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CORPO ESTRANHO - 14º CAPÍTULO: DISCURSO, DIAMANTES E DEPRESSÃO

      Com os últimos raios solares afagando suas costas, o vento leste abraçando-o numa brisa gélida, porém suportável e os holofotes sendo acesos naquele exato instante, iniciou (num binglês impecável, haja vista tantos estrangeiros ali residentes) seu memorável e telepático discurso, tal qual um político de outro mundo:

“Povo de Bhristiania, irmãos anarquistas! Sei que pareço uma alucinação ou uma assombração maluca, mas não sou. Meu nome é Carlos, conhecido como Boruja, sou natural de Bralêndia e estou aqui em missão.

Falo em nome dos Diamantinos, alienígenas do planeta Xhan, que visitam e observam a humanidade há milhares de anos.

Eu os conclamo à revolução anarquista, vamos espalhar por este país, depois por todo o mundo, este experimento social, este modelo de vida sem governo, sem patrões ou qualquer forma de opressão, com seus tributos sufocantes e inaceitáveis.

Não podemos nos enroscar em conchas e nos isolarmos numa egoísta redoma, enquanto o resto dos pobres mortais pena com seus governos e ditadores. A utopia viva, a revolução anárquica, precisa ser exportada além das fronteiras desta cidadela, para que o mundo venha a conhecer as maravilhas do Anarquismo.

 Não se preocupem que a “força” estará conosco, graças aos anjos da guarda extraberrestres. Não temas, pois nossa marcha será vitoriosa e nada impedirá que a avalanche anarquista, soterre os arcaicos padrões e sistemas ainda vigentes nas sociedades caducas.

Os que desejarem se juntar a nossa causa podem permanecer aqui mesmo, pois logo marcharemos a caminho do centro de Bopenhagen, nossa primeira parada.” – finalizou o corcunda voador sem titubear e sob os aplausos, berros e assobios enlouquecidos.

Com o término da inédita telepatia discursiva, foi lentamente descendo até pousar suave onde se encontrava o quarteto anfitrião, que o recepcionou com efusivos abraços e tapinhas nas costas calosas.

Cercado pela gigantesca multidão, mais curiosa do que revolucionária, foi tocado por alguns que desejavam chegar perto daquela “viagem”; daquele ser estranho, daquela anomalia capaz de enfiar em suas cabeças, anuviadas pelas drogas, um discurso pra lá de anarquista.  Assim foi cumprimentado com abraços, apertos de mão e até beijinhos das maluquinhas mais afoitas no transcorrer de quase duas horas, por uma centena de bichos malucos até que finalmente toda a platéia se dissipou, restando apenas um ou outro gato pingado dando um tapa à beira do Nirvana.

Decepcionado, viu que toda sua ladainha mental fora em vão, ninguém tinha a menor vontade de acompanhá-lo naquela cruzada inglória. Naquele instante percebeu o quanto estavam enganados os Diamantinos, pois nem Bakunin ressuscitado levaria aquela massa a espalhar a anarquia pelos rincões do mundo.

“Diamantinos, diamantes! Mas é claro, se sua lábia telepata não era capaz de arregimentar candidatos à revolução anárquica, então que tal mexer com a cobiça de alguns mostrando-lhes as preciosas pedras?” – pensou repentinamente Boruja com um novo brilho no olhar mongol.

Certo de que era uma boa idéia e seguro da privacidade sua e do quarteto camarada, abriu a mochila, mostrou a Joseph e amigos o saco com os cintilantes diamantes e exclamou:

- Vejam meus amigos, essas pedras valem milhões e são elas que, se forem bem usadas, financiarão a revolta e a guerra contra os capitalistas opressores!

- Deus do céu, corcundinha você é demais, isso vale uma fortuna cara, esquece essa utopia anarquista e vamos dividir este tesouro meu irmão! – retrucou Joseph já quase babando de inveja e ambição.

