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Ao abrir a janela -parte 1

Abri a janela,languidamente...lá estava a chuva,me chamando.O céu cinza nublado parecia estar em puro estado de nostalgia,era a vida me chamando: "Vamos,carolina!Venha viver a verdadeira vida!" Eu precisava de alguma desculpa para sair dali,algum sinal que me dissesse para onde eu deveria ir.Acendi apressadamente outro cigarro,contemplei a criança linda que brincava no parquinho de uma praça ali perto.Por quê as coisas pareciam tão fáceis aos olhos dos outros?Por quê eu tinha de ser assim,tão sensível e reflexiva em relação a tudo?
Uma vez haviam me dito que eu era uma pessoa estranha.O que seria ser estranho?Um pacote absurdo de particularidades desconcertantes?Sim,então sim,eu sou estranha,era estranha e sempre serei.É o meu jeito,não consigo mudar por mais que tente.Olhei para as folhas de papel amassadas com poemas meus,a maioria deles sombrios e irreparáveis, dores incuráveis de uma monotonia sem fim..."Quem me dera poder voar,voar até onde minhas ilusões me chamam" pensei,triste e melancólica. Observei o vôo de um papel que alguém havia jogado fora:ele rodopiou,rodopiou ,planou e finalmente,vencido,caiu e em uma árvore ficou,pendurado entre galhos. Fiquei curiosa...Por quê alguém jogaria um papel assim?Falta de educação ou desrespeito com o meio ambiente?Ou vai ver foi algum poeta cujo poema obra-prima deixou perto da janela,e o vento o carregou longe...Estão vendo?Não consigo parar de refletir sobre tudo,é um terrível defeito e qualidade,um complexo paradoxo que vive intensamente dentro de mim e não me deixa aproveitar livremente as felicidades de todos os momentos.Ali perto,no chão,notei um velho jornal amassado.Peguei-o,curiosa.Ver coisas antigas ,que já haviam acontecido, era um modo de voltar ao passado.Na primeira página havia uma bela foto de uma praça em Portugal.Em letras garrafais estava escirto:Congresso de Escritores acontece esse ano na praça do Comércio em Lisboa,Portugal.Aquele jornal deveria ter uns cinco dias já,mas não fazia importância,e uma luz acendeu em minha cabeça:era isso!Portugal!Minha tia morava lá,tudo bem que não era uma tia muito próxima,mas ela me acolheria em sua casa pelo tempo que fosse necessário,ao menos até eu poder arranjar um trabalho e uma casa para morar por lá.

Naquele dia resolvi que faria algo.Minha vida precisava mudar de algum jeito,fosse ele qual fosse.O que adiantaria ficar naquele apartamento pequeno e imundo,onde pacotes de comida vazios se acumulavam e um soliário eco vivia,já que poucos móveis ali se encontravam?Era hora de me sentir eu,de me sentir alguma coisa,era a hora de achar minha própria liberdade de pensamento,eu haveria de descobri-la!

Peguei minha mala surrada,a única que eu possuía ainda,mais por valor sentimental do que de utilidade(havia sido um presente de meu avô, que já morrera por sinal).E como eu sentia falta do velho...Lembrei-me de todas as vezes que fui visita-lo,desde adolescente era o único que aceitava o fato de eu fumar.Passávamos tardes e tardes em sua fazenda,sentados,contemplando bois,vacas ,cachorros em plena harmonia,enquanto o sol se punha no horizonte.Fumávamos como duas chaminés, apreciando todo aquele fumaceiro como os melhores degustadores de vinho, que sabem apreciar-lo bem.Era o único que me entendia, e o único que tinha palavras suficientemente interessantes para todo aquele meu complexo de vazio emocional.
"Ah,Carol,isso tudo é porquê você ainda não encontrou a coisa certa a fazer.Todos nós passamos por isso,é normal,se você não passasse é que seria anormal"ele dizia,e ríamos da nossa própria tristeza boba.Ele recebeu o diagnóstico de câncer pulmonar um tempo depois,quando se encontrava em seus cinquenta e poucos anos,mas não se abalou,desde sempre dizia que preferia aproveitar o máximo da vida logo do que passar toda uma vida sem ter nada,nem ao menos histórias para contar.E isso ele teve...e muitas.Muitas histórias que ainda guardo aqui,dentro da minha biblioteca mental conturbada.

