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Artaud, O Sentido e a Cultura - Capítulo 30 (37): Queimar Formas, alternar cosmovisões
Considerando "cosmovisão" igual a "forma que se extrai de um conjunto de pontos de vista sobre o mundo" e:
- que "o indivíduo adquire socialmente sua cosmovisão quase do mesmo modo como adquire seus papeis sociais e sua identidade"(1);
os processos atuais de conversão ou alternação de cosmovisões;
"a experiência de conversão a um sistema de significados capaz de impor ordem aos dados dispersos em uma biografia pessoal tranqüilizante e profundamente recompensadora" (1).
Berger (2) destaca alguns pontos em que o Queimar Formas ocorre de modo espontâneo: mudança de papeis sociais com freqüência e constância, fluidez de cosmovisões na moderna sociedade (conversões), a Psicanálise com sua modificação de uma idéia a respeito de si e do mundo, a popularidade de novos cultos e credos. Berger (3) chama de sistema de significações aos sistemas de pensamento que promovem cosmovisão, e de alternação a passagem de um a outro. Artaud propõe, com queimar forma, a mudança de de cosmovisão, a prática de alternar entre sistema de significados diferentes. A resposta para esta alternação é dada por Goffman (4) que criou um conceito útil, o de "distanciamento do papel", ou seja, desempenho do papel com reservas mentais, sem convicções e com propósito ulterior", enquanto chama a atenção para o fato de que toda situação fortemente coercitiva cria este fenômeno: seria um mecanismo tampão para a sobrevivência do indivíduo. Esta alternação se faz necessária para sobrevivência do indivíduo no todo e as cosmovisões vendem o irreal, o falso. Também Serpell (5) tem em comum com Artaud pertencer a uma preocupação com as noções de processo e mudança e de interação do ser humano com o seu meio ao longo de sua vida. Entretanto, como a psicologia do desenvolvimento admite que o indivíduo tem de se adaptar às realidades da Cultura, Artaud chama à fabricação de uma Cultura que "fosse um meio apurado de compreender e de exercer a vida" (6). Enquanto a psicologia do desenvolvimento admite que o homem possa modificar o ambiente em que vive, Artaud parte do princípio de que que o homem pode modificar a Cultura em que vive, necessitando aprender a mudar a sua cosmovisão. "Qualquer processo de mudança social está ligado a novas definições da realidade. Qualquer redefinição significa que alguém começa a agir de maneira contrária às expectativas que lhe são dirigidas, de conformidade com a velha definição" (7), em que “realidade” é igual a cosmovisão, forma dada "a priori" pelo todo, sistema de pontos de vista sobre a Realidade em si. Artaud convida a Queimar Formas, aprendendo a se manter em equilíbrio, sem se deixar perder nas redefinições ao abandonar as definições envelhecidas. Conclui-se que cada cosmovisão veicula o seu próprio princípio de realidade – e assim, o tão afamado Princípio de Realidade não se refere à Realidade em si, mas à cosmovisão, ao que da Realidade em si é pensado. Artaud se pôs em luta com a Cultura e suas falsidades, propondo um teatro onde sejam trabalhados os duplos que distorcem a Realidade Concreta, a Realidade em si, independente de sistemas de pontos de vista a priori. É assunto de Marcuse. Marx o influencia, mas Marcuse o ultrapassa agora que Freud fala em "princípio da realidade". Se o homem deve vir renovado em toda revolução completa, deve superar o princípio da realidade (8). Para Artaud, é preciso o homem aprender a Queimar Formas para se transformar pelo Princípio da Realidade, o verdadeiro, o que se refere à Realidade em si e não a uma cosmovisão diferenciada. Quando "forma" é igual a "cosmovisão" e cada cosmovisão tendo o seu "princípio da realidade" próprio, Artaud diz ser preciso aprender a superar os princípios de realidade, a libertação da repressão de todos os tipos. Isto é, Artaud descobre e ensina como fazer o jogo do ser/não ser. Avança, com