior ambição do presidente da Amisix.
Respirei fundo e pestanejei, confuso.
— Eu ainda não estou entendendo — Sussurrei, frustrado. — O que meu pai tem a ver com isso?
— Seu pai foi uma dessas pessoas. Ele conseguiu usar o melhor do Ciner para criar uma coisa nova. Uma coisa que ele deixou para você dentro daquela caixa que você guarda embaixo da lareira. Eles querem aquilo, rastrearam até aqui e mataram todos na prefeitura para achar.
Meus olhos arderam. As lágrimas escorreram sobre meu corpo trêmulo.
— Escute Finn. Eu tenho um irmão, ele se chama Backin. Ele vive em Lewes, em uma fazenda. Eu quero que procure ele. Ele entende disso melhor do que eu e vai saber te ajudar. Eles voltarão atrás de você e vão te encontrar se ficar por aí sozinho.
Grant tossiu e se contorceu. Retirei depressa os curativos da bolsa. Preparei uma seringa com remédio. Quando fui expor o ferimento para tratá-lo a mão ensanguentada de Grant me deteve.
— Não, guarde para você — Ordenou ele. — Eu não vou aguentar muito mais tempo e se for com você vou te atrasar.
— Eu não posso te deixar aqui — Retruquei.
— Não se preocupe — Grant riu. — Eu vou encontrar meus filhos. Eu não poderia estar mais feliz.
Algumas lágrimas escorreram de seus olhos. O mesmo aconteceu comigo.
— Você precisa ir antes que te encontrem — Disse ele. — Escute, você não pode deixar que a Amisix ou o Ristrad coloquem as mãos no que seu pai criou. Eu não sei o que eles pretendem com isso, ma sei que vindo de Magno Carnalis não pode ser bom. Não confie em ninguém daquela empresa.
Eu assenti. Levei uns minutos para me levantar. Grant começou a respirar mais devagar. Ele fechou os olhos sorrindo.
— Adeus, Finn — Ele sussurrou entre lágrimas. — Foi um prazer lutar ao seu lado por todos esses anos.
E então Grant deixou de respirar.
Saí da casa quando percebi que as ruas estavam vazias. Os Dementes estavam rondando a prefeitura em busca de carne. As lágrimas escorriam pelo meu rosto quente. Enquanto eu caminhava para minha casa os rostos de todos aqueles que estavam sob minha responsabilidade pairavam sobre mim. Me lembrei de todos eles. O último foi o rosto de Eric, a primeira pessoa que eu encontrei quando comecei a ajudar pessoas em perigo. Ele estava comigo há tanto tempo. Eu nem sequer pude me despedir.
Quando entrei na casa em ruínas, atravessei as rosas e me ajoelhei sobre a lareira. Retirei a tampa do compartimento e puxei a longa caixa de madeira. Eu havia aberto apenas uma vez. Não conseguia colocar minhas mãos no que havia ali. Era um sentimento indescritível. Eu tinha medo. Muito medo. Do que poderia acontecer comigo. Nunca havia entendido no que meu pai estava pensando quando deixou aquilo para mim, mas algo me dizia que eu iria entender.
Abri a caixa sobre uma pequena e velha mesa que ficava no centro da sala. O conteúdo ainda estava ali, imaculado. Duas katanas (espadas japonesas) repousavam sobre almofadas vermelhas. O cabo era dourado e vermelho e as lâminas eram brilhantes, feitas de Ciner.
Respirei fundo e coloquei minha mão direita sobre o cabo de uma delas. Levantei a espada lentamente e analisei a lâmina, eu podia ver meus cabelos curtos e prateados sendo refletidos ali. Em seguida peguei a outra katana e as segurei pelo cabo com firmeza. Eu não sabia o que faria com aquilo, nunca havia tido nenhum treinamento. Não sabia como usá-las.
De repente alguma coisa se desprendeu do cabo das duas espadas. Duas argolas prateadas desceram pelos meus punhos e se fixaram em torno dos meus pulsos.
Dois braceletes prateados que emitiam uma luz vermelha que piscava. Era estranho, mas eles pareciam estar estabelecendo algum tipo de conexão entre mim, eles e as duas lâminas, pois eu me senti diferente e de repente eu sabia exatamente como usá-las.
De repente a luz vermelha ficou verde e uma gravação começou a falar:
“Transmitindo última mensagem”
“Finn” Era a voz do meu pai.
“Eu sei que deve estar confuso e que a essa altura o mundo que eu conhecia se tornou um verdadeiro caos. Sei que você deve estar lutando contra pessoas corrompidas e tentando manter o maior número de pessoas vivas possível. Eu sei disso porque conheço meu filho. Finn me perdoe por tê-lo deixado fazer isso sozinho, eu sabia com o que estava lidando. Sabia que um dia eles viriam atrás de nós por conta do que eu estava fazendo. Estas duas espadas que você está segurando agora são a prova de que o Ciner não é o culpado por tudo o que ocorreu com o mundo. Você deve ter ficado com medo ao segurá-las, mas não fique. Esse metal está puro e não fará mal a você ou a qualquer pessoa que as segurar. Existe algo que está mudando as pessoas e o planeta, mas não é o Ciner. Suspeito de que a Amisix saiba o que é e esteja escondendo da humanidade para benefício próprio. Eles têm caçado todas as pessoas que conseguem fazer o que eu fiz. Estas pessoas estão desaparecendo, você precisa encontrá-las e lutar contra a Amisix junto com elas. Você precisa abrir os olhos da humanidade para o que está havendo. Por favor, Finn. Sei que não tenho o direito de te pedir nada disso, mas neste momento você é a única pessoa capaz de descobrir o que está havendo com o planeta e expor isso para todos.”
