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Conto kafkiano

O dia do Presidente havia sido cheio. Reuniões, decisões, pressões midiáticas intensas. Não conseguia excluir a possibilidade de não ser reeleito de sua mente e muito se esforçava para não gerar mais cenários de possíveis decepções pessoais em seu íntimo perturbado. Chegou a seu quarto sozinho, a esposa dormia em aposentos próprios. Vida conjugal? Havia muito não existia. Mas as campanhas sempre foram prioritárias. Retirou seu terno feito sob demanda, sua gravata absurdamente cara, seu cinto e seus sapatos, ambos de couro animal. Tomou uma ducha curta e deixou a água fervente jorrar sobre sua cabeça por alguns longos instantes. Deitou-se em sua cama king size, debaixo daqueles lençóis frescos e perfumados, e deixou-se pegar no sono em alguns instantes, alarme programado para as cinco e meia. Campanha. Reeleição. Clamor popular. Adoração. Pódio. Poder. Idolatria. Campanha, reeleição.
Acordou tomado de um cheiro de putrefação penetrante, abrindo os olhos, intrigado. Ainda era noite. Não sabia se o cheiro emanava de sua própria boca ou de sua esposa adormecida, espremida a seu lado. Esposa? Por que não estranhava aquilo? Estava ali deitada aquela mulata grávida, com cabelos espetados, recobertos de seborreia alarmante, exalando um odor até então desconhecido em seu vasto repertório sináptico. Não era sua esposa loira, esguia, com dentes clareados artificialmente e linhas de expressão corrigidas com inúmeras sessões de botox. Mas era sua esposa, ele sentia. Que diabos?
Levantou-se, espreguiçou-se e correu atrás de um espelho. Não precisou andar muito, aquele cômodo era minúsculo, e as demais portas não escondiam cômodos muito maiores. O chão era recoberto por roupas rasgadas, cheias de terra e poeira, potes de plástico, bitucas de cigarro, garrafas de bebidas alcóolicas baratas, degradantes e vazias. No meio disso tudo, um colchão em estado precário, com uma criança em cima. Seu filho, seu terno filhinho. A razão de acordar todos os dias para trabalhar naquele inferno enevoado, barulhento e tóxico. Mas como assim, filho? Sua esposa era estéril, por mais que no passado tivesse almejado uma criança com o intuito de procurar algum sentido para sua existência ignóbil.
Observava intrigado aquela casa miserável sem compreender por que ali acordara. Ao mesmo tempo em que era tomado pela sensação de que àquele lugar pertencia e de que aquela era sua família, não compreendia estar ali ao invés de em sua suíte. Apesar de já haver encontrado um espelho sujo e oxidado sobre a pia do banheiro, receava contemplar seu reflexo. Quem aquele espelho refletiria? O poderosíssimo presidente branco de meia idade em uma fase primordial de sua campanha? Ou um pai pobre, potencialmente negro, um proletário? Tomou confiança e entrou no pequeno cômodo parcamente iluminado pela luz da lua que entrava, soturna, por aquela janela mutilada. Puxou uma cordinha que acendia um abajur precário sobre a bancada da pia suja e, finalmente, enfrentou suas próprias feições. O que via o ilustríssimo Presidente naquele reflexo sincero? Um homem negro, cansado, suado e sujo. Os trejeitos denunciavam sua trajetória, arrastando-se por aquele mundo doente. Os sulcos em sua testa eram penetrantes, notórios. Suas dores estavam ali carimbadas. Seus medos estavam ali estampados. O Presidente estremeceu. Ainda seria o Presidente?
O deslumbramento era tamanho que pouco questionou-se sobre os motivos de estar preso no corpo de outro alguém, que ao mesmo tempo era ele mesmo. Não tinham uma consciência compartilhada, mas o Presidente tinha acesso ilimitado ao que sentiu e viveu o verdadeiro dono daquele organismo cansado.
O Presidente jamais soubera o real significado de sofrimento até então. Queria chorar, queria soluçar, queria clamar aos céus ajuda para aquele ser sujo e agonizante e, ao mesmo tempo, para si mesmo. O Presidente estava encarnando aquele homem. Estava preso dentro dele, mas, principalmente, estava preso dentro de si. O homem estava preso dentro de si antes da chegada do Presidente. Aquela figura insignificante do povo. Aquela formiga inquieta dentro daquele formigueiro social miserável. Não ser nada, não objetivar, não sonhar, não sorrir ou comemorar vitórias. Ser pastoreado pelas autoridades como o cordeiro a pastar que era. Estaria em uma prisão? Estaria vivendo um carma? Estaria o cosmos pregando uma peça doentia ao tornar o Presidente um eleitor pobre, dependente das esperanças falsas que o Presidente pregava na televisão diariamente? Não mais queria sentir. Queria suas campanhas, sua esposa anoréxica. Tanto amava sua mulata que em breve conceberia gêmeos, sua cachaça diária, seu filho subnutrido e analfabeto. Tanto amava saber que era sofredor, temente a Deus, justo e, acima de tudo, humilde. Esses fatos aqueciam seu coração, enterneciam sua alma petrificada pelas injustiças daquele mundo doente. Era bom, o Presidente jamais havia sentido aquilo. A esperança do povo ignorante. Do povo ignorado.
Acordou de súbito e percebeu-se encarando seu espelho revestido de prata, sobre sua bancada de mármore, no banheiro da perfumadíssima suíte presidencial.
Não mais viveria.
Seria um proletário sonhando ser o Presidente, ou o Presidente sonhando ser um proletário?
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Atualizado em: Sex 4 Out 2019

Comentários  

#1 vddgfd 22-04-2016 17:56
Boa tarde Anna
O texto ficou muito bom e de leitura fluída. O paralelo entre o personagem de Kafka e o seu presidente ficou muito legal. Parabéns
continue assim.
abraço
Fabiano Stopassolli

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