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TIBÉRIA

Cenário: Enfermaria de um Hospital
Ela é cancerosa, tem as pernas amarradas por ataduras protegendo os ferimentos e um tumor no pescoço, anda com ajuda de muletas. Reza um Pai Nosso e uma Ave Maria.  Simbolicamente ela nina e amamenta uma criança.
Agora que rezei para pagar um pouco dos meus pecados, preciso botar minha menina para dormir. Dorme, dorme, dorme minha menina. Psiu, silêncio! Ela está cansada. Dorme meu amor, não vou te abandonar agora. Teu pai me deixou, mas não vou te deixar e ninguém te tirará de mim. Hoje te nino e canto tua canção. Minha dispneia está para vir, mas antes que me falte ar eu canto para você dormir. Teu pai me deixou, estavas saltitante dentro de minhas entranhas, foi duro para mim. Pedi esmolas para te sustentar e lavando roupa, tirando o sujo dos que se julgam limpos, consegui te criar, te dei estudo, te dei amor, te dei carinho, e hoje, hoje Tibéria lavadeira de roupas dos coronéis de engenhos se encontra só. Oh! Senhor... se me levastes contigo agora, como eu te agradeceria... (tosse) A dispnéia, a tosse. Quem já imaginou uma falta de ar diabólica? Os pulmões a querer pipocar? Os olhos a querer pular? A gangrena! Aos poucos comendo minhas pernas. Ai meu Deus! Leva-me daqui! As pessoas têm nojo de mim. Minha urina serve de alimento para os insetos, minha urina é adocicada porque tenho diabetes. (Tosse). Existe coisa pior? Esse tumor maldito que a toda hora me asfixia, esse câncer maligno! A culpa é tua, toda tua Maria Angélica! Eu estou morrendo, estou me consumindo, e você por capricho ainda tem a ousadia de chamar-me de hipocondríaca. Tudo isso por um, um, um desgraçado chamado Martinez. Mas a maior culpa é a tua Maria Angélica. Custava nada fazer-me uma visita a uma pobre mãe cancerosa que tanto te fez bem? Eu estava lembrando quando te acalentava te fazendo dormir, porque tu tinhas medo do bicho papão, lembro também dos momentos que eu trocava tuas fraldas, te dava banho, mas sempre te tinha ao meu lado, te protegendo. Eu sei, posso imaginar a fedentina que toma meu corpo, mas não era preciso você tocar em mim. Usava uma máscara daquelas que se usam na exumação de cadáveres e pronto, ficava distante, conversava daí da porta mesmo, não era necessário chegar ao meu leito. Eu não iria te tocar e muito menos te abraçar. E agora é a hora maldita de tomar o remédio. (As mãos tremem, ela se molha, revoltada grita se desequilibra e cai) Filha cruel! Cruel! Se eu me matar terás remorso, mas o que adiantaria? Ir para o inferno? (Vai com dificuldade para a cama e em sua imaginação ver enfermeiros). Não malditos! Não assassinos! Assassinos! É isso mesmo, vocês escutaram? Me soltem, me soltem, deixe-me em paz. (Ela acha que tomou injeção, adormece, música. Uma luz por um biombo mostra uma cena ela grávida sendo espancada pelo marido. Ele tentando assassiná-la, ela acorda). Não! Não Gabriel, não! Por favor, não (percebe que foi um pesadelo, respiração arfante). Ele foi um monstro, desgraçou a minha vida, não respeitou nem a criança que estava em meu ventre. Se não fosse o amigo dele que chegou na hora, hoje eu estaria morta. Gabriel, Gabriel maldito! Eu nunca te fui infiel, sempre te respeitei. O fato é que o câncer já tomava o meu corpo, por isso eu era uma mulher frívola na cama, mas o condenado só pensava em traição e isso foi o fim, o fim de tudo. Não sei quem foi o inteligente que deu o nome de Gabriel para aquele monstro. Gabriel é nome de um anjo. O nome dele deveria ser cão, diabo, capeta e nunca Gabriel. Na época eu não tinha como me defender. Não existia Direitos Humanos, mas também para quê direitos humanos que na nossa pátria mãe gentil só defende o lado errado, principalmente bandidos. Também se houvesse a Lei Maria da Penha não ia adiantar nada, hoje de nada adianta... que lei equivocada é essa que não dar segurança a mulher? O sujeito mata, vai preso e quando se solta vai em busca de vingança. Milhares de mulheres que prestaram queixas foram executadas pelos seus próprios maridos. A lei é frágil e