o seu passaporte para a loucura, sobre as realidades outras que, além de ser, avançam sobre o não ser. O homem não é o que as cosmovisões com suas realidades excludente, imponham que seja “este é meu, este é seu, este está podre, joga-se fora”. Artaud, declarado louco pela sociedade, vê que van Gogh foi suicidado pela sociedade, e sentiu o apetite de não ser. A sociedade o excluiu como “out”, é louco; Artaud sentiu o apetite de ser “out”, “outsider”, o diferente, aquele que faz a Cultura mover-se. 24 A cosmovisão dá o ser da realidade e seu princípio da realidade, o que se pensa ser a Realidade em si em uma Cultura. A visão particularizada do indivíduo tem uma generalização "a priori", senso comum. Artaud mostra o caminho do ser na Realidade em si, e o verdadeiro Princípio da Realidade, o ser atingindo toda a potencialidade que lhe é dada por seu genoma. Se o indivíduo é um sistema que se interrelaciona com o sistema total e com outros subsistemas, o princípio da realidade tem de ser visto em vários níveis. O indivíduo não deixa de existir quando se relaciona com o todo. Cada pessoa é um instrumento de leitura da realidade e os meios de que dispõe para esta leitura são internalizados e se formam em um crescente desde a infância. Não se pode ir contra a generalização "a priori". Para Artaud toda generalização/síntese tomada de um todo é forma a ser queimada. Cada generalização se processa mediante processos de transformação simbólica, culminando com formas mais apuradas... ainda assim destinadas a serem queimadas. A apreensão da Realidade Concreta, o Sistema das Coisas Reais, de Entes, de Existentes, necessita muito mais de um espírito aberto: uma generalização no momento atual se torna apriorismo para o momento seguinte. E isto está de acordo com: "as refutações do espaço para novas conjecturas". (10) Apenas que, enquanto método científico, aguarda-se tempo muito longo para o surgimento de novas conjecturas, a leitura artaudiana da realidade requer a abertura completa para um sistema sem dogmas/crenças/verdades/certezas, nada além de Princípios.
O Princípio da Realidade em Artaud é o princípio do Concreto, o "princípio da realidade das coisas reais". Se a condenação de toda concessão ao princípio da realidade e de utilidade é característica do surrealismo, tem-se Artaud desejando o Queimar Formas, que é um princípio de utilidade, e que façamos um Teatro da Crueldade para o homem resolver as antinomias, ou seja, os conflitos que o contato com a Realidade causa, bem como que ser, por meio dele, levado a pensar, a refletir. Isto em última instância é o Princípio da Realidade, aceitando como parte da realidade vivenciada inclusive a si próprio, tornando-se um princípio em sua versão mais completa: do mundo que existe e em que o homem, o ser. Artaud faz, portanto, como princípio surrealista, um pedido de se procurars a realidade concreta das coisas.
Sintoma esquizofrênico-psicótico? Sim, pela cosmovisão dominante em que o Diferente tem de ser eliminado. Se o esquizofrênico vive o Concreto, seria ele o único a se guiar pelo Princípio da Realidade. Se o duplo do real (a realidade fabricada pelo Cultural a partir do Concreto) permite a uns não se perderem, em um sentido os tornam alienados, a realidade dada pela Cultura é um sonho. O Princípio da Realidade artaudiano não permite a outros se perder no Concreto, “reino em que nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”: a leitura da realidade e a comunicação é que traz os defeitos? Não nos esqueçamos, porém, que Artaud alerta contra os mundos ausentes. Se "forma" é sombra (11), como aquela que uma esfinge projeta, destruir pelo teatro as falsas sombras, e preparar o caminho para surgirem outras sombras a cuja volta agrega-se o espetáculo da vida" pode significar destruir o mundo ausente para aproximar-se do mundo presente. Toda leitura da Realidade em si é mera sombra da Realidade em si projetada na mente humana e na cultura.