A mala estava com a fechadura emperrada,então tive de desprender uma força maior para abri-la."Droga,vovô,onde está você para me ajudar a abrir a droga da mala velha que me deu?!"pensei sem querer,e ri de mim mesma,tinha certeza de que em algum canto lá no céu ele estaria rindo do mesmo jeito,sentado em alguma poltrona de couro predileta como a que possuía em sua fazenda quando vivia.Eu e ele éramos dotados de um humor negro único,que só nós conseguíamos entender.Não é à toa que minha família nunca gostou muito das nossas piadas e conversas...Ele havia sido um estranho,como eu.
Reparei que minhas unhas estavam compridas e lascadas,o vermelho vivo do esmalte nelas estava já desbotando."Devia ter usado luvas para lavar os pratos"pensei,aborrecida.Não havia nada que mais prezasse do que minhas unhas quase postiças,eram meu orgulho.Qualquer pessoa que as visse sabia admira-las,não haviam como passar despercebidas,ao contrário de mim,claro. Logo após jogar um punhado de calçinhas,sutiãs,calças jeans rasgadas e blusas,fechei a mala e peguei o dinheiro restante.O tempo que havia trabalhado no restaurante daria apenas para pagar o próximo aluguel do apartamento,mas pensaria nisso quando voltasse.Foi aí que lembrei "Ah,não!Tenho que me demitir,droga!"Tranquei o apartamento e desci pelas escadas,morava no segundo andar,não que isso importasse mais naquele momento. Cheguei ao meu carro,um Chevet feioso,era hora de vende-lo desde já.Liguei-o e sai da garagem sem nem olhar pra trás,aquela seria a última vez que veria aquele lugar,decidi. Peguei a estrada que levava a avenida principal,onde estava o restaurante Belle Vie,onde trabalhava já há um ano,e onde as gorjetas nunca eram gordas o suficiente para você agüentar todos os desaforos dos clientes. Entrei decidida, com meus tênis surrados e meu casaco jeans velho.Demitri foi o primeiro a me notar ,com seu olhar crítico e desaforado.
-Carolina, o que faz aqui a essa hora?E vestida assim?!Onde está seu uniforme?- resolveu baixar mais o tom da voz,ao notar que todas as mesas estavam nos olhando. O público do Belle Vie era constituído por empresários e executivos gordos e mal-encarados,que se achavam melhor do que qualquer pessoa que ganhasse menos dinheiro que eles.Infelizmente, Demitri só faltava beijar os pezinhos bem polidos de cada um deles mesmo quando estavam arrotando em nossas caras.
-Eu vim me demitir,Demitri- a frase soou um tanto sinestésica naquele momento,mas saiu fácil,fácil da minha boca.Ele fez uma cara de chocado,um chocado afetado,até pelo fato de ele ser um gay assumido.Não me levem a mal,eu amo ter amigos gays,mas Dimitri com certeza não era meu amigo e era realmente gay.
-Você está certa disso,Carolina?Sabe que não poderei te dar nenhuma chance a mais se você quiser voltar entende?-ele perguntou,jurando que eu teria pelo menos uma leve insinuação de arrependimento ou medo,e não foi o que ele viu.Vendo minha certeza,ficou ainda mais emburrado e irritado.Eu já conseguia imaginar o que estaria passando em sua mente. "Quem essa vaca desleixada e incompetente está pensando que é para deixar meu super respeitado e de alta classe restaurante cinco estrelas?!"Na verdade a última delas havia sido colocada porque um dos caras que classificavam o restaurante havia tido um caso duradouro com ele,por incrível que pareça...Não conseguia entender como qualquer pessoa,fosse ela homem ou mulher,conseguiria achar um cara extremamente magro e andrógino,com cabelos oleosos colados á cabeça e uma franjinha extremamente ridícula,que utilizava sempre aquela calça branca com blusa branca com colete vermelho e gravata borboleta,atraente.Ele poderia inspirar muitas coisas,menos simpatia e muito menos sex appeal...
-Então,Dimitri,vamos acabar logo com isso?Ainda tenho coisas para resolver- falei,curta e grossa.Não era hora de lavar roupa suja,mesmo que ele merecesse ouvir umas coisinhas.Eu só queria receber meu dinheiro e ir embora dali.
Afetadamente,ele me guiou para atrás do balcão,onde estava uma maquininha calculadora.Começou a digitar os números enquanto falava:
-Três semanas,das quais dois dias você faltou,outros dois você chegou atrasada...
-Espere,isso foi porquê estava no hospital fazendo exames!-repliquei,sem paciência.Ele fingiu não ouvir e continuou suas contas,terminando por me dar exatos 500 reais por aquele mês.Tá,havia sido mais ou menos isso que eu havia imaginado.Por sorte havia mais dinheiro guardado comigo,um presente que meu avô me dera há um certo tempo atrás,antes de morrer.Esse dinheiro seria meu passaporte para viajar,precisava ir embora dali o mais rápido possível,pegaria o primeiro vôo que desse, e nada me impediria,nem ninguém.

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Atualizado em: Qui 31 Jul 2008

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