precisa ser revista e de nada adianta discar 180. Tive meus documentos extraviados quando inventei de trabalhar e o que escutei é que lugar de mulher é em casa cuidando do seu marido e mais uma vez fui espancada e ele não satisfeito com cara de superioridade falava: a morte para você é pouco sua cadela imunda, e eu sabia que mais cedo ou mais tarde ele iria me matar. Ele comprou um revólver e daí em diante minha vida virou um verdadeiro inferno, ele só dormia com o maldito revolver debaixo do travesseiro. Às vezes acordava de madrugada e pela luz do candeeiro que refletia na parede de reboco, eu via a sombra do Gabriel mexendo no maldito revólver, calçava meus chinelos e em passos lentos me dirigia a jarra de barro que ficava na cozinha, tomava um caneco de água e lentamente retornava à cama e assustada perdia o sono e ele simplesmente botava a arma debaixo do travesseiro e dormia tranquilamente. As interrogações atuavam na minha memória me fazendo pensar o porquê que eu não aproveitava a oportunidade e me livrava de uma vez daquele maldito monstro, mas meu pensamento em Deus era muito mais forte, por isso os meus maus pensamentos se dissipavam no ar como uma essência de um perfume.  Na época eu já sentia sinais do câncer indicando os primeiros sintomas, mas nem ao médico eu podia ir e se eu fosse sozinha ele vinha com suas insinuações pejorativas dizendo que sabia qual era a minha doença. Eu não aguentava mais e disse: Gabriel pelo amor de Deus, eu estou mal e se não posso ir ao médico sozinha, por favor me leva contigo então. Foi a pior experiência que tive em toda minha vida. Pense numa vergonha! Ele me levou ao médico sim, mas a ignorância do meu marido superou todas as expectativas. E quando entrei no consultório acompanhada pelo meu marido, o doutor Emanuel falou que precisava me examinar, e Gabriel foi logo perguntando: como é esse exame? Doutor Emanuel com seus quase oitenta anos educadamente falou: eu preciso que ela tire a blusa. De súbito ele foi logo agredindo o médico dizendo: por que você não vai pegar nos peitos da sua mãe, seu velho safado, vagabundo. Fez o maior escândalo e saiu me arrastando de consultório à fora vociferando palavras de baixo calão, e quando cheguei em casa recebi como presente, uma massagem corporal ficando cheia de marcas pelo com sua comadre Heleninha). Acho que hoje é domingo, e o domingo é um dia de muitas visitas, por isso vejo tanta gente no pátio deste hospital, mas o que adianta se ninguém vem me visitar? Minha visão também está comprometida, não enxergo direito, mas pelo que vejo acho que estou vendo minha comadre Heleninha. O traste da minha filha eu não estou vendo, mas tenho quase certeza que aquela é comadre Heleninha. (Chama). Comadre Heleninha, ô comadre Heleninha! Sou eu, eu estou aqui. Ela não me escuta, mas ela está só esperando a hora para entrar, (tosse). E essa tosse maldita que não me deixa. Foi comadre Heleninha que batizou minha filha ingrata. Nós morávamos no mesmo bairro e na mesma rua. Lembro que em noite de lua cheia, quando eu estava grávida de Maria Angélica, nós sentávamos no terreiro sobre uma esteira, e ao lado tinha um pé de capim santo, e para matar meu desejo, eu ficava comendo o miolo da raiz daquela planta. Tinha também um chafariz do outro lado que jorrava água cristalina, através de um cano de bambu. Um pé de jasmim exalava um aromático perfume, e os vaga lumes enfeitavam aquele espetacular cenário. As crianças brincavam cantando cantigas de roda, e dois violeiros repentistas duelavam em uma peleja, recitada em versos de cordel. Como era lindo, que saudade! Inveja é um sentimento feio e mesquinho, mas para ser sincera, eu sempre tive uma pontinha de inveja da família de comadre Heleninha. Seu Antunes, que Deus o tenha, sempre foi um homem bom, respeitador e exemplar com sua mulher, seus filhos e também os vizinhos. Nunca se via brigas entre eles, é lógico que todo casal tem suas desavenças, mas os pequenos conflitos entre eles eram resolvidos entre quatro paredes, sem escândalos ou qualquer outro tipo de agressão. Seu Antunes era