Artaud se liga a Kant que viu a Realidade em si como massa amorfa (12), o que ressurge, por exemplo na "gestalt", na Psicologia da Forma. Usemos esta hipótese. A “gestalt” a partir de Khler (13) entenderá a realidade como imaginada, formada: o homem é que imagina as explicações, formula teorias e hipóteses, constrói planos de vida e impressões que o orienta pelo resto de sua vida, o homem é que cria seu próprio determinismo. Artaud chama a atenção ao óbvio, uma vez apreendida a Realidade o homem tem meios de suplantá-la, pois o que se apreende da Realidade em si é apenas uma forma a se submeter ao Queimar Formas.
Cultura faz o homem
Retomemos a discussão: a Cultura é um ser que faz o homem, o homem é que faz a Cultura (14). Durkheim põe a Cultura como um "ser que pensa, sente e deseja". White pretende que o homem crie os "simbolados"/coisas e acontecimentos dependentes de simbolização. Tomando como Cultura as inter-relações entre estas coisas e acontecimentos, não sendo o homem quem faz a Cultura, não há atuação do homem na interrelação entre as coisas e acontecimentos gerados pela sua capacidade de simbolização. Não completou White o ciclo de mecanismos retroalimentadores envolvidos no sistema Cultura, desprezando "legein"/"teukheim" (Castoriadis). Sua visão é hegeliana: o sujeito e sua subjetividade só existe, só é, Ser, se homogeneizado com a Cultura, mas... A Cultura é um ser vivo que o homem gera e que, depois, passa a ter existência independente do homem, se, e apenas se, eliminar os que com ela não se conformam.
É preciso estar sempre atento para que toda leitura do real produz símbolos e cada representação simbólica é apenas uma aproximação da realidade, abordar todas, pela destruição sucessiva de todas, levaria a uma apreensão mais próxima da Realidade em si, aquela que depende da presença do homem na face da terra. O homem cria a simbolização, pontos de vista sobre a realidade e estes são veiculados e passam a criar formas a partir da massa amorfa. Os pontos de vista formam um sistema, a cosmovisão vigente: a realidade não é reproduzida nem controlada ou prevenida? Os pontos de vista perdem o seu valor e se substituem por outros que englobem as novas facetas da Realidade em si, que não eram previstas pela cosmovisão anterior. Enquanto há aceitação de seus pontos de vista a Cultura vive: quando eles morrem a Cultura morre, desde que a Cultura só permita a criação de suas formas a partir de seus próprios pontos de vista. Artaud sabe que a percepção da massa amorfa do real como "massa com forma" se deixa influir pelo sentimento. Pode-se usar esta palavra em que sentido se desejar, ao mesmo tempo em que há sentimentos intraduzíveis em palavras. Para Langer(15), "o sentimento está associado com a espontaneidade, a espontaneidade com a informalidade ou a indiferença - forma, e assim, com a ausência da forma. Por outro lado, a forma conota formalidade, regras, portanto, expressão do sentimento e ausência de sentimento". São palavras que podem estar contidas mesmo em Artaud, com a briga surrealista contra toda repressão, e o vazio do pensamento, do espírito: toda forma atingida precisa ser queimada, para se formar a Cultura dinâmica, para que a Humanidade se beneficie da busca da harmonia. Seria utópico se lembrarmos que este é o fim inalcançável, mas permanecer no ponto de vista oposto (conservar formas) é querer conservar um "status quo", muitas vezes iníquo, como manter-se comportamentos medievais incubados em esporos tetânicos que se rompem em virulência, alta, elétrica, em muitas noites manicomiais, transmitidos em perdigotos inquisicionais: o que fez Artaud foi iniciar a luta antimanicomial, com a Carta aos chefes de asilo e reitores de universidades, e não recebeu os créditos.
Artaud(16) não crê que se possa apreender uma Cultura por meio das palavras ou das idéias... tem-se que vivê-la, como fez no México. E toma o seu teatro como dialética entre o intelectual e o afetivo. Para Piaget (17), "todo comportamento tem duas variáveis: uma intelectual e outra afetiva". Assim, se tomarmos "forma" igual a "cosmovisão", pede um teatro que mova as forças emotivas para que se possa conseguir Queimar Formas.
