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O AVISO DA PARTIDA

Dois dias depois ao parar no sinal, Isaias é assaltado e ao tentar avançar o carro, na busca de fugir dos três adolescentes é então atingido na cabeça e no peito pelos disparos da arma de um desses, vindo a falecer, mesmo antes de ser conduzido ao hospital próximo.

Perplexa com a notícia, trêmula, Graciete então se lembra de que nos últimos encontros entre ela e Isaias para jantar e depois curtirem o amor no motel, ele dizia estar saudosista, com se estivesse se despedindo.

- Se despedindo...

A mão de longos dedos então buscando o lenço na bolsa enxuga as faces e os olhos nublados pelo choro da saudade e do entendimento tardio da verdade, cruel verdade.

 

 

Lembra-se.

O pai se acordava de madrugada.

Com os passos duros cortava o corredor, a sala conjugada, adentrava no banheiro, onde lavava o rosto, escovava os dentes e retrocedendo a sala, sentava-se a mesa, aguardando a refeição.

A mãe já então estava na cozinha, atrás da casa, fritando ovos, enquanto a água fervia com o café.

- Tá quase pronto, José.

O sorriso no rosto magro, moreno, de aquiescência e a voz grossa:

- Tudo bem, Maria.

Mesmo deitado, parecia-lhe vê a cena. Depois, as passadas novamente cruzavam o corredor, a outra sala e deixavam a casa. No silêncio do dia que despontava, escutava bem o ploc-ploc cadenciado dos pés descendo a rua estreita.

Ficava também ouvindo novos sons dentro das últimas trevas da madrugada. Outros passos. Vozes. Risadas. Um cachorro latindo num quintal circunvizinho. O dia aos poucos nascendo.

Logo, comia o pão com manteiga e café.

- Meu filho se cuide para não chegar atrasado na escola.

- Sim mamãe.

Obediente. Respeitoso. Apressava-se.

Hoje... Por que a repentina recordação? Dirige. Ultimamente, está assim saudoso. Sintoma da idade, essas lembranças?

- Bem provável.

Sorri, ante a conclusão e acelera, aproveitando o tráfego descongestionado.

O sol recém-nascido banha as residências nas laterais, com pedestres apressados nas calçadas. Aos poucos, carros e motos em número maior circularão aqui na Avenida Hildebrando Vasconcelos, na marcha natural do novo dia.

Tudo passou. Está “maduro” casado. Sem filhos. A mulher numa cadeira de rodas. Desfigurada pela obesidade que a domina ante a acomodação do corpo de pouco movimento. O pai ainda está vivo. Calado, aliás, sempre foi de pouco falar. Contido em si mesmo. Isolando-se de tudo. A mãe tristonha, magra, movendo-se devagarzinho, a voz trêmula.

- Nunca mais apareceu, meu filho...

- É a luta mamãe. Como está a senhora e papai?

- Tá tudo bem, com as cabeças nos lugares!

O sorriso dos lábios finos. O brilho nos olhos de repente outros, como renascidos.

- Senta aí meu filho.

Obedece. E o pai aonde está? Indaga:

- Cadê papai?

- Foi dá umas voltinhas por aí. È o novo hábito dele agora, sair de tardezinha.

- Entendo.

Meu Deus como tudo se transforma. Como o tempo passa ligeiro! Saber que foi menino, que despertava com os passos duros do pai, se preparando para sair, ir trabalhar. Os sons da rua defronte...

- E a Luzia como está?

- Naquilo mesmo, com a mocinha, a Irene, cuidando dela... É a gente tem que se resignar.

O silêncio da compreensão, onde as palavras são desnecessárias. Os rostos que não se encaram.

O tempo que corre, indiferente a tudo.

O portão largo. Buzina, anunciando-se.

O vigilante saindo da portaria abre-o.

- Bom dia, Seu Isaias.

- Bom dia, Tonho. Tudo bem por aqui?

- Tá, tudo OK, chefe.

O carro transpõe o portão, ante o olhar do funcionário humilde, contido na função de zelar, servir os superiores.

Adiante, o veículo pára no estacionamento destinado aos diretores e chefes de seções da grande empresa.

O vigilante pensativo retrocede a portaria.

 

 

- Hoje estive pensando...

A jovem morena, esguia, bonita, fita-o, em silêncio. Ele continua falando:

- Lembrando-me do tempo de menino, quando acordava com o meu pai se preparando para o trabalho. Seus passos fortes pelo corredor. Minha mãe à beira-do-fogão, cuidando do café...

Pausa. A moça entende-o. Nos últimos dias, o Isaias está com essas recordações. É o mal da idade...

Sorri, com a conclusão.

- Sorrindo de quê, Graciete?

- Nada não. Pode continuar falando, me desculpe.

- Eu estou ficando saudosista, como se estivesse me despedindo, tivesse recebendo um aviso...

A mão de longos dedos aí pousa no dorso da outra, em gesto de solidariedade, força para livrá-lo do pessimismo. E afagando-a, sente-a fria, trêmula.

- Isaias esquece o passado. Deixa de besteiras. “Bola pra frente”, pensa positivo, homem!

Ele lhe sorri, agradecido às palavras solidárias e, reagindo, livrando-se do passado:

- Peço outra dose?

- Pede.

O braço se ergue e a mão acena ao garçom, chamando-o.

- Pois é, morena bonita, vamos jantar e em seguida...

- Nos amar!

Sorriem coniventes, envolvidos pelo laço da amizade.

Dois dias depois...

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Atualizado em: Sex 16 Jul 2010

Comentários  

#7 rackel 17-08-2010 07:24
Uma partida poética, até. Gostei.
#6 PMCV 13-08-2010 21:48
Kokranne,
Obrigado, colega!
Abraço afetuoso.
#5 Kokranne 13-08-2010 12:28
Delicia de texto....Parabéns! Estrelas e Abrazos.
#4 PMCV 07-08-2010 13:08
tania,
Você está sempre presente, com o incentivo que me dá a FORÇA para continuar escrevendo, daí o meu agradecimento e o abraço fraternal. Paulo.
#3 PMCV 07-08-2010 13:05
Cilas,
Mais uma vez lhe sou grato às inteligentes palavras ao que escrevo.
Você é mesmo bom como poeta, escritor e analista cultural.
Obrigado!
Abraços.
#2 tania_martins 25-07-2010 18:55
Parabéns,Paulo!
#1 Cilas_Medi 17-07-2010 09:30
Um romantico, sempre. E uma conversa fácil, enredando o leitor. Parabéns, poeta!

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