pedreiro e trabalhava duro para educar seus quatro filhos. Aos domingos os meninos limpinhos e bem vestidos acompanhavam os pais, quando o sino da igreja matriz badalava chamando os fiéis para a missa matinal. Durante a semana os meninos iam à escola, e Maria Angélica estudava na mesma escola que eles, mas ela sempre me dava trabalho, era ou não era comadre Heleninha? Esperem aí, comadre Heleninha estava aqui aguardando a hora de entrar, ou será frutos da minha imaginação? Acho que estou vendo coisas estou ficando é louca. Acho que foi da queda que levei quando eu estava na casa de repouso, ou melhor, asilo de velhos. Fiquei tonta, levei uma queda e bati com a cabeça. Não sei se foi minha filha ingrata ou aquelas freiras malditas que me trouxeram para aqui. Todo mundo no Brasil tem um plano de saúde, o SUS, você tem, você, você. Acho que noventa por cento da população tem o SUS. Eu sou tão miserável, mas tão miserável que nem isso eu tenho. É tão lindo a união da família. Os hospitais assim como este, tem uma política maravilhosa de colocar os pacientes em macas nos corredores e as vezes no chão para evitar o calor, e um acompanhante fica sentadinho numa cadeira ao lado do seu enfermo, ou sentadinho mesmo no chão. São os acompanhantes que tomam conta dos seus doentes, e eles nem dormem porque é divertido aquele movimento lindo e contagiante de médicos, enfermeiros, visitas, pessoas com AVC, baleadas, queimadas, estupradas, é lindo! Quem fica nos corredores nunca se sente sozinho. Agora me respondam: o que foi que eu fiz que não tive a sorte de ficar nos corredores? E tem gente que vive falando mal do SUS. O meu SUS tem a sigla trocada, é USS, que significa, “Uma Senhora Suja”. E você aí sua linguaruda fique calada e pare de falar do SUS. Quer trocar? Você fica com o USS e eu com seu SUS. Ah, não quer? Então pare de reclamar. Para você que não sabe o USS é o pior de todos os planos. Olha minha situação, sozinha, sem ninguém, com esse ventilador ridículo virando o pescoço para lá e para cá observando tudo e tirando onda com a minha cara. Um dia que eu tiver pelo avesso eu vou quebrar a sua cara, seu ventiladorzinho de merda, seu filho de uma prostituta. Você é tão nojento que ventila quente para acelerar a minha morte, e não fica olhando e tirando o olho de mim não. Tenho certeza que quem te trouxe aqui foi minha filha ingrata Maria Angélica. Aqui faz um calor miserável e eu preferia está nos corredores, pelo menos lá tem o calor humano. Ai meu Deus! Queria tanto quando eu morresse fosse cremada, mas isso é impossível, é coisa só para os ricos. Também para quê eu ser cremada? Quem teria a coragem de pegar minhas cinzas e jogar no mar, ou no alto de uma montanha? Calma Tibéria! Estás ficando louca. Tuas cinzas seriam pior que um desastre nuclear, tuas cinzas exterminaria a fauna e a flora e todos os seres vivos do nosso planeta. E é por esse motivo que estou isolada nesta sala, (tosse). Minha dispneia!  (Alguém fala) O que é agora? Injeção novamente? Eu sei, eu sei que daqui a pouco tenho que tomar o remédio, vocês estão pensando que sou louca é? Não enxergo direito, mas louca eu não sou. (vai ao veneno). Ah! Ainda bem que encontrei. Ninguém quis trazer o veneno de matar moscas e baratas, mas aquela jovem piedosa que veio me visitar trouxe para mim. O mau cheiro das minhas feridas só atrai insetos. O que é novamente? Visitas para mim? Minha filha? (Nervosa procura um espelho). Não, agora não, um momento. O que é que eu faço? Não quero que essa ingrata me veja assim, um momentinho. (Se ajeita). Vou é fechar a porta bem fechada (volta). Pronto pode falar Maria Angélica. Deus te der vergonha nessa cara safada cachorra! Não, não vou abrir. Diga o que você quer e desapareça. (Tosse). Ai, ai, ai, minha dispnéia (tosse) que não me ataque agora. Pare de bater Maria Angélica, não sou surda. O quê? Com o seu marido? Ele também está aí com você? Pois diga a ele que não devo nada a ele e nem a seu ninguém, ora essa! Era só o que faltava... Depois de cinco anos convivendo com esse maldito câncer, vocês agora me