“Eu não sei como, mas eu encontrei uma forma de estudar esse metal e descobri uma das muitas qualidades que ele possui. Elas são únicas e possuem habilidades que vão te ajudar daqui em diante.”
“Eu as chamo de Harin e Horan, espadas da vida e da morte, dei esse nome devido às habilidades que elas possuem, você vai descobrir quando chegar a hora.
“Eu quero que saia de Brighton e descubra o que há com o planeta. Preserve o que restou da humanidade. Ela ainda pode ser salva. Acredite nisso.”
“Queria poder ver seu rosto agora.”
Aquelas foram as últimas palavras que eu ouvira de meu pai. Com emoção e com certo receio eu segurei as duas lâminas. Elas costumavam ser um pesadelo para mim, mas naquele momento elas eram parte de mim. O último fragmento da memória de meu pai.
Sai da casa ainda confuso. Se não era o Ciner, o que estava arruinando o planeta?
Onde e como eu encontraria outras pessoas que fizeram o que meu pai fez com o Ciner?
Eu não ia desistir, é claro. Eu encontraria um jeito. Eu ia expor a Amisix.
Quando comecei a caminhar para o muro me lembrei de Grant. Ele estava em uma casa não muito longe. Não era certo deixar o corpo dele lá.
Retornei para a casa onde ele estava. Por sorte havia uma pá nos fundos da casa com a qual eu pude cavar uma cova. Peguei o corpo de Grant ainda quente e o arrastei para a cova. Depois que o havia enterrado retornei para minha casa e colhi algumas rosas e as coloquei sobre seu tumulo.
“Eu devia fazer isso pelos outros também” Pensei.
Deixei o tumulo e voltei para as ruas. Caminhei na direção da prefeitura. Estava cheia de Dementes por toda parte. Devia ser mais de meia noite e estava muito escuro. Eu seria morto se me aproximasse, mas eu não podia deixar o corpo de Eric e de todos os outros lá para serem devorados.
Quando em aproximei um grupo de Dementes me viu e começou a correr na minha direção. Quando coloquei a mão na cintura para pegar uma arma de repente as duas espadas, que estavam nas minhas costas se deslocaram tão rapidamente que eu só pude ver os corpos caírem em pedaços. As duas permaneceram fincadas sobre a cabeça de dois Dementes.
Fiquei espantado com o que havia acabado de ocorrer, mas não tive tempo para absorver a informação. Outros Dementes ouviram o barulho e saíram da prefeitura. Uma horda se posicionou diante de mim. Estavam sedentos por carne e seus olhos ferviam com um ódio fora do comum.
Pensei em como recuperaria as duas katanas antes que me atacassem. Quando pensei nisso os dois braceletes em meus pulsos piscaram e as duas lâminas retornaram paras as minhas mãos. Percebi que havia uma conexão entre nós, como eu havia pensado. Rapidamente movimentei as duas mãos para frente e lancei as duas espadas mentalizando o que elas teriam que fazer. As duas cortaram os dementes de todas as formas possíveis. Em instantes todos haviam caído. Ordenei então que as duas circulassem a área e eliminassem qualquer Demente que se aproximasse. As lâminas obedeceram e desaparecem na escuridão.
Subi as escadas da prefeitura depressa. Embora eu tivesse uma esperança de que alguém ainda estivesse vivo eu sabia exatamente o que encontraria. Pilhas de pessoas mortas e esquartejadas. Vi o corpo de Walery bem no centro, ela fora morta com tiros. Devia estar tentando proteger as crianças quando foi atingida.
As lágrimas corriam pelo meu rosto enquanto eu agrupava os corpos. Reuni todos eles no centro da prefeitura enquanto ouvia as duas lâminas deceparem cabeças do lado de fora. Peguei um pouco de álcool e fósforos embaixo do balcão e ateei fogo. Precisava queimar os corpos. Havia pessoas extremamente desesperadas no mundo em que eu vivia. Pessoas capazes de fazer qualquer coisa para sobreviver, isso incluía canibalismo e se um humano comia carne contaminada por Dementes isso resultaria em sua própria corrupção.
Era de manha quando eu havia queimado o último corpo. Espalhei rosas pela prefeitura e então chamei Harin e Horan. As duas retornaram para mim banhadas em sague. Fui para as ruas e ateei fogo em todos os corpos que encontrei. Em seguida retornei para a prefeitura. Fui para um dos cômodos onde havia roupas e suprimentos. Arrumei uma mochila com tudo o que precisaria para chegar a Lewes. Precisava encontrar o irmão de Grant e pedir ajuda a ele.
Fui para um dos banheiros. Estava coberto de sangue e precisava de um banho. Quando enfim estava pronto sai da prefeitura. O sol marcava oito da manhã. Olhei para a prefeitura uma última vez antes de deixar a cidade.
Não importava onde eu fosse sempre haveria um pedaço de Brighton comigo.