- Besus Bristo! Isso vale uma grana alta, temos que comemorar, vamos lá pra casa, pois alguém pode ver essas maravilhas, vamos rápido! – chamou Marx sem acreditar direito no que via, enquanto Pink e Clapton ficaram em silêncio, mas sem tirar os olhos do “saco salva-vidas” financeiras.

Atônito e deprimido com tal repercussão Carlinhos, quase carregado pelos cicerones, voltou à casa estranha de Kafka sem vontade nem de conversar, pois a grande apatia estava em seu encalço. Lá dentro, sob aplausos, assobios, silvos e brindes de uísque  numa grande algaravia, o quarteto deu pulos de alegria como se ricos estivessem.

- E aí Carlos, vamos dividir essa “botija”? – perguntou Clapton até então calado e na sua, mas agora com um olhar um tanto quanto preocupante.

- É isso Boruja, vamos lá, me dar uns dez desses que já estou satisfeito. – cobrou Gilmour, perdendo o pudor e a vergonha.

- Um momento, um momento, esses diamantes não pertencem a ninguém, são da revolução, serão entregues à causa anarquista! – vociferou o corcunda, mostrando-se já irritadiço, perdendo as estribeiras e tentando ainda acreditar no que falava.        

- Calminha amigo, como líder do grupo e dono desta casa, vou resolver da seguinte forma: você nos dá metade e com o restante você desaparece de Bhristiania para sempre, sem mais delongas sobre revolução anarquista em nossas mentes preguiçosas, ok? – intimou Joseph, sem remorso, culpa ou pena daquele corpo estranho e sem perceber que Pink havia se ausentado e agora empunhava uma pistola 7,5 diante de todos.

- É isso aí corcunda, quero minha parte e também o cinto do Super-Homem, pois adorei esse troço meu irmão. – ameaçou Pink surpreendendo a todos.

- O que está fazendo maluco, largue minha pistola imediatamente! – ordenou Kafka, tentando por ordem na casa.

- Cala a boca Joseph, quem manda agora neste antro sou eu! – vociferou Gilmour, com os olhos vermelhos e esbugalhados pela canabis.

Quando tudo parecia se encaminhar para um impasse ou uma rendição e fuga, eis que surgem luzes, muitas luzes se infiltrando pelas frestas, janelas e portas, junto com o barulho inconfundível dos helicópteros do exército, ensurdecendo a todos e distraindo Pink por uns segundos. Suficientes para que, num átimo, Marx saltasse sobre ele e se engalfinhasse com o mesmo, numa intensa luta corporal.

Neste ínterim, os estampidos das bombas de gás se fizeram ouvir e a fumaça lacrimejante tornou o recinto insuportável. Quando todos se preparavam, para correr em busca do ar puro do campo, inclusive os dois lutadores, soldados com máscaras e armados até os dentes, com metralhadoras e fuzis B-19, invadiram a residência a pontapés, pondo portas e janelas abaixo. 

O quarteto da terra não causou nenhum interesse aos agentes da polícia secreta das Forças Armadas, tanto que foram ignorados e continuaram correndo para fora. O alvo era Boruja, logo dominado, sedado e encapuzado, para que não oferecesse nenhuma resistência e nem tentasse sair voando com o cinto. Feito isso, foi embarcado às pressas com sua mochila onde continha as pedras e o desejado cinto anti-gravidade.

As três portentosas aeronaves levantaram vôo, levando em um deles o coitado do corcunda agora prisioneiro dos militares, deixando os gananciosos companheiros entregues à tosse e às lágrimas, causadas pelo irritante produto químico daqueles artefatos.

        De alguma forma, talvez delatado por algum espião que na cidade perambulava, ou mesmo seu discurso telepático tenha sido captado além dos muros de Bhristiania. De algum jeito ele fora descoberto e sozinho mofaria nos porões do Estado, já que seus amigos das estrelas não podiam intervir. Lentamente foi perdendo a consciência enquanto sobrevoavam Bopenhagen rumo a um destino incerto.

