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ÉBRIO

A penumbra da noite perpassava a janela de vidro e lançava a luz do luar sobre minha fisionomia, outrora radiante, hoje decadente. Os goles da bebida desciam rasgando minha garganta. No início a substância me causava trejeito e um leve reviramento no estômago, mas hoje ela é pra mim o que a água é pra uma pessoa “normal”.
            Esse álcool que agora rasga minha garganta em fervoroso prazer já destruiu minha vida. Essa bebida demoníaca; levou-me a ser abandonado por minha família, levou-me a ser uma vergonha aos meus filhos, levou-me a ser o que sou hoje; um homem de meia idade, decrépito, praticamente sem fígado e quase sem nenhuma razão pra viver.
            Encontro-me hoje jogado em minha velha poltrona, e ao meu lado minha companheira traiçoeira, esse veneno no qual viciei. É comum em noites assim minha cabeça rodopiar em reflexões… “Por que você ainda está vivendo? O abandono de todos que você amava não é o suficiente para você perder a razão da existência?” A voz em minha cabeça dizia. Era uma voz rouca, eu presumo que advinda da bebida.
            Estendo a mão em busca do litro, mas eis que para minha completa estupefação vejo uma sombra passar na parede. Um calafrio percorre meu corpo e num espasmo causado pelo susto acabo derrubando o litro. O vidro se estilhaça em mil pedacinhos, tal qual minha vida se estilhaçou depois do vício.
            Pragas ecoaram de meus lábios. Me levantei e fui pegar uma outra garrafa. O pavor que a sombra me causou foi se dispersando aos poucos. Quando volto a poltrona e tomo um grande gole vejo novamente a sombra. O pânico se apossa de meu corpo, fico paralisado. A sombra começa a ganhar forma, e diante dos meus olhos ela se transforma em… meu pai! Pisquei várias vezes atônito. Pensava que poderia ser uma ilusão, um sonho, já estava a dois dias sem pregar os olhos, sempre que sentia sono cheirava um pouco de um pó especial… Cheirei um pouco de um pacotinho que trazia no bolso. Quem sabe assim a sobra de meu pai ia embora, porém ela não foi. E o terror prendeu meu corpo quando a sombra de meu pai, morto a cinco anos, falou:
            “Você sempre foi uma decepção!” Sua voz soava espectral. “Nem depois da minha morte você toma jeito”.
            “Nem depois da sua morte você me deixa em paz” eu disse, aquilo podia ser um sonho, mas aquele espectro não me ofenderia.
            “Você sempre foi petulante”
            “E você sempre foi um covarde que bate em mulheres”
            “A sua esposa pode dizer o mesmo de você. Isso é, se você não a tivesse matado”
            “Eu não a matei!” Eu exclamei exasperado, peguei a primeira coisa que encontrei e joguei no espectro. Ele desapareceu.
            As palavras dele embaralham meus pensamentos. Fiquei atordoado, e o jeito foi ir pegar uma outra garrafa já que meu pai mesmo morto veio bagunçar minha vida. Enquanto bebia novamente, um redemoinho negro adentro o cômodo. Ele trazia consigo a agonia do inferno, me senti extremamente perturbado, foi então que o redemoinho das trevas começou a ganhar forma e em um piscar de olhos minha esposa estava comigo.
            Sua pele estava pálida, seu rosto, antes rosado e vívido, ganhara um aspecto cadavérico e mortalmente espectral. As órbitas de seus olhos eram de um negrume inigualável. Trajava um belo vestido branco.
            “Anne!” - A exclamação destruiu os muros dos meus lábios.
            “Sentiu saudades, querido.” Sua voz era igualmente doce. “Pensou que não iria mais me ver?”
            Fiquei sem palavras. Ela estava ali em minha frente. Não havia me abandonado. Não estava morta, só estava ali, comigo. Eu não estava sozinho. Me aproximei e tentei tocar seu rosto, mas ela recuou:
            “O que houve?” Perguntei confuso.
            “Você ainda não pode me tocar” ela disse.
            “Por que?” Eu perguntei rapidamente.
            “Você sabe o por que, Victor”. Eu abaixei a cabeça relembrando o dia em que acidentalmente a matei. Eu estava ébrio, não estava consciente dos meus atos. Não queria, simplesmente não queria… mas fiz.
            “Como posso consertar isso? Eu não fiz por querer… Anne” me desesperei.
            “A um jeito de consertar isso, Victor, e você sabe qual é, não é?” A voz dela era melosa, mas firme. Não precisei que ela explicasse, é claro que eu sabia o que ela queria.
            Fui até a cozinha com a garrafa em mãos. Tomei um último gole e quebrei a garrafa na beira da pia. Fiquei a olhar o casco em minhas mão. O estilhaço de vidro em minhas mãos implorava pra ser lambuzado com o meu sangue. Hesitei, mas ela se aproximou de mim e pousou sua mão sobre a minha…
            “Venha! Preciso de você!”
            Essas palavras foram o suficiente. Em um movimento rápido e firme enterrei o vidro em meu pescoço, e ao fazer isso ela desapareceu… não tinha mais esposa… não tinha mais meu pai… não tinha ninguém… apenas eu, sangrando, agonizando, morrendo…
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Atualizado em: Sex 9 Jun 2017

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