Como ficariam, neste caso, as formas/aparências? A partir de várias leituras do real, a forma sobressai, e pelo mecanismo de ler e reler a realidade, esta forma é vulnerável, não cristalizável. As Coisas Reais do Concreto existem apesar da forma humana de o apreender, e se relacionam entre si, apesar da vã filosofia de egocentrados em seus umbigos. A apreensão adequada de todas as relações possíveis, imagináveis e inimagináveis, só será possível quando se aprender a Queimar Formas: a variar o modo de ver o objeto, porque, usando agora as palavras de Saussure (18), "a aplicação de um instrumento sobre um objeto o desloca e muda sua configuração e sentido" e para Artaud, “a inteligência usa a Coisa Real e cria o objeto”.
"Problema clássico da filosofia: como se pensa? Resposta também clássica: por meio de categorias. Estas "correspondem às propriedades mais gerais das coisas, são os quadros rígidos que encerram o pensamento" (19). Com esta definição, Mauss (20) se expressa: “as categorias de nossa Cultura”, a forma pela qual se distingue prática e teoricamente entre nós o conjunto de atividades - nossa divisão social do trabalho - são, também, históricas e como tais "mais efêmeras do que se supõe. Pensamos separadamente coisas que, em outras Culturas, foram ou são pensadas em conjunto; essa diferença seguramente se estabelecerá entre nós e Culturas posteriores". Artaud propõe o Queimar Formas ao lado do pensamento sintetizador, e vem lembrar que "não pensamos separadamente coisas que em outras Culturas são pensadas em conjunto". Quem pensa deste modo é a "elite de homens civilizados de alta estirpe", condenados pelo próprio Mauss. O homem pode pensar em conjunto e escolhe o que expressar para estar em conformidade com a Cultura, ou pode pensar “em conjunto”, homogeneizado com o caldo cultural e ser conduzido pela Flauta de Hamelin da Cultura. O povo, como quer Artaud (21), "pensa primordialmente com os sentidos" e pensar assim é pensar globalmente, em conjunto, no sentido dado por Mauss.
Artaud pretende que o homem consiga Queimar Formas, formar impressões múltiplas sobre uma mesma realidade, o todo é apreensível de seus elementos e não se decompõe a eles meramente. O conjunto de elementos não tem mais só um todo, uma forma, uma interpretação: há várias formas, varias "gestalten" envolvidas. Basta a Descentração para serem vistas. A criatividade se abre. As formas se complementam, as conseqüências são infinitas.
O pensamento é circular: chegamos novamente ao tema da "dialética aberta". Artaud quando fala do Queimar Formas induz a pensar nas infinitas possibilidades a se extrair de cada conjunto de elementos e não apenas uma forma a ser absorvida, internalizada, seja na infância, seja na vida adulta, seja a partir de uma revolução. Não há possibilidade de revolução verdadeira quando não se intenta a reforma do homem, a reforma da cosmovisão que se vende ao homem, a instituição da dialética aberta como "modus vivendi" do homem, o homem em equilíbrio no meio de tantas destruiçõe sucessivas, o Queimar Formas.
Para Einsten (22), as concepções dizem respeito a um mundo de aparências, portanto, para além da rotina diária elas são falsas: devem ser abandonadas. É expressão de Queimar Formas e nos traz que Queimar Formas é a "teoria da relatividade das idéias". A concepção de mundo que sde recebe "passa a integrar de tal forma nossa imaginação que se torna difícil perceber plenamente até que ponto foram fechadas e absolutamente compulsórias as cosmovisões de outras Culturas". (23)
01 PLB PS 131
02 PLB PS 61
03 PLB PS
04 PLB PS 151
05 RS ICC
06 AA TSD 18
07 PLB PS 145
08 FAD M 50
09 LH2 126
10 LH2 131
11 AA TSD 21
12 FDA M 167
13 EH PS 289
14 LAW CSC 43
15 SKL SF 18
16 AV AT 315
17 LOL PPP 129
18 NR CL 21
19 FGB 24
20 FGB 64
21 CW 76
22 MN HS 18
23 PLB PS 59
24 CWO Colin Wilson. O Outsider, O drama moderno da alienação e da Criação. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda. 1985.