aparecem. Estão arrependidos é? Ingrata? Eu que sou ingrata? Ingratos são vocês que para se livrarem de mim me colocaram num asilo, e agora nesse hospital seboso. Não, não vou abrir, podem chamar os médicos, os enfermeiros, seu pai, sua mãe, quem vocês quiserem, mas não vou abrir esta porta. Pode falar Maria Angélica. Flores? (sorriso de deboche). Flores pra mim? Oh! Que emocionante! Nunca em toda minha vida recebi flores. Obrigada minha querida, elas servirão para enfeitar-me, quando eu tiver no caixão. Não, até agora não precisei de você, e quando precisei fui jogada no lixo. E agora vocês vêem aqui dar uma de bonzinhos, ora! Vão se catar, podem ir, xô, xô, xô, chispem daqui. (Música). Meus braços estão inchados. Soro, soro, soro, sempre soro. Não sei por que não aplicaram hoje. (Vai andar e derruba o suporte do soro). E esses lençóis fedorentos. (Vai até a porta). Agora já posso abrir. Cadê vocês enfermeiros do demo? Seus carniceiros! Há uma semana que não trocam esses lençóis nojentos. Vocês vão ver o que uma pobre velha é capaz de fazer. (Deixa a cama toda desforrada. Sobe na cama e recita poemas, tosse). Ai, ai, ai, que essa tosse não me ataque. Para bem longe de mim dispneia maldita (música). Humano é o homem. Celestial é a mão que moldou o ser, pode ser até pecado, mas mesmo assim posso dizer, dizer sim, por que não? Pedi perdão? Ora! Por quê? Sou uma mulher merecedora, talvez o que fiz, não sei, como posso saber? Deus é justo e correto. Condenada já estou e sei que breve irei morrer. Morre matéria maldita! Desinfeta o espaço, deixa o ar purificado, afugenta também tua criação, todos os parasitas que se apoderam desta carne podre, quase em estado de decomposição. Ah! Quer a relação? Te dou sim, por que não? Tuberculose, gangrena, catarata, reumatismo, artrite, artrose, diabetes, (tosse). Ai, ai, ai, minha dispnéia, tudo, tudo causado por este infame câncer que me acompanha. Quem me dera meu Deus! Ter a sensibilidade de sentir novamente o vento tocar meu corpo como antigamente, erguer minha cabeça e respirar aquele ar noturno, vendo a lua e as estrelas cadentes. Tocar nas plantas e molhar minhas mãos com o orvalho da madrugada. Estar na praia e enxergar o ocaso, o crepúsculo vespertino se dissipando no horizonte. A natureza... tudo tão bonito, tão belo! E eu? (Grita para alguém). Que é? Já vou (para platéia) São os enfermeiros a toda hora enchendo minha paciência por causa deste maldito remédio. (Tosse) Ai, ai, ai, minha dispnéia! Afasta-te de mim miserável! (Sai tossindo em direção ao remédio, pega por engano o veneno, toma e começa a passar mal se rasteja até a cama). Minha nossa Senhora! Não é o remédio! É o veneno de matar moscas e baratas, esqueci, mas não tem problema (tenta subir na cama, sobe). Eu ia morrer de qualquer jeito, mas antes de morrer, algo quero falar. Agora tudo está consumado, mas como concluir meu próprio epílogo? Falar da Tibéria menina que passava horas nos campos admirando a relva e as mais belas flores? Admirando as coloridas borboletas sugando o néctar das mesmas? Ou o vai e vem das abelhas fabricando o puro mel? Acorda Tibéria! Ou deita no teu leito e aguarda o teu momento. Pensa no teu féretro, na tua lápide e o epitáfio que ficará exposto no teu sepulcro. Sente de dentro do teu ataúde o balançar das pessoas que te conduzem a tua nova morada, o cemitério. Águas passadas não movem moinhos, acredita neste dito popular, pois com os teus lamentos não terás a vida que se finda. Faz tempo que estás enojada com as seqüelas das tuas feridas, e pra o teu consolo, sente apenas o cheiro do que te resta, éter, mercúrio e álcool. Esses elementos químicos são os perfumes da tua partida. Fecha os olhos e lentamente deixa-te ser conduzida, pois só assim encontrarás a paz, e lembrarás eternamente de alguém que um dia foi chamada de Tibéria.  (Vai sentindo o efeito do veneno e se debatendo vai morrendo lentamente. Música, e luz no corpo de Tibéria.)
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Atualizado em: Ter 20 Jun 2017

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