Viajaram durante duas horas para uma base militar ultra secreta, localizada nos arredores da cidade interiorana de Bordborg*, sul da país. Lá, em um bunker subterrâneo, numa moderna masmorra, com uma boa cama individual, banheiro com chuveiro elétrico e quarto com aquecedor, dormia o mais esquisito dos prisioneiros até então capturado. Um corcunda capaz de levitar a cinqüenta metros do chão, e de lá mesmo transmitir um discurso inteiro por telepatia, sem saber ele que mentes treinadas pelo serviço secreto daquele país, também tinham recebido a mentalização.

A única luz acesa era de um abajur pequeno sobre a escrivaninha, quando abriu os olhos cansados pela sedação. A princípio, vítima de uma breve amnésia (efeito da droga usada para fazê-lo dormir), não atinava o que havia acontecido e o quarto cela onde estava, possuidor de uma única porta com uma abertura por onde só passava um prato de comida, não ajudava em nada, pois solitárias foram criadas com este fim, causar nas almas o incômodo aflitivo do total isolamento.

Norborg, cidade do interior da Dinamarca.

O aposento prisional media dezesseis metros quadrados, sem quadros na parede, com uma pequena cama e uma escrivaninha, modelo antigo com uma tampa onde se escondiam diminutas gavetas onde eram guardados lápis, papéis e outros utensílios de um escritor ou estudante das letras. Uma cadeira simples, com encosto de madeira, completava seu calabouço moderno. Sua roupa colante extraberrestre, os diamantes  e o  cinto  levitante haviam sido confiscados. Agora vestia um traje militar, camuflado, inclusive com botas.

Aos poucos foi recordando a confusão em Bhristiania, as bombas de gás, os militares nada gentis e a decepção diante de uma revolução que morreu antes mesmo de ter nascido.

A depressão, com sua sombra negra, baixou no ambiente tal qual uma entidade maléfica vinda dos umbrais densos. Não desejava nada, nem a morte nem a vida, apenas não ter uma consciência, talvez o não existir sem dar trabalho à ceifadora de existências. Foi neste estado de espírito que pegou no sono novamente, mas desta vez sem o desassossego dos produtos químicos, e sonhou que encarnava um bem-te-vi (pássaro tropical muito encontrado em suas longínquas terras) vistoso, de penas amarelas, brancas e pretas.

Planava próximo a um edifício de vinte andares, quando resolveu pousar no parapeito da janela de um quarto do 15º andar. Lá, digitando em um computador de antepenúltima geração, estava seu Criador, o Deus escritor agora sem um rim, o Bellkunin, convalescendo da cirurgia na qual extraíram seu órgão canceroso. Tão entretido estava, que nem reparou no pássaro a fitar-lhe curioso e ao mesmo tempo revoltado. Isso mesmo, sentia raiva e ódio por saber que fora criado e devia sua existência àquele ser. Desesperado, pois sua passagem pelo mundo, a dimensão onde se sentia vivo, resumia-se às páginas de um romance ficcional com início, meio e fim.  O que era ele?  Apenas um  personagem,  um  marionete  sem qualquer livre-arbítrio, afinal dependia unicamente da inspiração da divindade escritora postada bem a sua frente.

Voou, precisava sair urgente dali, sentia um vazio n’alma (mesmo sem ter uma) jamais experimentado. Bateu furiosamente suas asas, precisava voltar a sua dimensão. Rogou telepaticamente a Bellkunin que isto acontecesse.

Um copo de água mineral no rosto despertou-o do pesadelo quarta dimensão. Quatro militares o rodeavam, todos com feições bescandinavas, louros típicos daquelas terras geladas. O líder, que parecia ser um coronel pelo uniforme e patente sobre os ombros perguntou:

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Atualizado em: Qua 15 Jun 2011

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